quinta-feira, 25 de junho de 2015

Seis meses a lutar pelo quê? / JOÃO MIGUEL TAVARES


Seis meses a lutar pelo quê?
JOÃO MIGUEL TAVARES 25/06/2015 - 00:09

Faz falta uma campanha europeia de prevenção deficitária: troque-se o “Se conduzir, não beba” por “Se quer mandar, não deva”, e pode ser que a ideia entre finalmente na cabeça dos gregos — e de muitos portugueses.

Na semana passada, Mariana Vieira da Silva, socióloga e membro da Comissão Política Nacional do PS, deu uma entrevista ao jornal i onde explicitava uma teoria — ou, para utilizarmos uma das palavras favoritas do vocabulário político pós-troika, uma “narrativa” — que já foi várias vezes sugerida por António Costa. A saber: “Assumimos com demasiada facilidade uma ideia de culpa e de responsabilidade única nossa perante a crise. A direita foi eficaz nessa construção da ideia que estávamos neste lugar por culpa nossa.”

Esta tese interessa-me porque ela define duas formas bastante distintas de argumentar e comunicar politicamente nesta época de crise. Uma das formas é dizer: “Chegámos aqui por culpa própria.” A outra forma é dizer: “Chegámos aqui sobretudo por culpa dos outros.” A direita, como sugere Mariana Vieira da Silva, é adepta da primeira formulação; a esquerda defende a segunda, podendo ainda argumentar, em ambientes mata-frades, que o conceito judaico-cristã de culpa não tem aplicação em matérias económicas.

Claro está que isto é como nas discussões entre casais — a avaliação da culpa é matéria altamente subjectiva e dificilmente aferível. A culpa, como dirá qualquer conselheiro matrimonial, é sempre dos dois. Mas mesmo colocando de lado questões morais e teológicas, que nos instigam a ver a trave no nosso olho antes de procurar o argueiro no olho dos outros (está no evangelho de Mateus: “Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e então verás para tirar o argueiro do olho do teu irmão”), a assunção da culpa individual, tendo em conta o momento político que atravessamos, é bastante mais útil e mobilizadora do que atribuir a nossa triste condição à senhora Merkel e às políticas neoliberais.

É verdade que nós podemos sempre entreter-nos com a bonita actividade do passa-culpas, recuando ano após ano, década após década, século após século, milénio após milénio, até chegarmos a Adão e Eva e descobrirmos que o IVA na restauração só subiu para 23% por causa da serpente e da maçã, já que antes comia-se à borla no Paraíso. Mas não querendo desvalorizar o carácter catártico de tal empreendimento e o conforto psicológico que ele confere, a sua utilidade prática é muito duvidosa. Basta olhar para a Grécia.

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Ao fim de seis meses de negociações parece que a Europa está agora, felizmente, à beira de um acordo. Ou então, não — à hora a que escrevo é impossível saber. Mas há uma coisa que já se sabe: aquilo que está em cima da mesa como rascunho de acordo é um brutal aumento de impostos. Se é uma austeridade que não corta directamente nos salários e nas pensões, é uma austeridade que esmifra pobres e ricos através do IVA e trava a fundo a economia através de um enorme aumento do IRC. Quando se olha para o acordo proposto pelos gregos, a grande pergunta é: mas, afinal, tudo isto serviu para quê? A Grécia andou seis meses a lutar e a definhar pelo quê? Por uma rotação de austeridades? As medidas propostas têm um impacto de oito mil milhões de euros em dois anos, sendo mais de dois terços obtidos pelo lado da receita, num país péssimo a cobrar impostos. Ou seja: tem tudo para correr mal. Só que de nada serve dizer que a culpa é dos outros — hoje, como sempre, os países falidos estão nas mãos dos credores. Faz falta uma campanha europeia de prevenção deficitária: troque-se o “Se conduzir, não beba” por “Se quer mandar, não deva”, e pode ser que a ideia entre finalmente na cabeça dos gregos — e de muitos portugueses.

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