A
coragem de José Sócrates
JOÃO MIGUEL TAVARES
11/06/2015 - PÚBLICO
A
coerência e a coragem não só não são qualidades, como podem ser
terríveis defeitos, próprios dos fanáticos.
Na sua relação com
José Sócrates, os colunistas políticos portugueses dividem-se em
dois campos.
De um lado, aqueles
que levaram anos a denunciar o perigo que Sócrates representava para
a democracia portuguesa, e que, portanto, estão bastante convencidos
de que ele é culpado daquilo de que o acusam. Do outro, aqueles que,
independentemente de terem estado em acordo ou desacordo pontual com
as suas opções políticas, nunca vislumbrarem nele defeitos
particularmente graves, e até lhe foram reconhecendo ao longo dos
anos qualidades assinaláveis, como a energia, a resiliência, a
capacidade de motivação e de trabalho, e – claro – a coragem.
Estes últimos
colunistas, de um modo geral, estão a fazer figas para que a justiça
portuguesa não consiga provar as suas acusações contra Sócrates.
Ainda que as justificações que ele e os seus advogados têm vindo a
dar para a circulação do dinheiro e para a sua relação com Carlos
Santos Silva sejam patéticas e politicamente insustentáveis, existe
ainda a vaga esperança de que elas possam vir a ser juridicamente
sustentáveis, dada a dificuldade de prova nos casos de corrupção.
Se defender Sócrates em 2015 é ainda mais estapafúrdio do que
defender Sócrates em 2011, há uma boa razão para essa defesa: a
sua condenação por corrupção tem graves consequências
reputacionais não só para ele, mas também para quem andou durante
anos e anos a argumentar que todos os casos em que Sócrates esteve
envolvido eram meras cortinas de fumo, porque de outra forma as
polícias e a magistratura teriam actuado.
Claro que, hoje em
dia, Sócrates já não é defendido da mesma maneira, mas as
reacções à sua decisão de recusar a pulseira electrónica foram
sintomáticas daquilo que vai no interior dos articulistas que sempre
sentiram simpatia por ele. De Miguel Sousa Tavares a Daniel Oliveira,
de Nicolau Santos a Pedro Marques Lopes, fartei-me de ouvir e ler
elogios à opção de Sócrates, seguindo uma linha de argumentação
que reforça a mitologia do “animal feroz” e do político que
quebra mas não torce, como se ele fosse um Churchill do Alto
Alentejo em vésperas da Batalha de Inglaterra.
Escreveu no Expresso
Nicolau Santos, num artigo vitaminado com versos heróicos de Rudyard
Kipling: “Goste-se ou odeie-se José Sócrates, há um mínimo que
se deve a um homem: respeito pela sua dignidade, pela sua coerência
e pela sua coragem.” Também no Expresso, Daniel Oliveira colocou a
“coragem” de Sócrates nos píncaros: “o que obriga as pessoas,
independentemente das suas convicções sobre a culpa ou inocência
de Sócrates, a reconhecer-lhe pelo menos essa qualidade”. Ora,
parece-me extraordinário que duas pessoas inteligentes não se
apercebam dos perigos de uma argumentação 100% carismática, onde
coerência e coragem surgem como qualidades puras, sem qualquer
ligação à culpa ou à inocência. Caros Nicolau e Daniel:
desligadas da sua dimensão moral, a coerência e a coragem não só
não são qualidades, como podem ser terríveis defeitos, próprios
dos fanáticos.
O mesmo Expresso
onde trabalham Nicolau Santos e Daniel Oliveira distribuiu
recentemente a história da Segunda Guerra Mundial de Martin Gilbert.
Deitem uma espreitadela: do kamikaze ao oficial japonês que abre a
barriga com um sabre, para evitar a rendição, passando pelo nazi
que se suicida com cianeto, o que mais há por ali são homens
corajosos e coerentes. Digam-me: devemos elogiar essas suas
qualidades, “independentemente da culpa ou da inocência”?
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