Um
domingo em Atenas, ou o que nos podia ter acontecido
José Manuel
Fernandes
28/6/2015 /
OBSERVADOR
Ao
vermos a aflição dos gregos é bom recordar que também Portugal
podia ter caído naquele abismo. Bastava termos seguido os que
pediram a mesma dureza, advogaram a resistência e insultaram os
credores
Longas filas para
levantar dinheiro nas caixas de multibanco. Supermercados a começarem
a ficar com as prateleiras vazias. Automobilistas em demoradas
esperas para encherem os depósitos das suas viaturas. A notícia de
que os bancos estarão fechados até ao dia do referendo. Uma enorme
expectativa sobre como será o dia de amanhã. E, claro, muito medo.
O referendo sobre a
mais recente proposta de acordo do Eurogrupo será apenas no próximo
domingo, até lá muita coisa pode acontecer. Mas a Grécia, que já
estava mal, está agora muito pior. Pior na economia. Pior
socialmente. Pior nas finanças públicas. Pior na confiança nas
instituições (como o sistema bancário). Pior no clima politico e
até pior no respeito pelas regras democráticas.
Claro que ainda há
alguns lunáticos que acham que tudo está a correr maravilhosamente,
mas não creio que sejam acompanhados por muitos portugueses.
Acompanhado hoje, porque ainda há bem pouco tempo o discurso era
outro, de encantamento com Tsipras e Varoufakis. Ou de elogia à sua
abordagem “intransigente” das negociações.
A crise grega dura
há tanto tempo que, por vezes, temos a sensação de repetir
argumentos. O que até seria natural: logo no dia seguinte às
eleições gregas escrevi que então é que começavam os dias
difíceis do Syriza. Não conhecia ainda a arrogância de Varoufakis
nem a atracção pela roleta russa de Tsipras, mas não era difícil
prever que um país dependente de empréstimos para se manter à tona
de água teria sempre dificuldade em conseguir novos empréstimos
dizendo, ao mesmo tempo, que não pretendia pagar os antigos. É
certo que tudo correu ainda pior do que se previa, 0 que é fruto de
uma estratégia negocial suicida, da ausência da qualquer real
margem de manobra para chegar a um acordo e ainda de algo que aqui
lembrei a semana passada, a real natureza do Syriza. Mas o que
arrepia é que, mesmo sem um Syriza português, podíamos ter ido
pelo mesmo caminho.
Há dois anos e
meio, pouco depois do “enorme aumento de impostos” e da crise da
TSU, cheguei a temer, e escrevi-o, que provavelmente não
escaparíamos a um destino semelhante ao dos gregos. Nessa altura
quase toda a nossa elite andava pelas televisões e descia às ruas
para proclamar a impossibilidade de atingir os objectivos e pedir
negociações mais duras. Foi o tempo em que até o Presidente da
República se juntou ao coro e anunciou a famosa “espiral
recessiva” que nunca se materializou. Ninguém imaginava que fosse
possível evitar um segundo resgate, muito menos que se conseguisse
uma “saída limpa”.
Na verdade,
conhecendo a nossa natureza e, sobretudo, a o egoísmo e a cobardia
de boa parte das nossas elites, não era difícil imaginar um destino
tão triste como o grego. Podíamos fazê-lo à moda de Sócrates,
prometendo à Europa medidas e metas que depois nunca cumpriríamos,
ou podíamos fazê-lo à moda grega, de Papandreou ou de Samaras,
queixando-nos sempre de que as medidas “não iriam funcionar” e,
depois, fazer tudo arrastando os pés. Sabemos onde nos conduziu o
método Sócrates, com os seus três PEC (já nem falo do quarto),
tal como sabemos no que deu o caminho grego.
Nestes dias em que
regressamos a casa sem novos sobressaltos e, ao abrir a televisão,
vemos o que se passa em Atenas ou Salónica, é bom recordar que nos
podia ter acontecido o mesmo. Que até esteve quase a acontecer-nos o
mesmo na crise do verão de 2013. Há por aí muita falta de memória,
mas há coisas que não podem nem devem ser esquecidas.
Um dia se fará, com
mais distância e mais dados, a história comparada dos resgates da
crise das dívidas soberanas, mas há um ponto que podemos dar já
por adquirido: o nosso ponto de partida era especialmente difícil.
Éramos, em termos comparativos, mais pobres do que os gregos,
vínhamos de dois anos com o défice público acima dos 10%, tínhamos
uma dívida pública a crescer de forma descontrolada e – aspecto
demasiadas vezes esquecido – uma dívida externa que era, em termos
proporcionais, das maiores do mundo. Isto para além de tudo o que
estava escondido debaixo do tapete, dos encargos futuros com as PPP
às dívidas colossais de algumas empresas públicas.
A nossa tarefa não
era mais fácil, a nossa troika não foi menos exigente – a nossa
atitude é que foi diferente. No sector privado na economia e na
direcção do governo. Nada demais, pois todos sabemos como muito
ficou por fazer. Mas o suficiente para já estarmos a deixar para
trás a parte mais difícil do caminho das pedras.
Dir-se-á, e eu
também o disse e digo, e também o escrevi, que países como
Portugal (e a Grécia por maioria de razão) acumularam dívidas que
pesam excessivamente sobre as suas economias, pelo que deverão ser
reestruturadas. E, na verdade, isso já aconteceu: na Grécia com um
enorme haircut da dívida em mãos privadas, em Portugal através de
iniciativas mais discretas de troca de dívida e mudança de
maturidades. É um caminho que, no caso português, continuará a ser
prosseguido, espero eu, mas que depende muita da relação de
confiança entre credores e devedores. O que o nosso país conseguiu
– e isso devemo-lo ao Governo, o seu a seu dono – é ter
conseguido reganhar a confiança dos credores, o que lhe tem dado
margem de manobra para alguma renegociação e permitido que
gastemos, em proporção da dívida, menos com o pagamento de juros.
É apenas um começo, mas é começo.
A abordagem do
governo do Syriza a este tema foi diametralmente oposta. Começou por
ser quase um “não pagamos”, desapareceu durante algum tempo e
reapareceu nas exigências finais do governo grego, quase como
pretexto para não aceitar um acordo no qual os credores já tinham
feito a sua parte do caminho para irem ao encontro dos desejos de
Atenas. Acontece porém que a abordagem agressiva do governo de
Tsipras, que culminou com a convocação surpresa do referendo,
tornou ainda mais claro para todos os parceiros que não existia
gente confiável do outro lado da mesa. A resistência das
instituições é assim não só compreensível, como natural e até
exigível: porquê continuar a emprestar dinheiro a alguém que não
dá garantias credíveis de equilibrar as suas contas? Porquê
perdoar dívida quando se está a pedir a emissão de nova dívida e,
ao mesmo tempo, a desfazer algumas das reformas levadas a cabo? Para
quê ajudar a salvar a pele um político que nos despreza nos dias
pares e nos sorri nos dias ímpares?
A aflição dos
gregos que correram para as caixas multibanco é por isso da natureza
das coisas. O dinheiro já é pouco e pode acabar de um dia para o
outro. Os laços com a zona euro são cada vez mais ténues, com o
Eurogrupo a reunir sem Varoufakis presente. E todos percebem que
insultar os credores sempre que se sobre à tribuna do parlamento
pode entusiasmar os radicais, mas só endurece ainda mais a posição
de quem tem de mostra boa vontade e paciência. Muita boa vontade e
muita paciência, apesar de tudo.
É por isso bem
possível que cada dia seja ainda pior do que o anterior. Que mesmo
aprovando em referendo o acordo, os gregos percebam que, entretanto,
a proposta europeia foi retirada de vez. Que à radicalização do
discurso se siga uma radicalização nas ruas, um processo que o país
já conheceu. E que até o pouco que sobrava da economia – o
turismo – entre em crise profunda, pois os turistas desabituaram-se
de levar os bolsos cheios quando partem de férias e agora estão a
ser avisados que devem fazê-lo, por precaução.
É também por isso
que quando olhamos para trás e nos recordamos de como tantos, tantas
vezes, nos recomendaram caminhos semelhantes, só podemos suspirar de
alívio. De facto, não nos aconteceu, mas podia ter acontecido.
E, para sermos
realmente honestos, ainda não estamos livres que nos aconteça.
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