Os
lisboetas sonham, a câmara quer e a obra nasce?
07 Junho 2015
João Pedro Pincha /
OBSERVADOR
Lisboa
foi pioneira na criação de um Orçamento Participativo, mas vários
projetos venceram e ainda não saíram do papel. Câmara admite
atrasos, lisboetas e presidentes de junta pedem mais celeridade.L
A dado momento nos anos 80,
alguém na Câmara Municipal de Lisboa decidiu que o Rio Seco, na
zona da Ajuda, era um bom sítio para depositar os candeeiros
estragados e velhos de toda a cidade. Durante a noite, as patrulhas
faziam um périplo por Lisboa, recolhiam todos os candeeiros partidos
e iam largá-los ali, naquela cratera invulgar para uma cidade, onde
um dia correu um rio. O vai e vem noturno manteve-se durante anos e
não deixava dormir muitos dos habitantes dos prédios mais próximos,
que um dia decidiram que ali não era sítio para candeeiros, antes
para um parque urbano.
Começou por ser feito um
polidesportivo e um pequeno jardim. Depois, em 2008, a autarquia
criou o Orçamento Participativo, convidou os lisboetas a proporem
ideias para a cidade e 125 fregueses da Ajuda chegaram-se à frente
para tornar a segunda fase do Parque Urbano do Rio Seco uma
realidade. A população “estava muito convicta de que era
necessária aqui uma grande alteração”, pois a “zona estava
muito abandonada, era muito mal frequentada, era uma lixeira”,
explica José António Videira, presidente socialista da junta de
freguesia da Ajuda, enquanto olha para as obras da quarta fase do
parque, a decorrerem neste momento. O Parque Urbano do Rio Seco
chegou ao Orçamento Participativo de Lisboa (OPLx) em 2008 e voltou
em 2010 e 2011, também com propostas vencedoras (a terceira e quarta
fases), fazendo deste projeto um autêntico filho da participação
dos lisboetas.
A ideia do OPLx é simples:
qualquer pessoa pode propor o que lhe apetecer para a cidade. Pode
ser mesmo qualquer coisa, desde grandes obras de urbanismo à
abertura de um maid-café que ofereça “fofura e relaxamento” aos
frequentadores. Se a ideia é simples, a concretização nem sempre o
é. Nas sete edições já promovidas foram aprovados 73 projetos,
mas muitos ainda não saíram do papel. Noutros casos, o prazo dado
para a conclusão dos projetos foi largamente ultrapassado. Tome-se
como exemplo a quarta fase do Rio Seco: vencedor da edição de 2011
e com um prazo de execução de 24 meses, ainda hoje está a ser
construído e as obras não estão perto do fim.
José António Videira está
ansioso para ver o parque urbano finalmente pronto, cicatrizando
assim uma ferida aberta na Ajuda há anos. A zona onde decorrem hoje
as obras fica perto do Bairro 2 de Maio e estava longe de ser das
mais apetecíveis de Lisboa. “Esta área estava invadida por
utilizações ilegais de pessoas que tinham aqui animais e hortas”,
diz o autarca. Ali havia pombos, cavalos, bezerros e lixo lado a lado
com legumes. “Teve de haver uma negociação com os moradores do
bairro no sentido de se verificar quais os pombais que deveriam ser
mantidos para o futuro” e quantos cavalos realmente havia, para se
construir uma cavalariça. Tudo isto demorou tempo. “Tinha de haver
uma maior sensibilidade de tratamento. Demorou, mas poderia dizer que
é aceitável. É aceitável dada a complexidade daquilo que estava
aqui envolvido”, afirma.
Um
“processo lentíssimo”
Quem não compreende porque é
que ainda não há um parque infantil na Quinta da Luz é o
presidente da junta de freguesia de Carnide. Esta proposta foi uma
das vencedoras do OPLx de 2012 e, no terreno, ainda nada. “Como é
que projetos aprovados desde 2012 não estão ainda implementados? É
um parque infantil, não é assim nada…” A incredulidade de Fábio
Martins Sousa reflete-se na frase que deixa por acabar. Para o
autarca comunista – o único da cidade -, é incompreensível que a
autarquia demore tanto tempo. “As respostas são muito lentas e
muito difíceis de obter”, diz, lamentando que não haja uma
participação maior das diferentes instituições da cidade. “Devia
haver um presta-contas mensal. Não estou a dizer que a câmara
tivesse de vir cá, mas que houvesse uma informação escrita sobre
isso”, propõe.
Carnide tem três propostas do
OPLx à espera de serem implementadas, mas não está como Belém ou
o Parque das Nações, que nunca receberam um único cêntimo do
Orçamento Participativo. Na freguesia agora presidida por Fábio
Sousa, a primeira proposta aprovada foi a requalificação do Largo
do Coreto, em 2009. As obras só terminaram em agosto de 2013. Onde
antes havia um solitário coreto rodeado de alcatrão usado como
estacionamento de automóveis, hoje há uma praça pedonal com
árvores, esplanadas e arraiais populares. “Nós gostamos muito do
resultado final, sem dúvida alguma que foi um ganho significativo
[face] àquilo que era o espaço antigamente”, diz o jovem
presidente. Para os cafés e restaurantes foi bom porque puderam
montar esplanadas, para os proprietários também porque os
incentivou a recuperarem casas que estavam a cair, e até para a
ficção nacional houve benefícios. “Neste momento está a ser
gravada a novela da SIC ‘Poderosas'” neste largo.
Nem tudo são rosas, no
entanto. Quando Carnide ganhou um centro histórico renovado, perdeu
os lugares de estacionamento. Mesmo ainda antes de as obras no largo
começarem, já freguesia e câmara sabiam que, paralelamente, tinha
de se arranjar uma alternativa para os muitos carros que ali
desaguam. “Os nossos restaurantes são muito conhecidos e vem gente
de toda a cidade e até de fora da cidade para jantar e almoçar em
Carnide”, explica Fábio. O autarca quer criar um parque de
estacionamento não muito longe do largo, um projeto que nada tem a
ver com o Orçamento Participativo mas que devia ter sido feito em
articulação com as obras junto ao coreto. “Estamos em negociações
com a câmara, num processo lentíssimo, a câmara é muito lenta a
dar respostas aos problemas das pessoas”, queixa-se.
O que não parece ter
justificação, pelo menos na opinião de Fábio Sousa, é o projeto
da Azinhaga das Carmelitas, vencedor do OPLx de 2014, ainda não ter
saído da estaca zero. “Ainda nem sequer houve uma reunião
participada, ainda nem foi atribuída uma equipa de projeto nem
nada”, diz o autarca, que alega urgência nesta obra. O motivo é o
mesmo: problemas de estacionamento. A Azinhaga das Carmelitas é uma
rua que começa estreita e acaba estreita, alargando no meio, o que
propicia o parqueamento desordenado. Acima de tudo, pretende-se criar
passeios e alargar a via, mas o presidente da junta não vê isso a
acontecer brevemente. “O processo é burocrático, é moroso e
devia ser mais ágil”, remata.
Notoriedade
do OPLx tem vindo a aumentar
Muitos dos projetos vencedores
do Orçamento Participativo de Lisboa não são implementados sem que
seja feita uma articulação com outras propostas e com a área em
que se inserem. Há muitas “questões burocráticas” que impedem
avanços mais rápidos, admite Valter Ferreira, responsável da
autarquia pelo OPLx. Valter foi convidado a dar uma palestra na
Leading Cities – uma plataforma internacional que procura soluções
para os problemas das cidades – e falou da experiência do
Orçamento Participativo. De 2008 a 2014, este instrumento de gestão
da cidade foi mudando em várias coisas: o número de votos aumentou
sempre, o número de propostas teve oscilações (o mais alto, 927,
foi em 2010), o número de vencedores também nunca foi igual. A
maior alteração nestes anos foi, no entanto, o dinheiro disponível.
Até 2012, a câmara disponibilizava 5 milhões de euros e não
impunha limites ao que cada projeto podia custar. A partir daí, o
dinheiro passou a ser metade (2,5 milhões) e as propostas
dividiram-se entre as que custam até 150 mil e as que custam até
500 mil euros.
A proposta de “construção
de pistas cicláveis” teve sorte. Foi apresentada em 2009, ganhou,
custou 2,7 milhões e um ano depois já havia ciclovias um pouco por
toda a cidade. Nos anos de OPLx, as propostas relativas ao ciclismo
têm sido das mais apresentadas. Se várias delas chegaram a bom
porto, outras tantas ainda estão na gaveta. É o caso do
“alargamento das faixas BUS, permitindo a circulação de
bicicletas” e das “escadas amigas das bicicletas”. Ambas
tiveram o apoio da MUBi (Associação pela Mobilidade Urbana em
Bicicleta), que desespera por ver resultados. “Veja bem, estamos em
2015″, comenta João Pimentel, da direção da MUBi, contando os
anos desde que tudo isto foi aprovado. O alargamento das faixas BUS é
de 2009, as escadas de 2013. E até agora, nada.
“A câmara defrauda os
cidadãos que votam no Orçamento Participativo”, afirma João
Pimentel, que a título pessoal perguntou à autarquia, “há cerca
de dois meses”, em que pé estavam. “Está em processo”, foi a
resposta da câmara, que já não presta contas sobre o avanço
destas propostas “há muito tempo”, diz o dirigente, para quem a
atitude da autarquia é incompreensível. João Pimentel dá o
exemplo do Porto, onde a câmara autorizou os motociclos a circularem
nas faixas reservadas aos transportes públicos logo a seguir à
última alteração ao Código da Estrada, no início de 2014. Do
outro lado da moeda há o exemplo de Oeiras, cujos moradores
aprovaram um projeto de ciclovia para a Marginal no Orçamento
Participativo (2308 votos) e a câmara recusa-se a implementá-lo.
Uma das conclusões do
relatório da Leading Cities, que vai ser lançado este mês, é
precisamente a de que “os cidadãos são impacientes por
resultados”, o que os presidentes de junta sentem na pele, porque é
a eles que a população exige contas. “As pessoas têm muitas
ideias, mas querem ver concluídos os projetos que ganharam”,
afirma José António Videira. “Acabam por esmorecer, porque dizem
‘ah já ganhámos quatro, mas há aqui dois…um não está
terminado, um está em vias de ser resolvido. Porque é que a gente
se vai mobilizar para um quinto ou um sexto?’” O sentimento é
partilhado por João Pimentel, que admite estar “um bocado
escaldado” e já não ter grande vontade de apresentar novas
propostas ao OPLx. “Em princípio, é algo nobre” dar aos
cidadãos a possibilidade de escolherem onde querem que o dinheiro de
todos seja investido, diz. Mas “assim não faz sentido, até é
contraproducente”, argumenta.
Valter Ferreira aceita as
críticas, mas diz também que tem uma interpretação própria de
quando começam a contar os prazos previstos. Para os votantes pode
ser o momento em que uma proposta é declarada vencedora, mas para a
câmara o tempo só começa a contar quando se começa, de facto, a
fazer algum trabalho. O chefe da Divisão de Inovação
Organizacional e Participação da autarquia garante que as faixas
BUS avançam ainda este ano, tal como o projeto que visa acabar com
as barreiras arquitectónicas a deficientes em cadeiras de rodas
entre o Marquês de Pombal e Entrecampos (aprovado em 2012). E ainda
o Cinema Europa, que vem do OPLx de 2009.
Vantagens
e riscos de um processo participativo
O Orçamento Participativo de
Lisboa foi um projeto lançado pelo executivo de António Costa,
embora a ideia tenha partido de baixo, dos serviços da câmara. O
agora candidato socialista a primeiro-ministro quer levar o mesmo
conceito para o Orçamento do Estado, pondo os cidadãos a pensar e a
decidir o que deve o país fazer a parte do dinheiro que tem.
Nas mais de 1.500 cidades em
que estão implementados no mundo inteiro, os orçamentos
participativos podem ser instrumentos de gestão com um real impacto.
Lisboa, por exemplo, já ganhou ciclovias, um corredor verde entre o
Parque Eduardo VII e Monsanto, uma casa para os animais, a incubadora
de empresas Startup Lisboa, um novo ordenamento urbanístico na
Alameda da Cidade Universitária, a dinamização cultural da
Mouraria e, mais recentemente, um centro de inovação no mesmo
bairro. Além disso, apesar de criticar a lentidão do processo,
Fábio Martins Sousa reconhece que as obras no Largo do Coreto
melhoraram a freguesia de Carnide. Tanto assim é que, este ano, está
a mobilizar os moradores para votarem num projeto de requalificação
de algumas ruas adjacentes ao largo.
A experiência de abrir os
orçamentos de um Estado à participação da população não é
muito comum. O Brasil fá-lo, mas é caso raro, porque os
constrangimentos que se verificam numa cidade são multiplicados num
país. As freguesias de Ajuda e Carnide, por exemplo, não são das
mais populosas de Lisboa, tal como não são das mais ricas, o que,
segundo os autarcas que as lideram, as prejudica face às restantes.
“A gestão do processo, na nossa opinião, não é das melhores,
porque está feito para as massas, para quem realmente se consegue
mobilizar e votar”, afirma Fábio Sousa, para quem “nunca na vida
o centro histórico tinha conseguido os votos” necessários “se
não tivesse sido toda a freguesia” a mexer-se. Também na Ajuda, o
primeiro projeto para o Rio Seco obteve 125 votos e venceu,
beneficiando do facto de o OPLx não ser, na altura, muito conhecido.
Na edição de 2014, o projeto vencedor com menos votação teve o
apoio de 393 pessoas, enquanto o mais apoiado teve perto de cinco mil
votos.
Cinema
Europa quase a avançar
Manuel de Queiroz
sabe bem o que é ter de se mexer para que um projeto levado ao
Orçamento Participativo seja vencedor. Em 2009, ele e outros membros
do grupo SOS Cinema Europa, vendo que já não seria possível salvar
o edifício que durante anos tinha sido a casa da sétima arte em
Campo de Ourique, propuseram à câmara que ficasse com o rés-do-chão
do futuro prédio para ali fazer um equipamento cultural. “Houve um
esforço grande em contactos pessoais”, lembra Manuel, que andou em
“brigadas de rua a explicar às pessoas o que estava em causa” e,
assim, conseguiu convencer 475 vizinhos a votar. Antes, num
abaixo-assinado destinado a salvar o prédio, haviam conseguido entre
duas mil e três mil assinaturas.
Esse projeto vai
finalmente andar para a frente nos próximos meses. O edifício está
quase pronto, o projeto para o centro cultural está a ser ultimado e
Pedro Cegonho espera que as obras comecem em janeiro de 2016, para
que pouco depois já se possa usar aquele rés-do-chão como
biblioteca, auditório e casa das artes do bairro. O autarca de Campo
de Ourique acredita que este é um equipamento que “faz muito
sentido” naquele bairro, porque há movimentos culturais dispersos
por ali que até agora não tinham um espaço comum onde convergir.
“Ver as coisas a acontecer é uma satisfação muito grande”,
diz. Manuel de Queiroz concorda: “Estamos numa expectativa enorme
para ver isto aberto”.
Salvar
a cidade da inacessibilidade
Um outro projeto que
Valter Ferreira garantiu ao Observador estar prestes a aparecer no
terreno é o Lisboa Acessível, proposta que visa eliminar todas as
barreiras arquitectónicas com que as pessoas em cadeira de rodas se
deparam entre o Marquês de Pombal e Entrecampos. Ou seja, as 81
passadeiras e as 16 paragens de autocarro deste eixo vão ser
adaptadas, bem como tudo o que é obstáulo (pilaretes e mupis) vai
desaparecer. Segundo o Decreto-Lei 163/2006, que regula as
acessibilidades de espaços públicos, estas alterações deviam
ocorrer num prazo máximo de 10 anos, ou seja, até 2016. Lisboa vai
fazê-lo neste pequeno trecho da cidade, a pedido dos cidadãos.
Em 2012, a
Associação Salvador e outras oito organizações que lutam pelos
direitos dos cidadãos com mobilidade condicionada apresentaram esta
proposta ao Orçamento Participativo. Recebeu 2079 votos e tinha um
prazo de execução de 18 meses. “O projeto integra uma zona onde
estão a ser estudadas alterações ao tráfego e tudo tem que estar
em sintonia. Esta é a justificação da câmara para o atraso na
obra”, explica Mariana Lopes da Costa, diretora-geral da Associação
Salvador, que diz estar à espera de um contacto que a autarquia
prometeu fazer há cerca de dois meses.
Desde que esta
proposta venceu o OPLx, os serviços da câmara têm estado a
perceber exatamente quais são as barreiras arquitectónicas daquele
eixo. Ao mesmo tempo, queixa-se Mariana, que lembra o decreto-Lei de
2006, “continuam a abrir novos espaços que não cumprem a lei das
acessibilidades e que não sabemos como passam nas fiscalizações”.
Isto, conjugado com o tempo que já decorreu desde 2012, levou a
Associação Salvador a nunca mais ter concorrido ao OPLx. “Ideias
para melhorar a cidade para a tornar mais inclusiva não nos faltam”,
afirma Mariana Lopes da Costa. No entanto, a responsável sublinha
também que “é inconcebível uma obrigação que deveria ser do
Estado e câmaras municipais ter que ser submetida a votos num
orçamento participativo e, mesmo depois de ser uma das vencedoras e
dever estar concluída em maio de 2014, ter passado mais de um ano e
ainda não ter sido lançado o concurso público para começar a
obra”.
Tal como com o
Cinema Europa, com os projetos já aprovados para Carnide e com a
quarta fase do Rio Seco, a Associação Salvador considera que estes
atrasos contribuem para ” descredibilizar a câmara e o Orçamento
Participativo”, o que desvirtua aquilo que é considerado
globalmente como um instrumento que traz mais transparência e
democracia à gestão autárquica.
Enquanto o cinema
não abre, as passadeiras não são adaptadas, o parque infantil da
Quinta da Luz não aparece e outros projetos aguardam para saltar do
papel para a realidade, a edição do Orçamento Participativo de
Lisboa de 2015 continua. Até este domingo é a fase em que pode
apresentar as propostas que entender. Segue-se uma avaliação por
parte da câmara e, mais tarde, a votação do público.
Fotografias Fábio
Pinto/Observador, Lusa, Global Imagens
Infografia Milton
Cappelletti
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