Um espião ressabiado
Em nome de uma preocupação com a qualidade da democracia na América, Edward Snowden denunciou uma gigantesca operação de vigilância aos telefones e à Internet por parte da Agência Nacional de Segurança (NSA). Ao contrário das fugas de segredos alimentadas por Julian Assange no seu WikiLeaks, a revelação de Snowden não punha em causa a segurança do Estado, não ameaçava o papel da sua diplomacia, nem dos seus agentes no terreno. Era uma revelação de um claro abuso das liberdades individuais, um atentado flagrante aos mais elementares valores da democracia, um indício de que a pulsão controladora do Estado exercida em nome da segurança pode não ter limites. Ontem, porém, Snowden estendeu as suas denúncias a supostos actos de vigilância dos Estados Unidos a instituições civis chinesas. Fê-lo sem o provar, embora se pressinta que a espionagem tem na relação sino-americana um terreno fértil. Caiu na vulgaridade, despiu a imagem de herói da liberdade que tentou vestir e tornou-se em mais um espião ressabiado.
Edward Snowden: nem herói, nem traidor.
Por Francisco Teixeira da Mota in Público
14/06/2013
A irrupção de Edward Snowden na cena pública mundial com as suas revelações sobre o estonteante programa clandestino de recolha de dados da NSA (National Security Agency) levanta inúmeras questões éticas e problemas legais. Para além das polémicas mais evidentes e mais marcadamente ideológicas à volta de Snowden ser um herói ou um traidor, a performance deste one-man show vem sobretudo tornar evidente a desmesura do mundo em que vivemos. Um mundo em que a estafada invocação de Orwell e da doublespeak deixou de constituir uma metáfora ameaçadora para passar a ser uma figura de estilo ingénua e quase romântica.
Se há muito tempo que qualquer pessoa sensata não acredita minimamente no que os candidatos ao poder anunciam na fase em que o procuram conquistar, a verdade é que também já estamos quase anestesiados perante as mentiras dos governantes. Ao nosso modesto nível nacional, os exemplos da forma como o actual poder político desconsidera as nossas capacidades de raciocínio e compreensão são quase diários. Ainda há dias pudemos observar como a implantação do regime legal que consagra o despedimento de funcionários públicos foi anunciado como uma questão de requalificação dos mesmos funcionários depois de uma breve passagem semântica pela sua mobilidade. É certo que somos todos parvos; mas seremos assim tanto?
No caso de Snowden, é notável ver como James Clapper, o czar da comunidade de espionagem norte-americana, explicou as suas declarações de Março passado ao Congresso norte-americano em que, perguntado se a NSA coligia qualquer tipo de informação sobre milhões da americanos, tinha respondido: "Não intencionalmente. Há casos em que pode inadvertidamente coligir esses dados, mas não intencionalmente".
Confrontado agora com a prova provada - trazida ao nosso conhecimento por Snowden - de que há anos que a NSA tem vindo a coligir sistematicamente milhões de dados sobre milhões de americanos e de estrangeiros, através de todos os grandes do mundo virtual e comunicacional, como a Verizon, a Google, a Microsoft, a Apple, o YouTube e Deus sabe o que mais, Clapper esclareceu que, ao dizer "não intencionalmente" perante o Congresso, tinha respondida da maneira que lhe parecera ser mais verdadeira ou menos falsa (most truthful, or least untruthful).
Chegados a este despudor na linguagem do poder face à evidência de uma gigantesca massa de dados que a NSA tem vindo a coligir sobre as comunicações telefónicas e virtuais de milhões de norte-americanos e estrangeiros e tendo em conta a enormidade do poder norte-americano, parece mais correcto concluir que Snowden não é um herói nem um traidor mas sim um santo e, inevitavelmente, um mártir.
Snowden, nos seus 29 anos de idade, sabendo como sabia a forma como os EUA têm esmigalhado o soldado Bradley Manning por ter divulgado os telegramas diplomáticos e militares através da WikiLeaks, sabendo como sabia a forma como os EUA cercaram e cercam de uma forma irredutível Julian Assange, não se movendo, antes pelo contrário, por qualquer eventual vantagem económica ou outra, não reivindicando qualquer postura ideológica estruturada ou qualquer combate político, dispôs-se, como os tibetanos que ardem em protesto contra a opressão chinesa, a imolar-se por um ideal que, nestes tempos, se pode considerar religioso: a dignidade humana face à omnipotência do Estado, democrático ou não.
Estamos a viver a nível nacional, europeu, mundial um turbilhão de acontecimentos a uma velocidade imensa, com alterações radicais das relações de forças, poderes e valores. Quais placas tectónicas, os continentes, os países, as economias e as sociedades deslizam em movimentos incontroláveis e imprevisíveis, pelo menos para a maior parte das pessoas. Só daqui a muitos anos será possível perceber aquilo por que estamos a passar e em que sentido se moveram as diversas forças que agora se entrecruzam e colidem.
Mas uma coisa é certa: graças a Bin Laden, as sociedades desenvolvidas, mas muito em particular os EUA, assistiram a um brutal reforço dos poderes do Estado a todos os níveis e a uma pulverização e esmagamento dos direitos dos cidadãos. A nível da privacidade, nos EUA, vale praticamente tudo em nome da segurança antiterrorista. E verdade seja dita que as sondagens indicam que uma parte substancial dos norte-americanos confia no Estado e está disposto a abdicar da sua privacidade/liberdade em nome da prometida segurança.
Mas a verdade também é que ninguém sabe como "isto" vai parar ou estabilizar. Ninguém sabe as formas como poderá vir a ser utilizada a montanha imensa de informações pessoais e privadas que os Estados têm vindo a acumular sobre nós. Uma coisa, no entanto, é certa: não podemos acreditar no que nos disserem.
Advogado. Escreve à sexta-feira ftmota@netcabo.pt
Por Alexandre Martins in Público
14/06/2013
Maior partido pró-Pequim pede explicações a Washington e exige o fim de qualquer acção de espionagem no território
O programa de espionagem da Agência de Segurança Interna norte-americana está a provocar problemas nas relações externas dos Estados Unidos. Depois da pressão da União Europeia, agora é Hong Kong a exigir explicações sobre a mais recente acusação de Edward Snowden, que coloca o território e a China continental como dois dos alvos da vigilância norte-americana.
O homem que revelou a existência do projecto Prism saiu na segunda--feira do hotel onde estava alojado desde o dia 20 de Maio, mas deu uma entrevista ao jornal em língua inglesa South China Morning Post. Segundo ele, os serviços de espionagem dos Estados Unidos acederam a computadores de centenas de instituições civis no território de Hong Kong e na China continental nos últimos quatro anos.
Snowden não revelou pormenores nem apresentou provas, mas afirmou que entre os alvos estão a Universidade Chinesa de Hong Kong, "responsáveis do Estado", "empresas" e "estudantes". O antigo funcionário da CIA e da Agência de Segurança Interna disse que revelou esta informação para demonstrar "a hipocrisia do Governo dos Estados Unidos quando alega que não vigia infra-estruturas civis".
Num comunicado citado pelo jornal britânico The Guardian, os responsáveis da Universidade Chinesa de Hong Kong afirmam que não foi detectada qualquer tentativa de intrusão nos seus servidores.
Mas a acusação de Snowden deixou o maior partido pró-Pequim de Hong Kong em estado de choque.
A presidente da Aliança Democrática, Emily Lau, disse que é preciso saber "o que é que eles andam a fazer", referindo-se aos responsáveis norte-americanos. "Se o Governo dos Estados Unidos alguma vez invadiu ou vigiou qualquer computador ou equipamento de comunicação, deve imediatamente pôr fim a esse comportamento e destruir todo o material que tenha sido adquirido por esse meio", lê-se num comunicado do partido, citado pelo The Guardian. Também o deputado James To Kun-sun se mostrou alarmado com a acusação de Snowden. "Não consigo imaginar que o Governo dos EUA entre no computador de um responsável de Hong Kong por motivos relacionados com o antiterrorismo. E é claro que não consigo imaginar que a nossa Universidade Chinesa de Hong Kong tenha qualquer associação a terroristas", disse o deputado da Aliança Democrática.
Analistas citados pelo jornal em língua inglesa China Daily consideram que o programa de vigilância dos Estados Unidos pode travar o desenvolvimento das relações sino-americanas. "Há meses que Washington acusa a China de ciberespionagem, mas afinal a maior ameaça à liberdade individual e à privacidade nos EUA é o poder desenfreado do Governo", afirmou Li Haidong, especialista em estudos americanos na Universidade de Relações Externas da China.
A acusação de Snowden surgiu horas depois de o director da Agência de Segurança Interna, o general Ketih Alexander, ter afirmado perante uma comissão do Senado norte-americano que a espionagem telefónica e informática evitou "dezenas de ataques terroristas".
Keith Alexander argumentou que o trabalho da agência que lidera é sujeito a um rigoroso controlo. "Dada a natureza do nosso trabalho, algumas pessoas nos poderes executivo, legislativo e judicial podem conhecer em detalhe o que fazemos ou constatar que realizamos as nossas funções dentro das mais estritas regras, e que respondemos pelo nosso trabalho num quadro rigoroso de regime de supervisão", disse.
Protesters shout slogans in support of Edward Snowden in Hong Kong Photograph: Philippe Lopez/AFP/Getty Images
Pressure builds on US over Hong Kong civilian hacking allegations.
Pro-Beijing politicians demand US answer allegations it hacked into targets including territory's businesses and universities
Tania Branigan and Jonathan Kaiman in Hong Kong
guardian.co.uk, Thursday 13 June 2013 15.57 BST / http://www.guardian.co.uk/world/2013/jun/13/hong-kong-demands-us-answer-hacking-allegations
Political pressure on the United States to address claims that it hacked hundreds of targets in Hong Kong has begun to build in the territory.
Pro-Beijing politicians on Thursday urged the US to clarify whether it had carried out such surveillance, as NSA whistleblower Edward Snowden alleged, and if so, immediately cease. Democratic party chairwoman Emily Lau suggested lawmakers should ask the US "what the hell they're up to" and a colleague said he would like Snowden to give evidence to the legislative council.
Snowden said that the US had hacked Hong Kong targets including public officials, businesses, a university and students, as well as entities on the mainland. His claims were made in an interview with the city's South China Morning Post, which said it had seen a document that Snowden said supported his claims. The Post added that it had not verified the material, and has not published it.
The allegations followed a string of revelations in the Guardian based on top-secret documents provided by the 29-year-old, who had worked as a computer technical assistant for Booz Allen Hamilton, on contract to the National Security Agency.
Thursday's statement from the Democratic Alliance for Betterment and Progress of Hong Kong (DAB) – the largest pro-Beijing party in the Legislative Council – said his claims had aroused strong concern and anxieties in the territory.
It urged "that the US government immediately clarify whether it has, in accordance with its intelligence and surveillance program plans, gathered intelligence or conducted surveillance of local individuals, groups and organisations via their computers or any other communication equipment; and whether in doing so, any material has been seized.
"If the US government ever invaded or monitored any local computers or communications equipment, that it should immediately cease relevant behavior, and furthermore destroy any material that it has acquired by this means."
It also called on the Hong Kong government to tackle the incident as soon as possible, determining whether there had been any legal violations so that Hong Kong's privacy and freedom of communication could be protected.
James To Kun-sun, a Democrat and vice-chair of the legislature's security panel, said that while it was perfectly legitimate for the US to carry out counter-terrorism work, the alleged hacks were unacceptable.
"I can't imagine that the US government should hack into, say, a Hong Kong government official's computer for anti-terrorism [purposes]. And of course I can't imagine that our Chinese University of Hong Kong has any form of association with terrorists," he said.
He said he wanted to understand how vulnerable the city's systems were and to ask Snowden in more detail about his claims, but added that he would take soundings from colleagues.
Emily Lau, the chairwoman of his party, added: "Our concern is what the US government is doing to harm Hong Kong's interests. One thing to do is to invite Snowden to come and tell us. But the most direct way would probably be to contact the US government and ask them what the hell they're up to."
Pan-democrat Charles Mok suggested Snowden would be unlikely to come forward given his current situation, noting that lawmakers had no powers to summon individuals.
Cyd Ho of the Labour party said that politicians should request Snowden's own wishes, arguing the priority was making sure he received fair treatment before the law.
Snowden checked out of his hotel in Hong Kong after revealing his identity in a video posted by the Guardian on Sunday, moving to a more secure location. But he told the Post he would stay in Hong Kong and fight any US request for his surrender.
On Wednesday, Jen Psaki, a spokeswoman for the State Department in Washington, said it was not aware of the hacking claims and could not comment directly.
Snowden said his claims revealed "the hypocrisy of the US government when it claims that it does not target civilian infrastructure, unlike its adversaries".
But Psaki added: "There is a difference between going after economic data and the issues of surveillance that the president has addressed, which are about trying to stop people doing us harm."
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