quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Começou a corrida eleitoral que vai subverter o sistema político espanhol




Começou a corrida eleitoral que vai subverter o sistema político espanhol
JORGE ALMEIDA FERNANDES 26/02/2015 – PÚBLICO

Vai acabar o bipartidarismo em Espanha. Que se segue? Um modelo tripartidário ou, até, quadripartidário? Neste quadro, quem se aliará com quem?

O debate sobre “o estado da nação”, terça e quarta-feira, no Congresso dos Deputados espanhol teve algo de “irreal”, disse um jornalista. Foi o último da legislatura e, provavelmente, também o último do actual sistema bipartidário. Para o presidente do governo e chefe do Partido Popular (PP), Mariano Rajoy, e para o líder do PSOE, Pedro Sánchez, foi sobretudo o primeiro momento de propaganda numa maratona eleitoral de dez meses.

Muito sublinhada foi a ausência — e a sombra — dos dois “políticos emergentes” que ameaçam o bipartidarismo: Pablo Iglesias, do Podemos, e Albert Rivera, do Cidadãos.

No discurso de abertura, na terça-feira, Rajoy fez um balanço optimista da sua acção, vislumbrando o fim da crise. Disse: “O estado de uma nação que saiu do pesadelo.” Pediu mais um mandato para a concluir a obra e criar três milhões de empregos na próxima legislatura. Reivindicou ter evitado o resgate completo da Espanha. Garantiu que, em 2015, a economia crescerá pelo menos 2,4%, valor que os economistas não contestam.

Na resposta, Sánchez fez uma exaustiva exposição de números, não para negar a melhoria económica mas para denunciar “os destroços sociais” deixados pela gestão da crise pelo governo.

Duelo acintoso
O que maior interesse suscitou na imprensa não foi o conteúdo do debate. Foi a acintosa troca de palavras que se seguiu. Rajoy interpelou o líder socialista: “Senhor Sánchez, tem alguma proposta? (...) O que disse foi patético. Não mostrou, nem de longe, ter estatura para ser presidente do governo.”

Sánchez surpreendeu a galeria pela virulência com que respondeu. “Digo-lhe, senhor presidente, [que recuso] lições do senhor sobre corrupção. Sou um político limpo. Limpo. (...) Usam a propaganda, não a razão. Não têm vergonha.”

Comentou o El País que Sánchez, que tem mostrado tibieza perante Rajoy, revelou uma “fúria desconhecida”. Terá fortalecido a sua difícil posição do PSOE, onde vários notáveis não têm escondido a vontade de o “defenestrar”. Conclui o jornalista: “Há um aspecto de Sánchez que está a revelar-se nos últimos tempos: o de quem nada tem a perder” e não se deixa condicionar pelas sondagens.

O debate de terça-feira foi também a estreia do novo e jovem líder da Esquerda Unida, Alberto Garzón. O partido está sob intenso acosso do Podemos que quer capturar o seu eleitorado. Garzón não se limitou a atacar o PP. Atacou também frontalmente o PSOE, denunciando o “bipartidarismo” com um discurso análogo ao de Iglesias. “É o fantasma do Podemos. E do Cidadãos. Este parlamento já nada tem de real” — comentou Enric Juliana no La Vanguardia.

O debate terminou na quarta-feira com as intervenções das minorias e o discurso final de Rajoy, que continua a apostar tudo na economia.

Iglesias e Rivera
Mestre em estratégia comunicativa, Pablo Iglesias respondeu ao debate com um contra-debate do “estado da nação”, na quarta-feira ao fim da tarde, no Círculo de Belas Artes em Madrid. O objectivo era anunciar o programa de emergência dos seus “100 primeiros dias de governo”, parcialmente inspirado no programa de Salónica do Syriza. Propõe medidas como o fim dos despejos, a criação de um rendimento mínimo de inserção, a nacionalização dos serviços básicos, como a saúde, a água e a energia ou mais impostos sobre os ricos.

Com as sondagens a colocar o Podemos como partido com mais intenções de votos, Iglesias reivindica o estatuto de “chefe da oposição”. Quer polarizar o combate entre o Podemos e o PP. Preparou cuidadosamente o desafio ao debate parlamentar. Na segunda-feira à noite, deu uma entrevista numa televisão que bateu recordes de audiência, muito acima das antes obtidas por Sánchez e Rajoy no mesmo programa.

Ciutadans começou por ser um movimento catalão anti-independentista fundado em 2005 e depois transformado em partido. Coloca-se ao centro e defende a reforma da política e dos partidos — a começar pelos catalães. Tem nove deputados no parlamento de Barcelona. No ano passado tornou-se num partido nacional — Ciudadanos. O seu líder, Albert Rivera, representa a imagem oposta de Iglesias. Lançou recentemente o seu programa económico, elaborado por dois dos mais respeitados economistas espanhóis: Luis Garricano e Manuel Conthe.

As últimas sondagens de El País e El Mundo colocam-no como quarta força política, entre os 8 e os 12%. A curiosidade dos analistas está na sua dinâmica. Se o Podemos parece ter atingido o seu tecto máximo, o Cidadãos tem espaço ao centro para ocupar, atraindo sobretudo os eleitores centristas do PP. O Partido Popular já começou a estigmatizá-lo como “partido catalão”, sublinha Enric Juliana. “Ciutadans/Ciudadanos, o partido anticatalanista mais dinâmico, é combatido como catalão quando tenta projectar-se na política espanhola. Há coisas que não têm conserto.”

O ano de todas as eleições
O tom de campanha é natural. A Espanha tem este ano um calendário eleitoral alucinante. A maratona começa com as eleições autonómicas da Andaluzia, antecipadas pela socialista Susana Díaz para 22 de Março, de modo a minorar o “efeito Podemos”, ainda mal implantado na região. O 24 de Maio será um dia crucial, com as eleições autonómicas e municipais. O Podemos não concorre com a sua sigla — que reserva para as legislativas — mas pesará nas grandes cidades.

Votarão 13 das regiões (com excepção da Galiza, Catalunha, Andaluzia e País Basco). O PP teme um descalabro e o PSOE não tem razões para optimismo. Depois da penalização do “bipartidarismo” nas eleições europeias, os analistas falam na ameaça de “um cenário regional multicolor”. Em regiões como Madrid só uma coligação de três partidos obteria uma maioria. As autonómicas são o “ensaio geral” das legislativas.

Entretanto, o presidente catalão, Artur Mas, antecipou as suas eleições autonómicas para 27 de Setembro, com a ideia de as transformar numa espécie de referendo sobre a independência. É uma incógnita. O apoio à independência parece estar a encolher e a política catalã está, de momento, a diluir-se na espanhola. Veremos o que muda após o 24 de Maio.

As eleições legislativas, que coroam este ciclo, deverão realizar-se entre 20 de Novembro e 17 de Janeiro. Ocorrerão provavelmente em Dezembro. Garantem os politólogos que delas não sairá um partido claramente dominante.


José Joan Toharia, presidente do instituto Metroscopia, que faz as sondagens do El País, frisa que “a paisagem eleitoral apresenta uma notável fluidez, com possíveis transvases [de eleitores] em praticamente todas as eleições.” À luz das sondagens actuais, pode emergir um sistema tripartidário ou, até, quadripartidário: PP, PSOE, Podemos e Cidadãos. À distância de dez meses, ninguém ousa prever quem se aliará com quem.

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