O
burocrata Sampaio da Nóvoa
JOÃO MIGUEL TAVARES
23/06/2015 - PÚBLICO
Parece-me
extraordinário que um homem dado a discursos tão empolgantes troque
subitamente o idealismo mais elevado pela mais deslavada resposta
burocrática só porque está em causa o jardim ao lado de sua casa.
A notícia vinha na
última edição do jornal Sol: Sampaio da Nóvoa foi o primeiro
signatário de um grupo de moradores de Oeiras que tentou por duas
vezes, em 2004 e em 2005, embargar as obras de ampliação de um lar
de acolhimento para adultos com paralisia cerebral. Essas obras
tinham como objectivo construir mais quartos e um ginásio para
fisioterapia, mas os moradores interpuseram duas providências
cautelares argumentando que tal ampliação iria alterar “o
equilíbrio” entre os prédios da Urbanização Nova Oeiras,
causando “grandes prejuízos” a quem vivia na zona, “quer em
termos de vistas, quer de fruição de jardins e de redução de
espaços de lazer, de passeios pedonais e de caminhos de passagem”.
Os embargos levaram
por duas vezes à suspensão das obras, e das duas vezes foram
considerados improcedentes pelos tribunais. Até o Provedor de
Justiça foi instado a pronunciar-se, mas também ele tomou o lado da
Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral e da autarquia de
Oeiras. A própria associação decidiu processar depois os
moradores, exigindo uma indemnização de cerca de 100 mil euros
pelos atrasos nas obras. Contudo, Isaltino Morais, então presidente
da câmara, e sempre magnânimo, acabou por promover um acordo entre
as partes, assumindo a autarquia 60% dos danos causados pelos
embargos.
***
Este é um caso que
parece muito desequilibrado quanto aos valores em jogo: de um lado,
uma associação de paralisia cerebral que quer melhorar as suas
instalações; do outro, uma comissão de moradores que quer manter a
vista das casas e o tamanho do jardim. Mas o que me chamou a atenção
não foi tanto a notícia em si, porque a partir do momento em que
Sampaio da Nóvoa se lança numa candidatura à presidência da
República é natural que estes casos comecem a aparecer nos jornais
(ainda que soprados por partes interessadas, são parte de um
escrutínio político que faz parte das regras democráticas), mas,
sim, a resposta que o candidato a Belém deu ao jornal Sol para
justificar as suas acções.
E a resposta foi
esta: segundo Sampaio da Nóvoa, o litígio com a Associação
Portuguesa de Paralisia Cerebral nada teve a ver “com a função
final do edifício”. Apenas e tão-só “com o exercício do dever
de zelar pela legalidade de uma operação que envolvia cedência de
espaço público a entidades privadas”. Ora, parece-me
extraordinário que um homem dado a discursos tão empolgantes,
incontinente citador de trovadores e especialista em “fazer pontes
com pessoas e instituições” e “arbitrar consensos num clima de
confiança” (palavras suas na apresentação da candidatura),
troque subitamente o idealismo mais elevado pela mais deslavada
resposta burocrática só porque está em causa o jardim ao lado de
sua casa.
Para um verdadeiro
sonhador, “a função final” de um edifício não pode ser igual
ao litro. Para um autêntico utopista, um espaço ser usado para a
fisioterapia de doentes com paralisia cerebral não pode ser a mesma
coisa do que ser utilizado para erguer uma nova sede da Goldman Sachs
ou para edificar a mansão do sobrinho taxista de Isaltino. Eu sei
que há quem desvalorize estas notícias, apelidando-as de “baixa
política”. Mas eu, que sou pouco utopista, gosto de cotejar a
teoria com a prática. E este é um daqueles casos — e, sobretudo,
uma daquelas justificações — que revelam muito mais sobre a
personalidade de quem se apresenta às eleições presidenciais do
que dez discursos emproados, cheios de citações antológicas de
Sophia e de José Afonso.
Jornalista
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