Avenida Brasil Editorial / Público |
Em Avenida Brasil, a novela da Globo que os portugueses podem ver nos ecrãs da SIC, a hierarquia tradicional das classes altas e das classes baixas inverteu-se. Os "suburbanos" mudam-se para a Zona Sul do Rio de Janeiro, enquanto os ricos já não representam o modelo aspiracional típico da novela. Avenida Brasil, a novela de um novo Brasil, eufórico e mais igualitário, o Brasil de Lula e Dilma, parou as cidades brasileiras quando chegou ao fim. Agora, o trânsito nas avenidas do Brasil parou, mas por um motivo diametralmente oposto. A população de um país que em duas décadas superou em muito o subdesenvolvimento e a desigualdade social, revolta-se, por vários motivos. Tal como na Turquia, outro país que vive um ciclo de prosperidade, um motivo singular - no Brasil, os preços dos transportes públicos - alastrou a um protesto geral por mais democracia e melhores condições de vida. Os protestos questionam o papel do futebol e do próximo Mundial, que, a par dos Jogos Olímpicos do Rio, são os instrumentos da consolidação do Brasil enquanto parte dos BRIC e potência emergente no quadro de uma nova ordem internacional. De repente, ficamos a saber que muitos brasileiros não se revêem nessa imagem do país em ascensão. Querem melhores hospitais em vez de estádios, estão fartos da inflação e sentem os efeitos do abrandamento do crescimento económico. Instalam uma dúvida: afinal, qual é a solidez real desse crescimento? Que vulnerabilidades ameaçam esse Brasil eufórico? Provavelmente, o maior desafio que este enfrenta é político. E Dilma Rousseff compreendeu-o bem ao declarar que a democracia sairá mais forte destes protestos - o contrário do que fez Erdogan na Turquia. O Brasil caminhou muito. Quer andar mais. Tem muitas avenidas pela frente, assim os políticos consigam ouvir a rua. E não alimentem ilusões.
Manifestação em São Paulo, onde pelo menos 50 mil pessoas saíram à rua segunda-feira à noite
Dilma elogia manifestantes e vai discutir o que fazer com Lula.
Por Clara Barata in Público
19/06/2013
Os políticos brasileiros foram apanhados de surpresa pela dimensão dos protestos populares que se transformaram num grito contra as assimetrias na distribuição da riqueza e a corrupção
A Presidente brasileira, Dilma Rousseff, viajou ontem para São Paulo, para se encontrar com o seu antecessor, Lula da Silva. Querem compreender o que está a levar milhares de pessoas para a rua, a protestar contra a corrupção, a violência policial e as despesas milionárias com a construção de estádios para o Mundial de futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, quando o país tem tantas carências, na educação e na saúde.
"Vi ontem um cartaz muito interessante que dizia "desculpem o transtorno, estamos mudando o país". Meu Governo está atento a essas vozes pela mudança, está empenhado e comprometido pela pressão social", afirmou Rousseff. "O Brasil tem orgulho deles [dos manifestantes pacíficos]", sublinhou a Presidente. Condenou no entanto os actos de violência - muito menos frequentes na madrugada de terça-feira, apesar de cerca de 230 mil pessoas terem saído à rua, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e em várias outras cidades, do que na quinta-feira, porque a polícia foi muito mais contida.
Rousseff está a ser muito cautelosa em não hostilizar os manifestantes, tal como os antecessores na presidência, Lula e Fernando Henrique Cardoso. "Os governantes e as lideranças do país precisam de actuar entendendo o porquê desses acontecimentos nas ruas. Desqualificá-los como acção de baderneiros é grave erro. Dizer que são violentos nada resolve", escreveu Fernando Henrique no Facebook. Era uma resposta ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, também do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que tinha classificado as manifestações como uma "intolerável a acção de baderneiros, de vândalos destruindo o património público". As razões do protesto "se encontram na carestia, na má qualidade dos serviços públicos, na corrupção, no desencanto da juventude frente ao futuro", escreveu ainda Fernando Henrique.
Lula, através do Twitter, também já tinha já pesado no debate. "Ninguém em sã consciência pode ser contra manifestações da sociedade civil, porque a democracia não é um pacto de silêncio, mas sim a sociedade em movimentação em busca de novas conquistas".
Um estudo do Instituto Data Folha citado pelo jornal Folha de São Paulo diz que 84% dos manifestantes não têm preferência por qualquer partido, 71% participaram pela primeira vez num protesto e 53% têm menos de 25 anos. Há um maior peso de estudantes (22%, quando representam apenas 5% da população brasileira) e de pessoas com ensino superior (77%, quando são apenas 22% da população). O Facebook e a Internet tiveram um papel importante na organização destas manifestações - as maiores desde 1992, quando o Presidente Collor de Mello foi impugnado. Foi no Facebook que 81% dos inquiridos souberam da manifestação.
Desprevenidos
Rousseff e Lula vão tentar perceber os motivos que estão a levar pessoas para a rua com cartazes como o que foi toscamente rabiscado numa cartolina, dizendo "Se o seu filho adoecer, leve-o ao estádio".
O ministro Gilberto Carvalho, porta-voz do Governo, reconheceu que a sociedade brasileira "não quer mais" algumas práticas adoptadas pelos governos do Partido Trabalhista, como a construção de estádios do Mundial de futebol ao lado de hospitais públicos a rebentar pelas costuras, diz a Folha de São Paulo. "A questão da Copa, temos que estar atentos. Se a gente se fechar a esse tipo de reivindicação, vamos na contramão da história", afirmou.
O estádio do Maracanã foi alvo de grandes obras de reconstrução, no valor de mil milhões de reais (345 milhões de euros). E em várias zonas do Rio de Janeiro, os moradores queixam-se de que estão a ser obrigados a sair das suas casas, com pequenas indemnizações, ou a mudarem-se para casas muito pequenas. Em causa está o interesse das imobiliárias, ansiosas por novas áreas para construir - é o que se está a passar na vila Autódromo, na zona ocidental, onde ficará a Aldeia Olímpica, relata o Guardian.
Gilberto Carvalho admitiu que os governantes foram apanhados desprevenidos com este movimento popular que começou com um protesto por causa do aumento do preço dos autocarros em São Paulo. "Na questão da mobilidade urbana, temos problemas. A frota de ônibus de São Paulo é a mesma de sete, oito anos atrás", disse à Folha. O prefeito de São Paulo, o trabalhista Fernando Haddad, diz que "baixar tarifas tiraria recursos da saúde e educação". Outras cidades anunciaram entretanto que vão baixar o preço dos transportes.
Mas a surpresa dos políticos face à avalanche dos protestos - para ontem ao fim do dia havia novas convocatórias - é grande. "Seria pretensão achar que a gente compreende o que está acontecendo. São novas formas de mobilização que nós, da geração 70, 80 e 90 não conhecíamos", diz Gilberto Carvalho.
Belo Horizonte
TESTEMUNHOS.
Anna Bárbara Proietti, médica e investigadora da Fundação Hemominas
"O que está acontecendo é um movimento das pessoas em sua maioria jovens, e, de repente, uma geração inteira que parecia alienada dos problemas sociais e políticos está se engajando através do poderoso mecanismo das redes sociais e saindo às ruas. Estão reivindicando melhor utilização das verbas públicas e redução do custo de vida, incluindo impostos e transporte coletivo. Vejo de uma maneira muito positiva toda esta movimentação e espero que o Governo Dilma seja sensível e dialogue com os manifestantes, que isto é que se chama democracia."
Brasília
Gisela S. de Alencar Hathaway, advogada e consultora legislativa
É um protesto amplo, que vai muito além dos 20 centavos do aumento da passagem de ônibus em São Paulo. Esses centavos, tão irrisórios, se mostraram demasiado caros para o povo, pobres e ricos, conectados e alheios. O povo, nos últimos anos, tem vivido a demagogia dos cartões e dos vales. Esse dinheiro instantâneo alivia, mas não resolve a pobreza, a falta de educação de qualidade, o tratamento desumano nos hospitais e postos de saúde, as estradas esburacadas, assassinas, e o avanço da corrupção na administração pública. O povo brasileiro cansou da megalomania das obras superfaturadas, dos eventos "para inglês ver".
Rio de Janeiro
Raquel André, actriz portuguesa (no Brasil há quase dois anos)
"Claro que não é por 20 centavos! É por um país em que os contrastes sociais são bizarros, o custo de vida do Rio de Janeiro é o de Londres! A educação e a saúde pública não existem! Não existem de verdade! O Brasil é uma farsa, vive-se escondendo a realidade... E a Copa do Mundo "quer" esconder mais, mas o povo não vai deixar!"
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