O
regresso de Versalhes
MANUEL CARVALHO
28/06/2015 - PÚBLICO
Para
esta geração de tecnocratas que confundem países com empresas e
eleitores com funcionários, não bastava, porém, uma vitória. Como
em Versalhes, tinha de haver reparações pesadas sem direito a
negociação.
O Governo arrogante
e mitómano de Alexis Tsipras saiu do Eurogrupo de sexta-feira
vergado não apenas pelos custos do delírio do seu programa político
mas principalmente pela cegueira de uma geração de líderes
europeus que não consegue ver além das sondagens e da sua
sobrevivência política.
Custa determinar
quem tem mais culpa no desfecho deste diálogo de surdos que dura
desde Fevereiro. O Governo grego é um claro candidato ao prémio da
irresponsabilidade, por julgar que o radicalismo e a ressurreição
dos fantasmas de uma Europa de bons e maus (a invocação do passado
nazi da Alemanha foi simplesmente abjecta) podiam satisfazer a sua
vontade de matar a austeridade. Mas ainda mais culpa tem esta Europa
que esqueceu mais de meio século de vida em comunidade e, em
especial, esqueceu que o ressentimento é um vírus destrutivo,
difícil de matar depois de ser gerado.
Entre o espírito
punitivo do Tratado de Versalhes, que no final da Primeira Guerra
Mundial castigou tão pesadamente a Alemanha que abriu as portas ao
nazismo, e o Plano Mashall, que no final da destruição de 1939-1945
quis passar uma esponja pelo passado e inaugurar uma nova era de
prosperidade na Europa, o comportamento das “instituições”
seguiu claramente a primeira via nas negociações com a Grécia.
Convém notar desde o início que a União jamais poderia aceitar as
pressões do Governo grego que, com base em promessas irrealistas, se
arrogava no direito de mudar unilateralmente a forma como se geriram
quatro anos de crise do euro e exigia que a sua soberania se
sobrepusesse a todas as outras. O problema é que a Europa reagiu ao
discurso radical de Atenas com um inescapável desejo de vingança,
no qual a ponderação e a racionalidade sucumbiram à vontade de
vergar Tsipras e Varoufakis. Vale a pena notar que, desde o início,
e apesar de toda a propaganda, a Grécia foi cedendo e na proposta do
último fim-de-semana admitia já aplicar medidas de austeridade e
parecia rendida ao músculo do Eurogrupo. Mas, em vez de aproveitar a
abertura grega e entrar na negociação cedendo algo mais do que o
limite do superavit primário (no qual já tinha cedido), a Europa
decide manter a sua posição de vilão perante um pedinte
fragilizado e desorientado.
A Europa, esta
Europa, não percebeu que, no estado a que tinha chegado o processo,
jamais poderia ser intransigente como o foi. Tinha de ceder nas
vírgulas para que Tsipras mudasse o texto. Porque sabia
perfeitamente que o primeiro-ministro grego estava a gastar com esse
plano os últimos cêntimos do seu capital político – era até
improvável que fosse aprovado no Parlamento grego. Perante o dilema
de aproveitar a onda de optimismo que a Comissão e vários membros
do Eurogrupo manifestaram no dia 21 e o desejo mesquinho de impor uma
derrota incondicional às veleidades gregas, “as instituições”
optaram pela segunda fórmula. Chegados aqui, já pouco interessa
saber que Atenas se dispunha a aumentar impostos, a cortar pensões,
a fazer reformas nas suas protecções ridículas a profissionais ou
sectores económicos ou a mudar o seu sistema previdenciário nos
timings e na substância que lhe era imposta. Pouco interessa também
notar que essa receita era a repetição de uma política que levou a
Grécia para um desastre.
A Europa e as
“instituições” tiveram tudo na mão para sair bem do problema.
Depois da capitulação de Tsipras à austeridade, a sua
superioridade e o castigo à ovelha grega tresmalhada da ortodoxia
oficial estavam garantidas. Para esta geração de tecnocratas que
confundem países com empresas e eleitores com funcionários, não
bastava, porém, uma vitória. Como em Versalhes, tinha de haver
reparações pesadas sem direito a negociação. Em 1919, a Alemanha
estava arrasada pela guerra e cedeu. Hoje, o Syriza sabe que a
capitulação em Bruxelas significava a hecatombe em casa. Não
apenas para os seus líderes, mas também para o país. Um acordo
imposto pela lei dos mais fortes a um estado frágil derrubaria o
governo, alastraria o ressentimento contra a Europa, faria explodir o
ódio nacionalista e levaria ao florescimento de mil “syrizas” ou
de mil “auroras douradas”. Mesmo que o referendo dite a vitória
do “sim” ao acordo com as “instituições”, os gregos jamais
deixarão de se sentir vítimas dos poderosos – se bem que as
culpas maiores são dos líderes que elegeram nas últimas décadas.
Nesta estratégia de
vistas curtas da Europa ninguém pareceu querer saber quanto custará
o efeito de contágio de um colapso grego, que peso terá no
desequilíbrio do euro e da própria União Europeia, que vírus
nacionalista e antieuropeu ficará instalado entre os Balcãs e o
Médio Oriente, que consequências geoestratégicas terá uma
aproximação da Grécia à Rússia. Nesta Europa desmemoriada e
perdida teria sido boa ideia ouvir os avisos de Washington, actuar
com ponderação em vez de encostar às cordas um país arrasado.
Nestes dias em que a tormenta radical islâmica ou o rosnar do
gigante russo voltam a levantar os fantasmas da guerra, estamos a
caminho do fio de navalha, de um mundo frágil que pode ruir ao
mínimo solavanco. O eventual colapso da Grécia poderá ser visto
dentro de alguns anos como um desses momentos que geram ondas de
choque de consequências imprevisíveis. Evitá-lo por legítimo
interesse teria sido a maior obrigação da elite que está no poder.
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