Com uma
pequena ajuda do Syriza
Tsipras e Varoufakis exigem à
Europa uma completa inversão da correlação entre Estados fortes e fracos
Manuel Carvalho /
15-2-2015 / PÚBLICO
Apelar é um verbo
que fica sempre bem e fica ainda melhor quando o apelo se dirige ao
primeiroministro e quando o seu motivo é a renúncia da austeridade. Quando 32
“cidadãos e cidadãs”, da direita do Bloco à esquerda do CDS, se unem e apelam a
Passos Coelho para que aproveite o turbilhão do Syriza e troque a apologia da
austeridade por “soluções realistas” que permitam recuperar “a economia e as
políticas sociais” de modo a salvar a Grécia do “discurso punitivo” e a zona
euro da crise, sabiam que as suas palavras tinham como única utilidade o afago
da sua boa consciência.
Porque não se
pode pedir a Passos o que ele não é nem nunca foi e ainda menos se pode esperar
que a devastação da Grécia seja suficiente para que ele renegue tudo o que fez
no Governo – era como se Schäuble acolhesse as propostas de Varoufakis e
Tsipras. Descontando uma eventual ingenuidade, sobra a questão essencial: o
ricochete. Esses apelos funcionam ao contrário dos seus propósitos originais.
Ou seja, não mudam nem desgastam o primeiro-ministro e, pelo contrário, têm até
o condão de o fortalecer. Ora veja-se a calma com que ele fala sobre a crise grega
vista de Lisboa.
Raras vezes a
vida política em Portugal viveu tão dependente do que acontece na Europa como
nas últimas semanas. Esta relativa novidade conta. Ajuda a perceber por que
razão o discurso político do Governo, o da oposição e o da Europa se foram
gastando nos últimos três anos até darem origem a uma elipse. Foi preciso a
Grécia chegar a um extremo de penúria para se produzir uma alternativa política
que não só recusa entrar nesse discurso elíptico como o recusa e combate. O
suficiente, portanto, para que em Portugal (e nos demais países da Europa)
todas as saídas e todos os balanços de poder fossem equacionados e a Grécia do
Syriza se transformasse na nova vanguarda do progressismo europeu.
O que hoje anima
quer os subscritores da carta ao primeiroministro, quer a coluna contra as
políticas de austeridade que foi engrossando nos últimos anos é a suspeita de
que o turbilhão grego é o prenúncio da batalha final que, por imperativo da
História, estão condenados a ganhar. Numa pose iluminista, acreditam que em
política basta ter razão para a razão prevalecer.
Esquecem,
portanto, que para lá da substância há uma atitude rufia e bazófia do Syriza
que não só irrita como torna o compromisso para eventuais mudanças impossível;
esquecem que na Europa há muitas vontades populares e que a vontade popular dos
alemães ou dos finlandeses não é a mesma dos gregos – ou dos portugueses;
esquecem ainda que neste frágil equilíbrio são os “maus” que passam o cheque e
as “vítimas” que precisam do cheque para sobreviver; esquecem que aquilo que o
Syriza, Tsipras e Varoufakis exigem à Europa é uma completa inversão da ordem
natural do poder e da correlação de forças entre Estados fortes e Estados
fracos; esquecem, afinal, que essa ideia de Europa solidária e coesa é uma
miragem hoje submersa pelos velhos fantasmas da rivalidade entre as nações.
Por muito que, na
essência, tenham toda a razão e legitimidade para recusar governar com
políticas que condenam milhares de pessoas à pobreza, os novos titulares do
poder da Grécia recorreram a gestos, a palavras e a uma encenação de poder
(ver, a propósito, o notável texto de Vasco Pulido Valente de sexta-feira no
PÚBLICO) que levaram muitos europeus a subalternizar a sua razão em favor da
sua arrogância. Agitaram o vespeiro em vez de acalmar as vespas.
As ameaças de
colagem à Rússia num momento de enorme sensibilidade para a segurança europeia,
a visita a memoriais de crimes perpetrados pelos nazis ou a invocação da velha
dívida de guerra ficam bem aos discursos de radicais-chique, mas jamais serão
entendidos nos jogos manobrados pelas grandes potências. São estratégias belas
pelo seu romantismo, mas estúpidas quando à sua eficácia.
A carta a Pedro
Passos Coelho estava condenada ao fracasso também por causa dessas estratégias
e dessas formas de actuar. Se ele, Passos, principalmente nos seus primeiros
meses de ilusão no Governo, é um crente nas virtudes das austeridades, é ainda
mais um zeloso respeitador da lei do mais forte. Desde os primeiros desenhos da
troika que o vemos a assumir aqueles comportamentos do aluno sempre pronto a
engraxar o professor – quando, por exemplo, anunciava querer ir para lá da
troika.
Desde sempre se
recusou participar em qualquer acto público que pudesse significar, mesmo ao de
leve, uma discordância, uma ténue alternativa ao discurso oficial da Alemanha. Nunca
levantou a voz a Merkel ou a Barroso, pelo menos em público. Vez alguma
desistiu de se mostrar diligente e cumpridor. Jamais se serviu das terríveis
dificuldades da governação ou da penúria dos portugueses para dizer em tom
audível que havia outras maneiras de corrigir os desequilíbrios do país.
Acreditar que
Passos, o atinado, pudesse de alguma forma apoiar Tsipras, o espalha-brasas,
era o mesmo que acreditar no milagre dos eurobonds. Passos, no seu jeito de ser
muito português, não gosta de estar na linha da frente, reconhece que o
respeitinho é muito lindo, sabe esperar e ouvir e só fala se puder ganhar com
isso. Ele é pessoa que cultiva a discrição, que emula quem pode e despreza quem
não pode ou quem falha. A forma como o Governo aceitou tudo o que veio da
troika, como foi capaz de aguentar três anos de aumentos de impostos e de
outras medidas de difícil aplicação sem tugir nem mugir é a prova cabal da
pré-existência de um destino, de um fado, que teremos todos de cumprir com
mágoa e em silêncio. Por cá não há Syriza, nem Podemos, nem “Verdadeiros
Portugueses” por alguma razão. O povo gosta de respeito e de ordem, não de quem
afronta os poderes estabelecidos.
Quem acreditar
que a entrada de rompante do Syriza na cena política portuguesa é uma grande
notícia para a esquerda antiausteridade, talvez tenha, por isso, de esperar um
pouco mais para ver. Se, como se vislumbra, Tsipras e Varoufakis forem
obrigados a aceitar negociações com a troika ea manterem a austeridade, ainda
que dissimulada ou em doses mais moderadas, Passos Coelho poderá afirmar em sua
defesa que já sabia da inexistência de alternativas, que fez o que devia e
podia fazer. Com uma diferença, que aliás na noite de quinta-feira tratou de
sublinhar nas suas declarações em Bruxelas: a missão que a troika impôs a
Portugal era, em certas questões, tão “impossível” como a que foi aplicada à
Grécia e o seu Governo foi-lhe capaz de resistir. Para o eleitorado moderado e
conservador, o simples facto de o país ter sido poupado ao discurso de
emergência dos gregos é, por si só, um sinal de trunfo.
A sorte de Passos
e o azar dos que lhe pedem uma mudança brusca no seu trajecto político é que a
maior parte dos portugueses não é dada a estados de alma que os levem a trocar
o certo, por medíocre que seja, pelo incerto, por brilhante que possa ser. O
discurso da modéstia (ou do medo de existir) cola bem com um país que já se dá
por feliz em ser remediado. Passos salvou-nos da bancarrota como outrora
Salazar nos salvou da guerra. E isso vale muito mais em termos eleitorais do
que os bons princípios e as boas intenções dos cidadãos e cidadãs que perderam
tempo a escrever-lhe uma carta para a qual já sabiam a resposta.
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