Como escrevia ontem Pedro Guerreiro no Expresso,
“o problema de António Costa não é escorregar numa frase em frente de chineses
nem ter Sócrates preso. É não saber o que fazer ao país”.
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O problema de António Costa é bem
mais fundo do que um soundbyte
Quando uma liderança é abalada
por tão pouco, algo de profundo está a correr mal
Manuel Carvalho
1-3-2015 / PÚBLICO
O PS entrou em
estado de sítio por causa de um “factóide” – a designação do Diário Económico
para as declarações de António Costa na abertura do Ano Novo chinês. Houve a
demissão de um militante histórico, avisos à navegação, velados ajustes de
contas entre seguristas e costistas, houve uma torrente de conselhos à
liderança feitos sob o conforto do anonimato e, para que a novela ganhasse
consistência narrativa, não faltou ansiedade. A verdade é que, como notava o
mesmo DE na sua coluna “sobe e desce”, os “factóides” têm importância e “este,
em concreto, acabou com o que restava do estado de graça do secretário-geral do
PS”. Não, não foi a dificuldade em articular um discurso alternativo ao
Governo, não foi a navegação à bolina na crise grega nem o lamentável perdão
fiscal da Câmara de Lisboa ao Benfica a ditar o castigo a António Costa nas
páginas da imprensa ou nas declarações da maioria: foi um pseudoacontecimento –
a admissão do líder do PS de que o país está numa situação “bastante diferente
daquela em que estava há quatro anos”. Quando uma liderança é abalada por tão
pouco, algo de profundo está a correr mal.
A questão só é
relevante porque serve para demonstrar a vulnerabilidade de António Costa a um
banal discurso de circunstância. Se na sua alocução à comunidade chinesa
António Costa dissesse que o país está de rastos e deixasse no ar o aviso de
que investir em Portugal é um risco, seria criticado por estar a fazer a
apologia do derrotismo e de surgir perante estrangeiros como o arauto de uma
sociedade falhada; como admitiu que o país está diferente, Costa foi criticado
por se desdizer.
No mundo real,
porém, é possível dizer que o país está melhor do que há quatro anos e, ao
mesmo tempo, dizer que o país está mal. Há um ano, o líder parlamentar do PSD,
Luís Montenegro, subscrevia essa contradição ao dizer que “a vida das pessoas
não está melhor, mas o país está”. Ao falar para uma plateia de investidores ou
potenciais investidores estrangeiros, António Costa ou não dizia nada ou, a
dizer, tinha a obrigação de admitir que, apesar de tudo, deixámos de andar em
permanente sobressalto com a eventualidade de o país entrar em incumprimento
financeiro ou de ter de sair do euro. E essa constatação óbvia não põe em causa
o reconhecimento também óbvio de que o ajustamento foi um desastre que demorará
anos a superar. A sobreposição do “factóide” à análise complexa da realidade é
a consequência da pobreza do debate público, mas é também a prova de que
António Costa perdeu a aura do herói romântico com que se afirmou no PS e em
parte da opinião publicada.
Até porque nesta
semana Costa deixou no ar uma declaração política que, essa sim, põe a nu a
fragilidade da sua posição e ajuda a perceber a sua liderança errática nos 100
dias que está à frente do PS. Foi quando admitiu, na conferência da revista
britânica The Economist, que “não é possível prometer um resultado que depende
da negociação com várias instituições, múltiplos governos, de orientações
diversas”. Ou quando avisou que, “como se tem visto nas últimas semanas, é um
erro definir uma estratégia nacional que ignore a incerteza negocial e se
bloqueie numa única solução”. Nessas duas simples frases António Costa atesta
que os limites à soberania não são exclusivos da acção do Governo: também a
oposição que aspira conquistar o poder vive num regime de “protectorado”, como
diria Paulo Portas. “O líder do PS disse aquilo que é uma evidência, mas que é
um acto raro, até porque se expôs à acusação de ser hesitante”, registava ontem
São José Almeida no PÚBLICO.
Essa constatação
é suficiente para explicar as razões pelas quais o PS se recusa a apresentar
propostas alternativas em matérias sensíveis como as políticas fiscais, as
medidas sociais ou os estímulos ao crescimento. Bem se sabe que Costa avisou há
meses que a apresentação ao país de medidas concretas só aconteceria por altura
da convenção do partido, lá para Junho. Mas o que o paralisa é muito mais do
que o cumprimento de uma agenda: é o receio de correr riscos de desenhar
políticas que se suspeita estarem condenadas à censura europeia. Como escrevia
ontem Pedro Guerreiro no Expresso, “o problema de António Costa não é
escorregar numa frase em frente de chineses nem ter Sócrates preso. É não saber
o que fazer ao país”.
Sem margem de
manobra para liderar a agenda política, sem ser capaz de apresentar caras novas
que levem ao PS uma lufada de futuro, António Costa ligou o piloto automático e
deixa-se andar. Ele “é, por vezes, cauteloso e prudente de mais”, como reparou
o socialista Álvaro Beleza, e essa cautela é o atestado implícito da sua
insegurança e o certificado evidente de que, como notava ontem Passos Coelho na
entrevista ao Expresso, nada pode fazer de “radicalmente diferente”. Com o raio
de acção limitado, resta-lhe tentar “ficar bem na fotografia”, como escreveu
Daniel Oliveira, limitando-se a esperar que o poder lhe caia nas mãos por falta
de mérito dos adversários.
Ora é essa pose
que deixa muitos socialistas à beira de um ataque de nervos e torna a gestão de
António Costa alvo fácil de “factóides” como o das palavras aos chineses. “Houve
uma dinâmica que se perdeu”, avisa António Galamba. António Costa tem
dificuldades em travar batalhas que vão para lá das escaramuças com o ministro
Poiares Maduro. Tornou-se um alvo fácil da contrapropaganda do Governo – neste
particular, a revelação do vídeo manhoso a reconhecer o país “diferente” por
parte do eurodeputado Nuno Melo acontece no exacto momento em que a Comissão
Europeia apontava para os graves “desequilíbrios macroeconómicos” do país.
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