Daniel
Oliveira e a justiça self-service
JOÃO MIGUEL TAVARES
16/06/2015 / PÚBLICO
Daniel Oliveira
escreveu um artigo no Expresso em resposta ao meu texto de
quinta-feira, onde eu acusava os numerosos comentadores que elogiaram
a coerência e a coragem de José Sócrates em recusar a pulseira
electrónica de estarem, na verdade, a fazer figas para que a justiça
não venha a conseguir provar as suas acusações.
Daniel confirma o
sentimento – “deixo-lhe o meu desejo: que se prove, sem margem
para dúvidas, que José Sócrates não fez o que se diz que fez (…)
porque isso significaria que Portugal não tinha tido um
primeiro-ministro corrupto” – mas depois avança para uma
reflexão sobre a justiça que eu não teria qualquer dificuldade em
subscrever.
E esta é a parte
realmente curiosa: porque é que eu discordo profundamente da atitude
de Daniel Oliveira em relação a José Sócrates, se depois concordo
com a sua argumentação em relação às críticas que ele faz à
justiça portuguesa? A resposta a esta pergunta é essencial para
desmontar a retórica piedosa em redor do ex-primeiro-ministro. E a
resposta é esta: porque as questões da justiça e da sua relação
com a comunicação social são manipuladas ao sabor das nossas
conveniências e das nossas convicções. A coisa funciona da
seguinte forma: se eu acredito (ou quero acreditar) que alguém é
culpado – por exemplo, Ricardo Salgado ou Paulo Portas –, eu
centro a minha atenção nos indícios de culpa dessas pessoas e
desvalorizo todas as questões em torno da presunção de inocência
ou das fugas ao segredo de justiça; se, pelo contrário, eu acredito
(ou quero acreditar) que alguém é inocente – por exemplo, José
Sócrates –, aí as questões da presunção de inocência ou das
fugas ao segredo de justiça passam a ocupar o primeiro plano da
minha argumentação. Se eu não gosto do acusado, discuto o caso. Se
eu gosto do acusado, discuto a justiça.
Esta é uma forma
simples, mas muito eficaz, de escapar àquilo que não nos interessa
debater. Até porque as fugas ao segredo de justiça são um trunfo
que resulta sempre: não há forma de poderem ser defendidas por
alguém com dois dedos de testa. É óbvio que são uma vergonha. É
óbvio que não deviam acontecer. É óbvio que são uma tentativa de
manipular a opinião pública. Só que, no caso em apreço, também é
óbvio que são um argumento que dá imenso jeito a certos
comentadores para não discutirem o que mais importa: a credibilidade
de José Sócrates, a (in)coerência da sua defesa e, em última
análise, a forma como ele se moveu e se impôs na política
portuguesa – o que inclui igualmente o modo como conseguiu cativar
tantos colunistas, que menorizaram o perigo que ele representava para
Portugal, fascinados que estavam pelo seu carisma, pela sua voz de
timoneiro e pela sua “coragem”.
Eu só conheço duas
formas de não nos embrulharmos nesta confusão: 1) não entressachar
as regras da justiça com as regras do espaço público, porque os
mesmos que temem a justicialização da política são muitas vezes
os que promovem a justicialização da comunicação social,
invocando recorrentemente o sacrossanto princípio da presunção de
inocência no debate mediático, como se um comentador estivesse
submetido às regras de um juiz e só pudesse opinar sobre um caso
após sentença transitada em julgado); 2) manter sempre uma linha de
argumentação homogénea, que seja válida tanto para Sócrates como
para Salgado, porque a justiça não pode ser usada em regime
self-service, onde cada um só tira o que lhe apetece, consoante o
apetite e a companhia.
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