Polónia:
“Waitergate” augura novas crises na Europa
O
regresso da direita antieuropeia na Polónia voa nas asas de um
escândalo
Jorge Almeida
Fernandes / 14-6-2015 / PÚBLICO
Lembram-se do tempo
(20052007) em que os gémeos Lech e Jaroslaw Kaczynski governavam a
Polónia? Representando a direita católica integrista e um
nacionalismo antieuropeu, celebrizaram-se por uma “caça às
bruxas” a que chamaram “purificação da Polónia”. Não só
atacavam os pós-comunistas como a elite católico-liberal e
europeísta que fez a transição para a democracia. Nem Walesa foi
poupado.
Defendiam um “Estado
forte”, alicerçado na Igreja, na “nação histórica”, na
manutenção da ordem tradicional e na crítica do liberalismo do
Oeste. Mais prosaicamente, os Kaczinski tentaram apoderar-se do
Estado, subordinando a Justiça e os media. Transformaram “a
política numa guerra civil permanente” — nas palavras do
politólogo Aleksander Smolar. Fabricavam inimigos. No plano externo
nomeavam dois: a Rússia e a Alemanha, acusada de diminuir o estatuto
da Polónia na Europa. Angela Merkel era associada a Hitler.
O seu partido, Lei e
Justiça (PiS) foi apeado nas eleições de 2007. Lech, entretanto
eleito Presidente, morreu em 2010 num acidente de aviação. Jaroslaw
continuou a dirigir o PiS e a chefiar a oposição.
Desde então, a
Polónia foi governada pela Plataforma Cívica (PO, centrista), de
Donald Tusk, hoje presidente do Conselho Europeu. Em Setembro
passado, Tusk cedeu a chefia do governo a Ewa Kopacz, presidente da
Dieta (câmara dos deputados). Radek Sikorski (na foto), que dirigiu
os Negócios Estrangeiros durante sete anos, saiu do governo e
tornou-se presidente da Dieta.
Em matéria
económica, as coisas corriam bem: a Polónia foi o único país da
UE a manter o crescimento desde a crise de 2008. Houve uma
desaceleração em 2013, que fez cair a popularidade do governo, mas
voltou à taxa dos 3,2% em 2014. O desemprego está nos 8,5%. “A
Polónia é a success story da economia europeia”, resume uma
analista.
No plano
internacional, sobretudo com a crise ucraniana, a Polónia reforçou
o seu estatuto internacional. Tusk e Sikorski tornaram-se actores de
primeiro plano.
A eleição de Duda
Em Maio surgiu a
primeira surpresa. Nas eleições presidenciais, um quase
desconhecido, Andrzej Duda, apoiado por Kaczinski, derrotou Bronislaw
Komorovski, o presidente cessante. As sondagens davam Komorowski como
favorito. Segundo os analistas, foi por isso que Kaczinski não
concorreu.
Com uma “campanha
à americana”, Duda venceu. Apareceu como “o homem da mudança”
contra “os velhos actores da política”. Fez campanha com os
temas do PiS: reafirmou o seu eurocepticismo, atacou o euro e a UE,
advogou a redução dos impostos e a passagem da idade da reforma dos
67 para os 65 anos.
Ewa Kopacz já tinha
um problema. As eleições legislativas, para a Dieta e para o
Senado, estão previstas para Outubro. A maioria das sondagens
favorece a oposição. Na mais recente a PO aparece em terceiro lugar
(21%), a seguir ao PiS (24) e ao movimento “anti-sistema” de
Pawel Kukiz, uma velha estrela do rock que obteve 20% nas
presidenciais graças ao eleitorado jovem.
Escândalo “da
treta”
Faltava o escândalo.
É um caso que remonta a Junho de 2014. Um tablóide publicou as
escutas de conversas privadas de políticos e outras figuras públicas
em restaurantes de Varsóvia, regadas com bons vinhos. O governador
do banco central discutia com o ministro das Finanças a
possibilidade de uma nova política monetária ajudar o Governo.
Sikorski qualificava as garantias de segurança da aliança
polacoamericana como uma “treta” e fazia comentários picantes
sobre a diplomacia de David Cameron. Outra personagem comparou a
aliança polacoamericana a “sexo oral”.
O Parlamento chumbou
uma moção de desconfiança contra o Governo e Tusk mandou fazer um
inquérito. Na altura, o Financial Times admitiu que as escutas, com
microfone oculto, fossem obra russa para queimar Sikorski. No
inquérito, os “criados” dos restaurantes admitiram ter colocado
microfones a pedido de “um homem de negócios”. Daí o nome
“Waitergate”. Alguns apontam o dedo a um multimilionário que
importa carvão da Rússia.
Esta semana o
escândalo ressuscitou por outra via. Um blogger ligado a um partido
populista colocou na Internet 2500 páginas do inquérito feito pela
procuradoria — e que tinha sido distribuído aos visados e
advogados. O escândalo é agora incontrolável. “O único
resultado da longa instrução, que dura há mais de um ano, foi uma
gigantesca fuga de informação”, lamentou a primeira-ministra. Os
media fustigam “a fraqueza do Estado”.
Em desespero, Ewa
Kopacz afastou três ministros e forçou a demissão de Sikorski.
“Era um movimento necessário mas é muito tarde”, diz Smolar à
AFP. “A primeira-ministra reagiu com precipitação numa situação
dramática.” Acrescenta o politólogo Kazimierz Kik: “A PO é um
barco que se afunda. É um verdadeiro terramoto, mas pode levar à
renovação do partido e a uma mobilização para se reconstruir.”
Poderão fazê-lo
até ao princípio de Outubro?
“Fuck the EU”
Os políticos
desabafam em privado o que não podem dizer em público. Os jornais
lembram a frase de Victoria Nuland, subsecretária americana para os
Assuntos Europeus e Euroasiáticos, num telefonema ao seu embaixador
em Kiev sobre a acção europeia na Ucrânia: “F... a UE.”
Fica a questão:
podem políticos como Sikorski pensar que é possível falar “em
privado” ao abrigo de ciladas e sem o risco de que o mundo escute?
A previsível
viragem à direita da Polónia pode inserir-se no quadro do regresso
dos populismos na Europa de Leste, na rejeição das políticas ou
das impotências europeias ou na tentação de encerramento das
nações sobre si mesmas, fenómeno que os analistas assinalam entre
a juventude polaca. Mas, neste caso, entra em acção um daqueles
“acidentes” que põem em marcha mecanismos incontroláveis que
marcam a História.
Comecei por falar
dos Kaczinski para relembrar o passado recente. Entretanto os tempos
mudaram e Jaroslaw não poderá repetir as façanhas do passado, mas
perturbará certamente a UE. Há algo de lunático na sua estratégia
europeia: estabelecer uma aliança dos Estados pós-comunistas do
Leste para contrabalançar não apenas o peso de Moscovo, mas também
os de Paris e Berlim. Chamava-lhe outrora “a coligação dos
fracos”.
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