Syriza não é solução: é problema
Paulo Rangel / 03/02/2015
- PÚBLICO
Há-de chegar o PREC à
grega, com a agenda política de nacionalizações, expropriações e reversão das
relações de produção.
1. Antes de tudo o mais,
convém não confundir o Governo grego com a Grécia e não confundir o Syriza com
os gregos. O Syriza e o seu parceiro de coligação são hoje o Governo grego e
representam legitimamente o Estado grego, mas não são a Grécia nem são os
gregos. Nem sempre esta distinção é feita, apesar de elementar em qualquer
regime democrático e ainda mais necessária nos regimes não democráticos.
A confusão destes dois
planos leva frequentemente à adesão a preconceitos sobre os povos e à
construção de esteriótipos sobre as pessoas. Tudo o que não se recomenda nem a
propósito de gregos, nem a respeito de outros quaisquer povos ou pessoas.
2. A ascensão do
populismo do Syriza e dos parceiros de direita radical que escolheu não é
apenas o resultado da situação financeira, económica e social da Grécia. É
também o resultado da profunda insatisfação com o establishment político,
essencialmente partidocrático, assente em oligarquias familiares, como tive
oportunidade de várias vezes dizer e escrever. E é também o resultado de opções
europeias erradas que – mesmo abstraindo do conteúdo substancial e programático
das medidas adoptadas –, em diversas ocasiões, ultrapassou o cânon sagaz do
“não humilharás”. Escrevi isso aqui dezenas de vezes, ao longo destes anos, mas
recordo em particular uma série de artigos do Verão de 2012. Falo de política;
mais de política do que de economia. Mesmo discordando muito das análises e dos
enfoques – de resto, bem diversos entre si – de Pacheco Pereira, de José Manuel
Fernandes ou de João Carlos Espada, eles estão certos quando a tempo advertiram
(e agora lembram) que a União Europeia e a sua liderança, por vezes mais pelo
estilo do que pela substância, contribuíram para um “apoucamento” dos Estados e
dos povos em situação de maior debilidade financeira. E que isso,
inevitavelmente, reforçaria a posição dos populistas e dos nacionalistas mais
empedernidos, aumentando de sobremaneira o sentimento antieuropeu e explorando
velhos ódios e hostilidades de jaez nacionalista. Não se tratará tão só de um
problema de estilo e método, de comunicação ou de relacionamento. Mas não haja
dúvidas: o estilo, o método, a comunicação e o relacionamento poderiam ter
ajudado muito. Em democracia e nas comunidades de direito, a forma conta.
3. Dito isto, que não
pode nem deve ser escamoteado e, por isso, ficou escrito nos dois primeiros
pontos, importa não ter ilusões sobre o Syriza e sobre o que significam – ou
podem significar – as suas primeiras opções.
4. O Syriza é um
movimento de esquerda radical, com afinidades assumidas com o Bloco de Esquerda
português. E, ainda assim, não hesitou em coligar-se com um partido de
extrema-direita, xenófobo e hipernacionalista. Apesar da conhecida arrogância
moral, de vezo moralista, da extrema-esquerda, Tsypras e os seus companheiros
não hesitaram na coligação. Que diria em Portugal o BE se o PSD ou o PS,
louvando-se no imperativo nacional, fizessem uma coligação com um partido
daquele género?
5. A escolha desta
coligação diz muito sobre o Syriza. Por um lado, mostra o seu pragmatismo
revolucionário, na esteira de Lenine e na lição de Maquiavel: os fins
justificam os meios. Para já, alia-se à direita populista, depois, assim que
possa, há-de tentar desembaraçar-se dela. Por outro lado, mostra o quão
radicado e radical é o seu “nacionalismo”, tão enraizado que chega a ser
fundamentalista. Com uma retórica – primeiramente assumida, depois subliminar –
antieuropeia, de nada lhe custa juntar-se a um discurso de direita claramente
hostil à Europa. Nada de espantar, no contexto da tradição nacionalista e
identitária grega, de cultura ortodoxa e de ambiente balcânico, com notória
propensão militarista. Não, por acaso, no seu discurso inicial, Tsypras usou a
expressão “derramar sangue”, que só pode ter uma de duas inspirações: ou a
religiosa ou a militar. Talvez a nossa esquerda não tenha ainda percebido, mas
o “syrizismo”, antes de ser um projecto de esquerda, consubstancia um desígnio
“nacionalista”.
6. A definição de uma
posição inicial favorável à Rússia, recebendo antes de todos o respectivo
embaixador e lançando dúvidas e querelas sobre a questão ucraniana é também
reveladora. Também ela demonstra o já aludido pragmatismo revolucionário: temos
de apoiar quem nos apoia, nem que seja um ditador “nacionalista” e altamente
“conservador”, que limita drasticamente a liberdade de expressão, que todos os
dias reprime as minorias e que pisa perigosamente os umbrais da guerra da
agressão. Mas é sabido e bem sabido que a Rússia de Putin financiou o Syriza e
recebeu com dignidades de Estado os seus dirigentes. E que, de resto, não se
coíbe de financiar toda a extrema-direita europeia, designadamente a Frente
Nacional de Marine Le Pen. Frente Nacional que, por simples coincidência, se
regozijou ruidosamente com a vitória do Syriza (e decerto ainda mais com a sua
opção para a coligação governamental). Putin apoia activamente todos aqueles
que se opõem à União Europeia e à unidade da Europa. Procura explorar as nossas
brechas e fissuras e aproveita oportunamente os nossos erros. Mas o Syriza,
quando pôde, escolheu Putin. O que, naquela lógica nacionalista e identitária,
não nos deve surpreender. É ainda e sempre o eixo ortodoxo, com suposta sede na
terceira Roma, que já assomara em Chipre e agora vibra e lateja no coração da
Grécia (mesmo que pareça laica ou até laicista). Não podem nem devem ser
sobrevalorizados, mas também não merecem ser desprezados os laços fundos da cultura,
da mundividência, da civilização.
7. E há-de chegar o PREC
à grega, com a agenda política de nacionalizações, expropriações e reversão das
relações de produção. O maior risco grego não é o económico; é o político. A
vitória do Syriza é um tema denso e complexo; precisa de mais espaço. Mas hoje
fica a mensagem, que a muitos, mesmo de outros quadrantes, tirará alívio e
esperança. Não tenhamos ilusões, o Syriza não é solução. É problema.
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