Parte da simbologia
da TAP estará em exposição no Museu do Design e da Moda (Mude)
|
A
menina bonita de Portugal
FÉLIX RIBEIRO (Com Raquel
Almeida Correia) e NUNO FERREIRA SANTOS (fotografia)
PÚBLICO / Revista 2
Vender a TAP é uma decisão
que paira há mais de 20 anos sobre aquele que é um dos mais
preciosos símbolos portugueses, “uma bandeira de Portugal no céu
das marcas”.
Foi
profética. Margaret Thatcher tirou da bolsa um lenço de papel
branco para cobrir a cauda do 747 diante si. “Voamos com a bandeira
britânica, não com esta coisa horrenda”. Estávamos em 1997, numa
conferência do Partido Conservador britânico. Thatcher acabara de
ver as maquetas dos novos desenhos da British Airways para a cauda
dos seus aviões. A operadora estava em franca expansão e queria
agarrar a frente da onda globalizadora no sector. Abandonou por isso
a tradicional Union Jack e trocou-a por uma série desenhos étnicos,
ousados, imediatamente impopulares. A operadora, aliás, voltou atrás
poucos anos depois, recuperou as cores tradicionais da bandeira
britânica, que ainda hoje usa, e deu razão a Thatcher e ao seu
lenço branco.
Thatcher estava
certa, mas não inocente. Fora ela quem privatizara a British Airways
na década de 80, para além de um grande número de outras empresas
sob o controlo do Estado britânico. A opinião pública não se
esquecera disso. O caso das caudas da British fez surgir um debate no
Reino Unido em torno da representação da identidade nacional no
exterior e Thatcher foi acusada de cinismo. Se queria a bandeira nas
caudas da British Airways, não a deveria ter privatizado.
O que estava em
causa na British Airways não era um projecto estético falhado,
explica à Revista 2 Carlos Coelho, o autor da imagem da TAP que foi
para os ares em 2005, quando a empresa fez 60 anos. “Perderam a
identidade. A ideia de que a British Airways é uma companhia do
mundo é falsa”.
Em Portugal, o
debate sobre a privatização da companhia de bandeira durou quase
duas décadas. Até que, na quinta-feira, o Governo anunciou a venda
de 61% da TAP ao consórcio de David Neeleman, dono da Azul, e de
Humberto Pedrosa, o empresário português que controla o grupo
Barraqueiro. Os novos donos da transportadora aérea ofereceram, para
já, 354 milhões de euros (que podem crescer para quase 500
milhões), mas só dão garantias quanto à manutenção da sede da
companhia e de rotas estratégicas durante dez anos.
A conversa com
Carlos Coelho acontece num dos gabinetes da sua empresa, a Ivity, a
poucos metros das duas torres brancas que em breve se tornarão numa
das novas sedes da EDP em Lisboa. O terceiro andar da Ivity é uma
obra de imaginação quase pueril, certamente globalizada.
Encontramos uma fuselagem vinda do Reino Unido, à saída do
elevador, cujo interior funciona como sala de conferências por
Skype. Noutra divisão há uma máquina-decoração, a Gertrudes
3000, que finge controlar a empresa. Lá fora, as duas torres da EDP
parecem feitas de luz. Há uma sensação palpitante de estranheza.
A EDP foi
privatizada em 2011. Seguiram-se a REN e a ANA, em 2012, os CTT em
2013 e, pelo meio, a participação que o Estado detinha em vários
negócios através da Caixa Geral de Depósitos. Só a privatização
da EGF, já no final de 2014, vai para um grupo português. Por ela,
a Mota-Engil paga quase 150 milhões de euros, uma gota de água num
universo de quase 9300 milhões que o Estado encaixou desde 2011 com
o programa de privatizações. Há 20 anos que a TAP está para ser
privatizada também. Mas só com o actual Governo é que está em
causa a venda total do grupo. Numa primeira fase, serão vendidos 66%
do capital do Estado. O restante seguirá no período máximo de dois
anos. Para Carlos Coelho, vender a TAP não é a mesma coisa do que
uma outra empresa do Estado. É uma questão de “alinhamento
identitário”, diz. “A TAP é uma bandeira de Portugal no céu
das marcas, onde voam nacionalidades.”
Carlos Coelho sabe
do que fala quando fala de marcas de aviação. Quando estava a
preparar a mais recente imagem da TAP, foi pressionado para usar um
tema mais fresco, mais azul, “verde e encarnado não, que são
cores foleiras”. A pressão não foi ostensiva e a equipa de Carlos
Coelho acabou por fazer o contrário. Reforçou a imagem do país e
acentuou a palavra Portugal. Mais do que isso: as cores da bandeira
nacional foram engrossadas, a bold, na cauda do avião, no mesmo
local em que Thatcher tapou com um lenço as imagens dispersas da
British Airways. A marca TAP parece ter-se tornado num caso de paixão
para Carlos Coelho. “Ela está no céu. As outras estão na terra.
Estas são as nossas caravelas de agora. Isto é tudo muito
romântico, mas é um bocado assim. Nós somos um país de ligações.”
Parte da oposição
à venda da TAP é ideológica e o que está em causa não é
inteiramente uma questão de soberania. Carlos Jalali, politólogo,
explica que essa é uma das razões pelas quais os processos de
privatização são historicamente pouco decisivos em períodos de
eleições. É património que sai das mãos do Estado, sim, mas não
há necessariamente uma crise de identidade. “Nós não temos
questões nacionais prementes que nos dividam, não é como em
Espanha, onde a questão da identidade é uma questão que se vive”,
diz Jalali à Revista 2. “Os eleitores percebem que a oposição à
privatização da TAP é também uma questão de manutenção da
participação pública nestas empresas”. Tal como Thatcher no
Reino Unido, Cavaco Silva não saiu prejudicado do período de
privatizações que encabeçou nos anos 90. A sensação de
desapropriação até se poderia ter ela própria desvanecido, se é
que alguma vez existiu, não fosse pela imagem recente do
desmantelamento de uma das grandes empresas privatizadas na altura, a
Portugal Telecom.
Esboços para as
primeiras fardas
|
Há muito na TAP,
sobretudo na história e relação que Portugal tem com a operadora
de bandeira nacional, que faz com que a sua privatização seja
diferente das restantes. A começar pelo momento em que é decidida.
“A TAP representa o culminar desse processo de privatizações —
o último reduto —, que as forças críticas a muitas destas
privatizações e ao abandono do papel do Estado e dos símbolos do
Estado-Nação procuram, em desespero de causa, evitar”, diz por
escrito à Revista 2 o economista Ricardo Cabral. A operadora aérea
atinge também uma dimensão estratégica, que, pelo menos em parte,
continua desconhecida dos portugueses por oposição aos números da
dívida do grupo. Segundo Ricardo Cabral, por exemplo, a operadora é
a porta para um grande volume de exportações indirectas e para a
entrada de mais de 11 mil milhões de euros em divisas estrangeiras.
É algo decisivo para Carlos Coelho. “A TAP divide-me no meu
pensamento liberal. Se, por um lado, eu não acredito na intervenção
do Estado na economia, de forma directa, uma companhia aérea de
bandeira é um elemento fundamental num país.”
Mas o que é que se
haveria de fazer pela TAP? O tema é frequentemente opaco. O
consenso, contudo, sempre foi o de que alguma coisa teria de ser
feita. A empresa está tecnicamente falida e há muito que era
necessária uma solução. Fosse ela na esfera do privado ou do
público. Nos últimos anos, a TAP tem variado entre lucros e
prejuízos, com bons resultados sempre muito agarrados ao transporte
aéreo e outros ruinosos devido ao negócio da compra de uma unidade
de manutenção à falida Varig, em tempos a grande operadora
brasileira. Uma operação que está ainda a ser investigada pela
Procuradoria-Geral da República.
Um dos muitos
cartazes que irão constar da exposição do Mude
|
Os problemas
agravaram-se em 2014. A actividade mais lucrativa do grupo começou a
derrapar pelas mais diversas causas: mau planeamento na entrega de
seis novos aviões e, com isso, problemas na operação durante a
época alta; uma queda acentuada das tarifas, uma onda de contestação
interna do pessoal de voo e os 120 milhões de euros que ainda não
foram recuperados da Venezuela e de Angola. Todos estes efeitos
negativos fizeram com que o negócio da aviação apresentasse, em
2014, o maior prejuízo de sempre: 46,4 milhões de euros. No grupo,
os resultados foram ainda piores: 85,1 milhões de euros negativos,
fruto do negócio da manutenção no Brasil. A dívida cresceu para
1062 milhões de euros. O mais grave, em termos de passivo, é que
dominam os empréstimos de curto prazo, com datas de vencimento
apertadas. Depois de 20 anos de indefinição, entre intervenções
do Estado, possibilidades de privatização parcial e total, a
situação agravava-se.
Há algum simbolismo
na prolongada indeterminação da TAP. Bárbara Coutinho, directora
do Museu do Design e da Moda (Mude), prepara por estes dias uma
exposição sobre a imagem da operadora aérea portuguesa. Diz à
Revista 2 que a história da representação da TAP foi uma luta
constante entre a globalização e o património português. “Há
aqui um ideário que se constrói e cria sempre essa tensão. Uma
ideia modernizadora e globalizante, e depois, ao mesmo tempo, uma
intenção de ligar a TAP de forma clara a uma marca nacional.”
Este jogo de forças não lhe é exclusivo. Outras transportadoras de
bandeira promoveram durante décadas a sua identidade nacional e
agora concorrem num mercado altamente competitivo e globalizado. “A
companhia aérea como símbolo nacional de Portugal no ar, do Reino
Unido no ar, da França no ar, é algo que se alimentou durante muito
tempo e que agora colide com as dinâmicas da globalização”,
afirma Carlos Jalali.
A diferença é que
a TAP se manteve no Estado à medida que a esmagadora maioria das
outras companhias seguia tendência contrária. As sucessivas crises
da aviação criaram a necessidade de muitas se reestruturarem e
capitalizarem através de privatizações. Outras fundiram-se e
muitas faliram. Já as tentativas de venda da TAP caíram todas pelo
caminho. Aconteceu primeiro com a Swissair, em 2001, dez anos depois
de se começar a pensar pela primeira vez em privatizar a operadora,
no Governo de Cavaco Silva. A queda do negócio foi mais um duro
golpe nas contas já desgastadas da TAP. Mais recentemente foi Germán
Efromovich, rejeitado em 2012 por falta de garantias financeiras e
novamente candidato este ano.
A exposição da TAP
no Mude abre no dia 15 de Julho. Os artigos ainda estão a ser
catalogados e a maioria dos cartazes estão empilhados no cimo das
mesas. Bárbara Coutinho vasculha por exemplos daquilo a que
prudentemente chama, por agora, “época de ouro” da TAP. Os anos
60 e 70. Este período foi, de facto, a época de maior prosperidade
da companhia. E não só na sua imagem — a directora do Mude diz,
entusiasmadamente, que este foi o período em que a empresa começou
a ser trabalhada pelas mãos de designers como Daciano Costa.
Junte-se também a década de 50 e tem-se o grande período de
afirmação da TAP. Têm-se também os últimos anos de prosperidade
e crescimento financeiro. Uma situação a que a companhia nunca mais
regressaria depois do 25 de Abril.
Coincidentemente, as
décadas de maior riqueza na TAP foram aquelas em que a companhia
teve uma gestão privada. Mas a transportadora não começa assim,
nem é com ela que começa a história aérea comercial portuguesa.
Antes da TAP, Portugal já tivera um voo titubeante daquela que foi a
sua primeira companhia aérea comercial, os Serviços Aéreos
Portugueses, SAP, parte capital alemão, parte português. Faziam a
ligação aérea entre Lisboa, Madrid e Sevilha. Era todavia muito
cedo para uma operadora portuguesa e os SAP acabariam por encerrar em
1930 . Na época não houve acordo sobre as operações aéreas entre
Portugal e Espanha, como escrevem Alexandre Coutinho e Alda Rocha no
livro Tap Air Portugal, a História da Companhia Aérea, editado pela
Contra a Corrente.
Os SAP desapareceram
sem grande brilho. Mas quatro anos depois, ainda a TAP não era uma
possibilidade, surgia a icónica Aero Portuguesa. Tratava-se da única
companhia aérea que fazia ligações regulares entre a Europa e o
Norte de África durante a Segunda Guerra Mundial. Especificamente
Lisboa, Tânger e Casablanca. O avião para Lisboa que Claude Rains
debate com Humphrey Bogart no filme Casablanca é um Dakota da Aero
Portuguesa. Não que isso seja mencionado no filme. No entanto, esta
companhia, que mais tarde seria absorvida pela TAP, desempenhou um
papel importante na travessia dos exilados da guerra.
Em 1945, Humberto
Delgado propõe a Salazar a criação de uma companhia aérea
portuguesa que fizesse a ligação entre Portugal e os territórios
ultramarinos. A guerra na Europa estava prestes a terminar e o país,
entretanto, criara órgãos de Estado para a gestão da aviação
comercial. Salazar, diz-se, aceita imediatamente a proposta de
Humberto Delgado. Era criada a TAP – Transportes Aéreos
Portugueses. Os seus primeiros aviões seriam os Dakota DC-3,
bimotores, adaptados da sua origem militar para a aviação
comercial. “Quando a TAP é criada, ela é criada como um
serviço”, diz à Revista 2 Alexandre Coutinho, director da revista
Avião e co-autor do livro que retrata a história da TAP. “O que
dá origem à TAP não é uma motivação económica, é uma
motivação colonial.”
O comandante Brás
de Oliveira, na sua casa em Sesimbra, entre artigos que serão
expostos no Museu do Design
|
Roque Brás de
Oliveira tem 92 anos e uma memória prodigiosa. Na verdade, Roque, o
primeiro nome, é pouco utilizado. O seu nome próprio é já de há
muito tempo Comandante. Foi o último a sê-lo na Aero Portuguesa e
fez parte da segunda geração de pilotos da TAP. Entrou em 1947 na
companhia, pouco depois dos mitificados 11 de Inglaterra, o primeiro
grupo de comandantes da TAP. Brás de Oliveira tem um discurso
perfeitamente afinado. Vai percorrendo-o quase por inteiro, por vezes
com trechos idênticos ao registo triunfalista da sua vida descrito
pela jornalista Rita Tamagnini, no livro Aeronauta Entre o Céu e o
Mar.
É uma das poucas
testemunhas vivas da origem da companhia e daquela que foi a maior
aventura da TAP: A Linha Aérea Imperial. Tratava-se da ligação
mais longa no mundo feita em DC-3. Perto de 12 mil quilómetros de
trajecto entre Lisboa e, então, Lourenço Marques, a bimotor.
Fazia-se 12 escalas e uma viagem de ida e volta demorava 15 dias. A
TAP era a única companhia no mundo a fazer esta ligação em África.
Nada disto era lucrativo, mas a principal preocupação era então
manter vivo o nervo aéreo entre Portugal e as colónias. É uma
surpresa que nenhum avião se tivesse despenhado durante este
período. Os tripulantes da Pan Am ficaram estupefactos, conta Brás
de Oliveira. “Fazemos isto em DC-3”, disse-lhes num hotel em
África, num dia que se encontraram numa escala. “Boa anedota”,
responderam-lhe.
As rotas de África,
contudo, acabariam por se tornar mais tarde na maior fonte de
rendimento para a TAP e o seu fim acabaria por ser dramático para a
companhia. Com a descolonização, a operadora perde 40% do seu
tráfego só nessas ligações. Acabaria por reequilibrar as
operações de voo nas décadas seguintes, a troco de cortes,
despedimentos e reestruturações de vários tipos. Mas as
ramificações da empresa e a dívida acumulada durante esse período
acabariam por ser determinantes para o estado da empresa agora. Os
antigos trabalhadores da empresa contactados pela Revista 2 afirmam
que não se aperceberam de que o grupo começava acumular dívidas e
capitais negativos. Durante as décadas de 80 e 90, aliás, o grupo
vive os seus períodos de maior crise. As administrações vão-se
sucedendo em catadupa, o que é tido como uma das principais razões
para a instabilidade financeira na TAP.
Brás de Oliveira
fez o seu último voo em 1981, mas nunca ficou completamente afastado
da TAP. Tentou aliás, em privado, influenciar um dos mais
importantes acontecimentos recentes na empresa, quando o Sindicato
dos Pilotos da Avição Civil (SPAC), que Brás de Oliveira e outros
fundaram, fez uma greve de dez dias em Maio de 2015. “Estar dez
dias em greve é a maior estupidez que há”, conta à Revista 2.
“Depois, ainda por cima, o [Hélder] Santinhos: ‘ei pá, bestial,
perdemos 30 milhões’. Eu disse-lhe simplesmente: ‘Estás doido.
Não sabes o que estás a pensar. Estás a destruir o sindicato e
estás a destruir uma empresa.”
De novo para o
pré-25 de Abril. Em 1953, a TAP precisava de capital e Salazar
decidiu que o melhor caminho seria transformá-la em sociedade
anónima. Era a sua privatização. O Estado só voltaria a controlar
a TAP em 1975, através de uma nacionalização a dois tempos,
directa e indirecta. Na década de 50, o Governo chamou os principais
grupos económicos portugueses para participarem na aquisição de
capital da operadora. Os relatos recolhidos por Alexandre Coutinho e
Alda Rocha apontam para que tenha havido um banqueiro português que
não aceitou o convite de Salazar. Era Ricardo Espírito Santo Silva,
tio de Ricardo Salgado e José Maria Ricciardi, décadas antes de o
Grupo Espírito Santo surgir na calha como um dos possíveis
candidatos à privatização da TAP, já na década de 90.
Salazar terá então
chamado Ricardo Espírito Santo para o convencer a entrar na empresa.
Quando o banqueiro lhe disse que o negócio não lhe interessava e
era mau, Salazar terá respondido que se este queria entrar nos bons
negócios, teria primeiro de comprar alguns maus. As palavras que lhe
são atribuídas: “Ora vá lá meter-se na TAP...” E foi isso
mesmo que aconteceu. “Mostra bem como a economia era bastante
controlada na altura”, diz Alexandre Coutinho, “os empresários
só podiam fazer aquilo que o Governo autorizava.
Orloff Esteves
mostra álbum de recordações. Era o chefe de cabine no voo que foi
desviado por Palma Inácio em 1961
|
A TAP crescia. Nos
anos seguintes, a companhia aérea troca os DC-3 em África por Dc-4
Skymaster, com quatro motores, e encomenda três Lockheed Super
Constellation, os topo de gama desse período em matéria de longo
curso. Eram os percursores da era do jacto e o maior símbolo da
modernização da operadora. Seria um destes aviões que, em Novembro
de 1961, é desviado por Palma Inácio, que comandava outros quatro
piratas do ar. A operação foi concebida por Henrique Galvão, que
apenas meses antes capturara o navio Santa Maria. O objectivo da
missão foi cumprido: o avião da TAP rasou Lisboa, Barreiro,
Setúbal, Beja e Faro e lançou dezenas de milhares de panfletos a
apelar ao combate ao Estado Novo e Salazar.
Orloff Esteves era o
chefe de cabine no voo que foi desviado. Antes de contar a história
do sequestro, Orloff percorrera umas fotografias do comandante José
Marcelino a voar a uma altitude absurda na Costa da Caparica. “Andou
com o avião tão baixinho que as pessoas até fugiram da praia”,
disse à Revista 2. “Olhem à altura que nós andávamos com o
Super Constellation, íamos a 14 metros da água, nem isso.”
Foi por isso uma
sorte que o comandante que levava o Super Constellation no dia 10 de
Novembro de 61 acabaria por ser Marcelino. “Isto poderia ter sido
um acidente do caraças. Era o Marcelino que por acaso lá estava”,
diz Orloff. Garante que seria pior se tivessem sido uns pilotos
belgas que por ali andavam. “Eram uns descontraídos do caraças”,
afirma. Poderiam ter deixado Palma Inácio voar e ele, diz Orloff,
“tinha a mania das grandezas”. “Tinha a mania que tinha o
brevet, mas o gajo nunca passou de mecânico.”
Orloff Esteves
trabalhou 40 anos na TAP. Tem agora 88 anos e vê os desenvolvimentos
políticos com desconfiança. Diz que não percebe por completo a
questão económica, como disseram à Revista 2 outros antigos
trabalhadores da empresa. Orloff entrou na TAP em 53 e nada o poderia
preparar para o que vinha a acontecer com a indústria da aviação.
“Quando veio o primeiro Super Constellation, lembro-me que fui ao
aeroporto e entrei no avião. Eu olhei para aquilo e disse: ‘Ena
pá. Ao ponto que chegou a aviação. Onde é que isto vai chegar?”.
A TAP, reconhece-o, tem de fazer alguma coisa para se manter à tona
na nova indústria, mais competitiva e globalizada. Mas nem Orloff
nem os cerca de 150 antigos trabalhadores com que se encontra
anualmente querem que a empresa seja privatizada.
A alternativa,
contudo, também não lhes agradaria. Além da venda a privados, há
um outro cenário possível para tirar a empresa da asfixia: a
injecção de dinheiro do Estado, como aconteceu em 1994, quando
entraram nos cofres da TAP 180 mil milhões de escudos (1450 milhões
de euros a valores actuais) do accionista público. Mas, à
semelhança do que aconteceu nessa altura, esta capitalização
estatal teria de ser necessariamente acompanhada de uma
reestruturação profunda, com a anuência obrigatória da Comissão
Europeia. Isto porque as regras comunitárias impedem ajudas deste
tipo sem que sejam assumidos alguns compromissos.
Há 20 anos,
Bruxelas impôs a redução de quase 2600 trabalhadores, a supressão
de rotas na Europa e a eliminação de seis aviões, por exemplo. Se
isto voltasse a acontecer, é melhor a TAP ir buscar capital a outro
lado, diz Orloff Esteves. “Eu acho que a ela é um bocadinho minha,
como eu sou dela. Mas também, como as pessoas que têm uma doença
grave e definham e definham... Isso não quero.”
O fantasma da
reestruturação da TAP foi sempre o grande argumento usado pelo
Governo para prosseguir com a privatização. José Maridalho esteve
nos confrontos que explodiram entre trabalhadores e polícia em 1993,
quando se suspenderam os acordos da empresa. Já tinha estado nas
lutas laborais de 73, ano em que os trabalhadores da TAP estiveram
num dos principais momentos de reivindicação do pré-25 de Abril.
Deu “à sola” nos dois confrontos. O pior, diz, foi o
último.“Houve agressões de parte-a-parte. Vidros partidos, pedras
arremessadas, cocktails molotov.” Maridalho continua sindicalista
mesmo na reforma. Tem um discurso combativo mas independente,
assegura. É da opinião, por exemplo, de que as contas do grupo
foram manipuladas para sobrevalorizarem o transporte aéreo. Mas
aceita a privatização. Não se sente bem em dizer “ao povo
português para pagar a viabilização da TAP” e a única coisa que
deseja é uma boa gestão. Não a terá de pedir agora ao Estado
português.
Com Raquel Almeida
Correia
Sem comentários:
Enviar um comentário