Como se vai pôr os gregos a pagar
impostos?
24 Fevereiro 2015
Edgar Caetano /
OBSERVADOR
Combater a evasão
fiscal e a corrupção. Estas são duas prioridades do governo de Tsipras e
Varoufakis, que há anos diz que a Grécia não é uma democracia, é uma
"cleptocracia". Missão possível?
Um cidadão paga
impostos quando vê que os seus pares também estão a pagar os seus. Paga
impostos, também, quando percebe que quem não paga tem uma elevada
probabilidade de ser apanhado e castigado. E, finalmente, há uma menor
tendência para fugir aos impostos quando se confia nas instituições públicas do
Estado e se vê que o dinheiro está a ser bem utilizado, com benefícios visíveis
para a sociedade.
Quando se cumprem
estas três condições, cuja pesquisa académica o norte-americano James
Surowiecki reuniu em “A Sabedoria das Multidões“, temos uma sociedade sem
problemas na cobrança equitativa de impostos. Algo que a Grécia nunca foi na
História recente, uma constatação suportada em extensa pesquisa académica e
também em relatórios de organismos internacionais como a OCDE. O governo
liderado por Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis elegeu o combate à evasão fiscal
e à corrupção como uma das traves mestras da carta enviada a Bruxelas, até
porque se deseja que esse combate compense os investimentos públicos que o governo
quer fazer. Missão possível ou impossível?
Dois em cada três
gregos fogem aos impostos. Por outras palavras, as do falecido cronista
Leonardo Ferraz de Carvalho, um em cada três gregos arrisca poder considerar-se
um “tanso fiscal”. Na Grécia, o país europeu com maior peso relativo de
trabalhadores independentes, dois terços dos trabalhadores declararam menos
rendimento do que auferiram na realidade ou nem sequer apresentaram declaração
de rendimentos. Esta estimativa, que se refere a 2014, é do economista Stephen
Hall, um professor da Universidade de Leicester e conselheiro do Banco da
Grécia, que estima que em cada quatro transações económicas, um desses negócios
é fantasma. Perante esta dificuldade histórica do Estado em cobrar impostos,
não admira que o colapso da economia tenha feito a dívida pública em função do
produto interno bruto (PIB) disparar até aos 130% em 2009, o ano anterior ao
primeiro pedido de assistência externa.
“A evasão fiscal
é um grande problema na Grécia, e sempre foi assim“, diz ao Observador Thanos
Veremis, Professor Emérito da Universidade de Atenas. Antigo professor de
História Moderna e co-autor de livros como “A Grécia Moderna: Uma História
desde 1821″, Thanos Veremis diz que a evasão fiscal é uma manifestação do de um
problema maior e que tem muito de cultural. “No geral, a relação entre o Estado
e os cidadãos na Grécia foi sempre contaminada por uma desconfiança recíproca:
o Estado não cumpre aquilo que lhe é exigido [no que toca à gestão do bem
público] e o contribuinte tende a querer fugir às suas obrigações fiscais”. A
Grécia está no fundo da tabela no que diz respeito à transparência do setor
público. O país tem a companhia da Roménia, Bulgária e Itália nos piores
resultados do índice de perceção de corrupção elaborado pela Transparency
International para a União Europeia.
“A evasão fiscal é um grande problema na
Grécia, e sempre foi assim”, diz ao Observador Thanos Veremis, Professor
Emérito da Universidade de Atenas.
A fuga aos
impostos na Grécia é, há muito, tema de profícua pesquisa científica. Uma
equipa de três investigadores de universidades dos EUA olhou para os registos
de um grande banco grego entre 2003 e 2010 e notou que, quando se tratava de
pessoas registadas como trabalhadores por conta própria, estas entregavam, em
média, 82% dos seus rendimentos declarados ao banco, para pagar prestações de
créditos. Uma taxa de esforço muito pouco recomendável (as boas práticas
estabelecem um máximo de um terço do rendimento) que, além de levar à questão
de saber em que análise de risco o banco se baseou para conceder crédito,
sugere que os rendimentos reais eram superiores aos declarados. A investigação
apontava para um mínimo de 28 mil milhões de euros em receita fiscal perdida
anualmente devido à evasão fiscal, o que corresponde a 31% do défice das contas
públicas registado em 2009.
Uma equipa de três investigadores
de universidades dos EUA olhou para os registos de um grande banco grego entre
2003 e 2010 e notou que, quando se tratava de pessoas registadas como
trabalhadores por conta própria estas entregavam, em média, 82% dos seus
rendimentos declarados ao banco, para pagar prestações de créditos.
Quem mais foge
aos impostos? Médicos, engenheiros, professores que dão aulas particulares,
contabilistas, advogados e trabalhadores dos serviços financeiros, segundo este
estudo de 2012, assinado por Nikolaos T. Artavanis, Adair Morse e Margarita
Tsoutsoura. A fuga aos impostos é um problema cultural na Grécia, tanto que,
contou a revista The Economist, houve um membro da troika que, em 2011, se
sentou numa reunião com altas figuras da sociedade grega e, depois de
cumprimentar os presentes, afirmou isto: “Se conseguisse fazer com que todos
vocês pagassem os vossos impostos, eu não teria necessidade de estar aqui”.
Numa entrevista
ao The Guardian em maio de 2012, semanas depois da reestruturação voluntária da
dívida grega, a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI),
Christine Lagarde, causou polémica ao dizer que quando pensava na Grécia
pensava “em todas aquelas pessoas que estão constantemente a tentar fugir aos
impostos”. Na mesma entrevista, quando perguntaram a Lagarde se pensava muito
nas pessoas que caíram em dificuldades na Grécia, a francesa respondeu que
pensava “mais nas crianças pequenas que vão à escola numa pequena aldeia de
Níger, que têm duas horas de aulas por dia, partilhando uma cadeira na sala de
aula com mais dois colegas”. Estas crianças “precisam mais de ajuda do que as
pessoas em Atenas”, atirou.
Christine Lagarde
mais preocupada com as "crianças pequenas que vão à escola numa pequena
aldeia de Níger, que têm duas horas de aulas por dia, partilhando uma cadeira
com mais dois colegas".
“Um insulto ao
povo grego”, acusou Alexis Tsipras, na altura líder do partido Syriza, em plena
ascensão nas sondagens e a destacar-se entre os partidos da oposição. “Os
trabalhadores gregos pagam os seus impostos, que são insuportavelmente
elevados”, ripostou o grego, acrescentando que “para falar em infratores
fiscais, ela [Lagarde] deveria virar-se para os partidos PASOK e Nova
Democracia para que estes lhe expliquem porque é que não fizeram nada para
cobrar impostos aos mais ricos e apenas perseguiram o pequeno trabalhador”. Christine
Lagarde viria, alguns dias depois da publicação da entrevista e sob fortes
críticas, a publicar na sua página na rede social Facebook uma mensagem de
“solidariedade com o povo grego, pelos desafios que este enfrenta”.
A verdade é que
já em 2001, no início da convivência dos países da hoje zona euro com a mesma moeda,
a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) alertava a
comunidade internacional para o facto de “a Grécia, ao longo de vários anos,
não ter realizado um esforço sistemático para redesenhar o sistema tributário
como um todo”. As críticas da OCDE eram avassaladoras: “as alterações ao
sistema tributário foram feitas de forma desconexa e muitas contribuíram para
criar um sistema complexo e opaco”. A organização alertava para a importância
que um conjunto abrangente de reformas teria para o país, caso estas reformas
fossem feitas. Mas não foram, como viria a reconhecer o Banco da Grécia.
Na sua Crónica da
Grande Crise, publicada em junho de 2014, o Banco da Grécia escreveu que após a
criação da zona euro, “intensificaram-se fenómenos como a economia paralela, a
evasão fiscal e o não cumprimento das regras na construção e na utilização de
solos”. Estes fenómenos “contribuíram decisivamente para os desenvolvimentos
adversos” que levaram ao colapso da economia. A economia paralela tem sido,
apesar de tudo, na crise dos últimos anos, a boia de salvação de muitas
famílias e, até, empresas, pelo que este é um problema que pode causar alguns
desequilíbrios à medida que for combatido. O Banco da Grécia asseverou,
contudo, que para um equilíbrio das contas públicas, as receitas fiscais terão
de incluir uma redução da evasão fiscal e, assim, um alargamento da base
tributária.
"Fenómenos como a economia
paralela, a evasão fiscal e o não cumprimento das regras na construção e na
utilização de solos contribuíram decisivamente para os desenvolvimentos
adversos" que levaram ao colapso da economia.
Banco da Grécia,
Crónica da Grande Crise
O governo
liderado por Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis não tem perdido qualquer
oportunidade para criticar não só os anteriores governos mas também a troika
por “nada terem feito” no combate a estes problemas. É por isso que a luta
contra a evasão fiscal é o ponto primeiro da carta enviada na noite de
segunda-feira por Atenas aos credores externos. A Grécia compromete-se a fazer
“esforços robustos” para melhorar a cobrança de impostos, “aproveitando os
meios eletrónicos e outras inovações tecnológicas”. O governo promete, também,
que irá “trabalhar na criação de uma nova cultura de cumprimento das obrigações
fiscais para assegurar que todos os setores da sociedade, e especialmente os
mais ricos, irão contribuir para o financiamento das políticas públicas”.
Na governação de
Antonis Samaras, líder do Nova Democracia que saiu do poder na viragem do ano,
o combate à evasão fiscal chegou a ser uma bandeira do executivo, no âmbito das
recomendações insistentes da troika. Mas é discutível o impacto prático que
essas medidas tiveram na mudança da cultura. A Grécia chegou a nomear um
todo-poderoso czar dos impostos, um antigo técnico de tecnologias de informação
e funcionário da Lehman Brothers chamado Haris Theocharis. Incumbido de
modernizar o sistema tributário, Theocharis “mostrou resultados consistentes,
consistentemente superando os objetivos definidos, algo que se refletiu em
resultados orçamentais positivos”. Esta foi a mensagem de agradecimento do
ministro das Finanças da altura, Yannis Stournaras, quando o czar dos impostos
Haris Theocharis se demitiu, alegando “razões pessoais”, no início de junho de
2014.
A saída de Haris
Theoharis gerou grande controvérsia na altura. O pedido de demissão surgiu
depois de uma reunião de quatro horas entre Stournaras e Theoharis em que,
segundo a imprensa grega, foi comunicado a Theoharis o “descontentamento do
governo” face a algumas medidas tomadas por este. Tinha sido noticiado, nos
dias anteriores, que o czar dos impostos tinha emitido uma circular para os
serviços tributários a preparar uma cobrança retroativa de impostos sobre os
lucros de investidores estrangeiros com a dívida pública grega. A notícia fez
disparar os juros da dívida grega no mercado, em plena campanha eleitoral para
as eleições europeias. Theoharis já estava sob fogo cerrado por, na falta de
registos informáticos razoáveis da base de contribuintes, ter recorrido às
faturas da eletricidade para cobrar impostos, uma medida muito controversa que
terá levado muitos gregos a passar a viver sem luz. “O governo grego tomou
decisões, não eu”, garantiu, à saída, Haris Theoharis.
"O meu gabinete recebia
chamadas anónimas a pedir à minha equipa para me dizer que 'por cinco mil euros
é fácil contratar alguém que lhe parta as pernas. Recebi várias cartas
ameaçadoras e andei sob proteção da polícia – ainda ando".
Haris Theoharis,
antigo diretor dos serviços tributários na Grécia.
A demissão súbita
de Theoharis apanhou a troika aparentemente desprevenida, com a Comissão
Europeia a expressar uma “preocupação grave” com a saída de um homem que no
pouco tempo em que esteve no cargo conseguiu suscitar ódios viscerais junto de
boa parte da população. Muitos funcionários da administração fiscal odiavam-no
pela tentativa de agitar a “pasmaceira” e a corrupção que Theoharis disse que
via nestes serviços. Numa entrevista publicada no final de janeiro pelo The
Telegraph, Theoharis confessou que se demitiu por causa das ameaças de morte
que recebeu. “O meu gabinete recebia chamadas anónimas a pedir à minha equipa
para me dizer que ‘por cinco mil euros é fácil contratar alguém que lhe parta
as pernas'”, confidenciou o antigo czar dos impostos da Grécia. “Recebi várias
cartas ameaçadoras e andei sob proteção da polícia – ainda ando”, admitiu
Theoharis, hoje deputado pelo partido centrista ToPotami.
Fica claro que
não será fácil a missão de Yanis Varoufakis neste particular. Um exemplo que o
FMI gostaria de ver a Grécia a seguir é o da reforma fiscal do Peru, um país
que passou quase toda a década de 1990 sob a supervisão do FMI e a receber
fundos da organização. Uma componente das reformas aplicadas na economia do
país sul-americano foi a reforma do sistema tributário, que foi modernizado e
simplificado, e as profundas alterações dos códigos fiscais, harmonizando-os
com as orientações de política económica definidas na altura. A
Superintendencia Nacional de Administración Tirbutaria (SUNAT) deixou de estar
sob a alçada do Ministério da Economia e passou a reportar diretamente à
Presidência, recebendo autonomia financeira e administrativa. A maior mudança,
contudo, foi feita ao nível das lideranças: foram dispensados vários burocratas
e surgiu uma nova geração de administradores jovens, bem preparados e livres
dos vícios dos seus antecessores.
Como fazer o
mesmo na Grécia? De Atenas vem um elogio para Portugal. Ao Observador, Thanos
Veremis, o Professor Emérito de História Moderna na Universidade de Atenas, diz
que “a melhor fórmula para combater a evasão fiscal é a utilização que foi
feita em Portugal das novas tecnologias para detetar os infratores”. Além
disso, “é preciso investir na inspeção para evitar que os profissionais de
vários setores não faturem” os serviços que prestam e os bens que produzem. “Se
um ou dois forem apanhados, os outros vão passar a cumprir“, acredita Thanos
Veremis.
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