Papa
divulga encíclica histórica sobre ambiente e alterações
climáticas
RICARDO GARCIA
18/06/2015 - 12:14 (actualizado às 12:35) / PÚBLICO
Francisco
diz que "o clima é um bem comum" e que a humanidade tem de
mudar o seu estilo de vida.
Clima,
biodiversidade, água, poluição do ar, energia, resíduos,
tecnologia. Praticamente todos os aspectos da crise ambiental mundial
estão abordados numa encíclica do Papa Francisco inteiramente
dedicada à protecção do planeta, divulgada esta quinta-feira pelo
Vaticano.
Não é a primeira
vez que um Papa se debruça sobre os temas ambientais. E a própria
encíclica recorda passagens de textos desde 1971, de Paulo VI, João
Paulo II e Bento XVI.
Mas uma encíclica
inteiramente dedicada ao ambiente é uma novidade. E, mais do que
isso, Francisco põe-se claramente ao lado dos cientistas na questão
das alterações climáticas. “Existe um consenso científico muito
consistente que indica que estamos perante um preocupante aquecimento
do sistema climático”, escreve. O clima, diz a encíclica, “é
um bem comum, de todos e para todos”.
O Papa aponta o dedo
aos combustíveis fósseis e afirma: “A humanidade é chamada a
tomar consciência da necessidade de mudar o seu estilo de vida, de
produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo
menos, as causas humanas que o provocam ou agravam”.
“As alterações
climáticas são um problema global, com graves implicações
ambientais, sociais, económicas, distributivas e políticas, e
constituem o principal desafio da humanidade”, acrescenta a
encíclica, na mesma linha do que cientistas e políticos têm vindo
a dizer nas últimas duas décadas.
Para a elaboração
da encíclica, o Papa cercou-se tanto de pensadores religiosos como
de cientistas. Um dos académicos que esteve profundamente envolvido
no processo foi Hans Schellnhuber, presidente do Instituto Potsdam de
Investigação sobre os Impactos Climáticos, na Alemanha.
Schellnhuber é um dos principais investigadores nesta área e
considerado como o pai da ideia de que se deve evitar um aumento da
temperatura média global acima de 2oC até ao final deste século.
Na apresentação da
encíclica, numa conferência de imprensa no Vaticano, Schellnhuber
saudou a iniciativa do Papa. “[A encíclica] junta a fé e a moral
à razão e ao engenho”, disse.
Um relatório
"melhor e mais claro"
O texto do Papa
descreve detalhadamente as causas e consequências do aquecimento
global. “É como se fosse um relatório do IPCC [Painel
Intergovernamental para as Alterações Climáticas], mas melhor e
mais claro”, interpreta Francisco Ferreira, da associação
ambientalista Quercus.
Com a encíclica, a
Igreja Católica posiciona-se claramente em relação a várias
opções políticas e económicas relacionadas com as alterações
climáticas. O texto defende a substituição dos combustíveis
fósseis pelas energias renováveis. E critica os sistemas de
comércio de emissões de carbono, que “podem conduzir a novas
formas de especulação” e “não permitem as mudanças radicais
que a circunstância presente exige”.
O texto do Papa
surge num momento crítico das negociações internacionais para um
novo tratado climático, que deverá ser adoptado em Dezembro, numa
conferência das Nações Unidas (ONU) em Paris. Já este mês, o
tema será discutido num encontro de alto nível promovido pela ONU
em Nova Iorque. E em Setembro, deverão ser aprovados também pela
mesma organização os objectivos do desenvolvimento sustentável. “O
momento para a divulgação desta encíclica não poderia ser
melhor”, afirma Francisco Ferreira.
O clima não é
senão um dos tópicos abordados pela encíclica. O texto toca em
tudo o que diga respeito à crise ambiental – ou seja, à forma
como a humanidade está a desestabilizar o planeta. Francisco cita os
efeitos da poluição atmosférica, que “provocam milhões de
mortes prematuras”, e fala do problema dos resíduos. “A Terra,
nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito
de lixo”, afirma.
Também lá está o
risco de extinção de espécies, com o alerta de que animais e
vegetais não são apenas “recursos exploráveis” mas também têm
“um valor em si”. O papa também reflecte sobre os problemas de
acesso à água, criticando a tendência de privatização deste
recurso, “tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado”.
Os desafios e
oportunidades da tecnologia também estão presentes. O texto
menciona os riscos do acelerado mundo digital, dizendo que “os
grandes sábios do passado correriam o risco de ver sufocada a sua
sabedoria no meio do ruído dispersivo da informação”. E aborda
também, de uma forma cautelosa, o debate sobre os transgénicos. “Às
vezes não se coloca sobre a mesa a informação completa, mas é
seleccionada de acordo com os próprios interesses, sejam eles
políticos, económicos ou ideológicos”, escreve Francisco.
Por toda a
encíclica, há eixos comuns a ligar os diversos temas. E o principal
deles é o da relação entre a pobreza e a fragilidade do planeta.
Também a desigualdade entre países ricos e pobres é várias vezes
mencionada. “Há uma verdadeira dívida ecológica, particularmente
entre o Norte e o Sul”, diz o Papa Francisco.
A encíclica poderá
chegar aos 1,2 mil milhões de católicos do mundo, mas a intenção
de Francisco é maior. “Pretendo especialmente entrar em diálogo
com todos acerca da nossa casa comum”, afirma.
"É realmente
inovador"
As reacções à
iniciativa do Papa começaram a ouvir-se na segunda-feira, quando um
rascunho da encíclica foi divulgado pela imprensa italiana. A
iniciativa foi saudada por líderes religiosos, ambientalistas,
investigadores e dirigentes de organizações internacionais. O
presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, disse esta quinta-feira
que a encíclica é “um claro alerta sobre a ligação entre
alterações climáticas e pobreza”.
“A liderança
moral do Papa sobre as alterações climáticas é particularmente
importante devido ao falhanço de muitos chefes de Estado e de
governo em mostrar liderança política”, acrescentou o economista
britânico Nicholas Stern, autor de trabalhos pioneiros sobre o
impacto do aquecimento global na economia.
“É realmente
inovador”, opina Filipe Duarte Santos, da Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa e coordenador de vários estudos sobre
alterações climáticas em Portugal. “A importância da encíclica
pode ser avaliada por estar já a incomodar alguns sectores
económicos e financeiros ligados aos combustíveis fósseis”,
completa o investigador.
Nos Estados Unidos,
a iniciativa de Francisco é uma pedra no sapato para os republicanos
católicos que estão na corrida à sucessão de Barack Obama. Alguns
reagiram antes da divulgação da encíclica, quando uma versão
preliminar já estava em circulação. “Espero não ser castigado
pelo padre da minha cidade, mas a minha política económica não vem
de bispos, cardeias ou do Papa”, disse Jeb Bush, ex-governador da
Florida, que concorre à Presidência dos EUA.
“A Igreja já se
enganou algumas vezes no passado, e é melhor deixarmos a ciência
com os cientistas e centrarmo-nos naquilo em que somos bons, ou seja,
em teologia e moral”, afirmou o ex-senador republicano Rick
Santorum, também candidato.
Republicanos e
democratas vão ouvir Francisco de viva voz em Setembro, quando o
Papa visitará os Estados Unidos e falará perante o Congresso
norte-americano e também na Assembleia Geral das Nações Unidas.
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