A cedência grega tirou o tapete
ao Governo
MANUEL CARVALHO
22/02/2015 / PÚBLICO
Ainda estamos por
saber ao certo que posição teve a representante do Governo português na reunião
do Eurogrupo que reestabeleceu as pontes de negociação do a Grécia. O
desmentido “categórico” de ontem tem de ser contrastado com as notícias de
vários órgãos de comunicação social da Grécia nas quais Portugal e a Espanha
aparecem a bloquear um acordo e com as conferências de imprensa quer do
ministro das Finanças grego, quer do presidente do Eurogrupo. Mas o que se sabe
destes dias tensos em Bruxelas é mais do que suficiente para se concluir que,
politicamente, o fim do isolamento grego deixa Passos Coelho e Paulo Portas sem
discurso nem doutrina. Se até à semana passada o estilo e a bazófia de Alexis
Tsipras e de Yanis Varoufakis serviam ao Governo para exaltar os méritos da sua
resignação e conservadorismo, a simples viabilidade de um discurso alternativo
(mesmo que, como aconteceu, improfícuo) tornam a sua apologia da rigidez para
com a austeridade na Grécia numa obsessão politicamente comprometedora.
Por estes dias, a
ministra das Finanças apareceu e reapareceu ao lado de Schäuble, apresentou-se
como a guarda avançada da intransigência alemã e contribuiu para essa nova
mania de comparar as nações a empresas ao dizer a um jornal alemão: "Quando
peço um empréstimo ao meu banco, tenho de comprometer-me a reembolsá-lo e tenho
de dar garantias, é assim que as coisas funcionam”. Se meio mundo anda a
censurar a Alemanha pela sua ortodoxia financeira, por acreditar que os
desequilíbrios financeiros dos estados se corrigem apenas pelo aperto do cinto,
por nada fazer para fomentar a procura interna na Europa reduzindo um pouco os
seus gigantescos excedentes comerciais, as autoridades portuguesas dizem o
contrário. Dizem que a vida dos povos e o futuro da Europa se cinge a um bom
balanço em meia dúzia de folhas de cálculo e a regras espartanas na política
fiscal. Fazem-no por convicção, seguramente com coerência, mas o que está em
causa é mais do que princípios: é uma ordem no relacionamento político entre os
vulneráveis e os fortes da Europa que o tom desafiador dos gregos ameaça pôr em
causa.
Nessa construção,
o que conta até hoje é o "sim" e o "não", sem que haja
lugar ao "talvez" das alternativas. Passos usou e abusou desse jogo
e, percebe-se, jamais poderia tolerar que o governo de um país sob a égide da
troika pudesse rasgar os acordos do passado e, num golpe de mágica, ser
contemplado com bondades e concessões a que nem ele nem os portugueses tiveram
direito. O que se passou ao longo desta semana ficou, porém, muito para lá dos
perdões de dívida, da recusa de qualquer tipo de condicionalidade para obter
financiamento das entidades da troika ou até da oposição a qualquer tipo de
supervisão europeia. Por muito que o discurso panfletário típico do radicalismo
decrete o fim da austeridade em Atenas, a verdade é outra. Tsipras e Varoufakis
tiveram de ceder em toda a linha para poderem almejar a receber ajuda
financeira. E ao cederem, retiraram a Passos o racional da sua argumentação. A
Grécia, afinal, fora capaz de protestar, de exigir, de reclamar, de se pôr em
bicos de pés e, no final do dia, não foi votada ao ostracismo nem ficou numa
posição pior do que aquela em que estava.
Pelo contrário,
com o evoluir da pressão e com a sua crescente disponibilidade para recuar nas
suas propostas estapafúrdias, a Grécia começou a receber simpatia,
encorajamento e apoio velado de alguns Estados-membros e principalmente da
Comissão Europeia. Quando, na terça-feira, Jean-Claude Juncker se dispôs a
correr o risco de fazer figura de "estúpido" para admitir que a
Europa pecou contra a dignidade de Portugal, da Grécia e, até certo ponto, da
Irlanda, estava a enviar uma mensagem política de enorme gravidade para a
Europa e para os países que estão ou estiveram em processos de ajustamento. Pela
primeira vez em muitos anos, o presidente da Comissão Europeia destoou da
Alemanha e do seu grupo e colocou-se ao lado do elo mais fraco. A mensagem
tinha um efeito terrível para a colagem de Passos Coelho à intransigência
alemã. Colocava o Governo português no triste papel de vítima da síndrome de
Estocolmo, quando as vítimas de apaixonam pelos seus algozes.
A turbulência que
de imediato se fez sentir em sede do Governo e entre os partidos da coligação é
testemunho dessa incomodidade. Logo a seguir às palavras de Juncker, o Governo
pareceu mais um castelo de cartas do que um bloco sólido mobilizado por um projecto.
O CDS e o PSD digladiaram-se num jogo de empurra para ver quem ganhava mais ou
perdia menos nesta súbita sentença contra a maravilha da austeridade. E não,
não se tratou apenas de normais divergências de interpretação ou de opinião:
aquilo a que assistimos nas contradições entre as declarações
sociais-democratas e as centristas foi à tentativa do PSD de segurar as rédeas
do discurso oficial e ao esforço do CDS em as rasgar. No exercício, foi clara a
estratégia de Paulo Portas e dos seus homens em vestir a pele do polícia bom.
A reacção do
ministro Marques Guedes teve como claro propósito condicionar as perdas, ao
afirmar que "nunca a dignidade de Portugal foi beliscada, quer pela troika
quer por algumas das suas instituições", pelo que as declarações de
Juncker eram apenas "infelizes". Portas e o seu líder parlamentar,
Nuno Magalhães, tentaram, pelo contrário, dizer que Juncker tinha razão, o que,
implicitamente, deixava Passos sozinho a fazer a apologia de uma política
indigna para os portugueses. Depois, como se a cacofonia entre o
primeiro-ministro e o seu vice não bastassem, Rui Machete encostou-se a Portas
e “interpretou” as declarações de Juncker como “um desejo de facilitar as
coisas e de reconhecer que houve aspectos negativos”, dando como exemplo “as
censuras que a troika fez ao aumento do salário mínimo de que Portugal
precisou”. Logo a seguir, recorrendo a uma terminologia que se costuma usar
após o final das guerras, o ministro chegou ao ponto de admitir que “eles”, os
da troika, “devem-nos reparações”. Reparações? Mas não disse Maria Luís
Albuquerque que as exigências da troika são tão simples e fáceis de entender
como as regras de um empréstimo bancário?
Depois de dias em
que parecia ter cavalgado a crise grega a seu favor, a rápida inversão da
estratégia grega deixou Passos Coelho e os seus ministros sem capacidade de
reagir. Não lhes basta agora serem mimados por Wolfgang Schäuble ou por Angela
Merkel. Quando um parceiro do euro se dispõe a compromissos com tantas
cedências como as que a Grécia exibiu, não há outra forma de reagir senão
abraçar essa atitude e preservar a unidade. “Portugal, desde que entrou para a
União Europeia esteve sempre na formação dos consensos necessários”, lembrava
esta semana Jorge Sampaio. A turbulência grega só agora começou, mas espera-se
que Portugal não apareça na Europa como o paladino das causas alemãs. Um roto a
dizer mal do esfarrapado é, como se sabe, um episódio sempre deplorável.
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