Como foi possível que “um pequeno
grupo de funcionários não-eleitos recebesse o poder de mudar radicalmente
alguns países?” “Só no final de 2013, em véspera de eleições, o Parlamento
Europeu decidiu investigar. Durante três anos ninguém quis saber…”
Num cinema de Berlim jornalistas
alemães fazem a autópsia da troika
PAULO PENA
23/02/2015 - PÚBLICO
O documentário Poder sem Controlo, de Harald Schumann, traz novas
revelações sobre o “grupo de funcionários não-eleitos que receberam o poder de
mudar radicalmente” Portugal, a Grécia, a Irlanda e o Chipre.
A sala do cinema
Arsenal, em Potsdamer Platz, está cheia. Esta não é a estreia oficial do filme
A Troika: Poder sem controlo, do jornalista Harald Schumann, realizado por
Árpád Bondy. Essa será, oficialmente, na terça-feira, quando o canal Arte, que
co-produziu o trabalho com a estação pública alemã ARD, transmitir o resultado
de mais de um ano de investigação e entrevistas. Sábado, 21, foi apenas o dia
do primeiro visionamento para “amigos e família”.
Ali, a dois
passos do moderno edifício de cinemas – um gigantesco e envidraçado Sony Center
–, erguia-se o muro de Berlim. Ainda restam algumas placas de cimento na praça,
que já era uma das mais movimentadas do mundo no início do século XX. O muro
agora é apenas uma cicatriz no alcatrão, duas linhas paralelas que serpenteiam
pelas ruas, mais ou menos despercebidas, até que o betão irrompe,
descontinuado, aqui ou acolá, como cenário para as fotos dos turistas. O resto
das pedras foram levadas, como recordação. Berlim virou a página. E é isso que
os cerca de duzentos convidados de Harald e Árpád estão aqui a fazer.
Ao longo do
último ano, Harald, que é um dos mais reconhecidos jornalistas de investigação
alemães, com livros que vendem mais de um milhão de exemplares, e um outro
documentário, sobre bancos, no curriculum, viajou de Lisboa para Atenas, de
Nicosia para Dublin, de Frankfurt para Washington. Entrevistou mais de trinta
pessoas, de Yannis Varoufakis a obscuros burocratas da troika. Quando começou,
a troika não era, como o muro, uma recordação ou uma cicatriz. Estava em plena
actividade.
Quando, na última
semana, terminou a montagem definitiva do documentário, o Eurogrupo parecia ter
declarado o óbito desta associação informal da Comissão Europeia com o Banco
Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, destinada a intervir nos
países que deixaram de poder refinanciar as suas dívidas depois do pânico
gerado pela crise financeira de 2008. Na sexta-feira à noite, Harald deu por
terminado o trabalho. E o Eurogrupo chegou a acordo para uma extensão dos
empréstimos à Grécia, pela primeira vez sem a chancela da troika.
Timing perfeito
para a estreia, sublinhado pela grande ovação no final. Harald subiu,
timidamente, ao palco para agradecer, com Bondy. E explicou o que leva um
alemão a querer saber o que maioria das instituições europeias ignoraram
durante quase quatro anos: Como foi possível que “um pequeno grupo de
funcionários não-eleitos recebesse o poder de mudar radicalmente alguns
países?” “Só no final de 2013, em véspera de eleições, o Parlamento Europeu
decidiu investigar. Durante três anos ninguém quis saber…”
As respostas que
Schumann encontrou são surpreendentes. Thomas Wieser, Presidente do Grupo de
Trabalho do Eurogrupo, é um desses funcionários que poucos conhecem. Austríaco
com gosto por gravatas pouco convencionais, é ele quem coordena os dossiês que,
nas cimeiras dos ministros das Finanças da zona Euro, acabam por redundar em
decisões políticas.
Wiesel olha com
um ar desconfiado para a câmara de Schumann, mas ensaia uma resposta: “Todas as
acções que foram tomadas nos países sob assistência não tiveram lugar dentro do
quadro legislativo normal da União Europeia.” Este reconhecimento não é um
sinal de arrependimento, contudo. Wieser acredita que esse “estado de excepção”
legal se justificou.
Mesmo se isso
levou a situações tão impensáveis como a que é descrita no filme pelo
ex-ministro grego da Reforma Administrativa. Antonis Manitakis era o
responsável da pasta no último Governo da Nova Democracia, de Antonis Samaras.
Certa noite, “às 11 horas”, recebe uma chamada do chefe do FMI em Atenas (que
também esteve em Portugal), o dinamarquês Paul Thomson. Ouviu uma voz ríspida
do outro lado: “Depende de si se a Grécia recebe o próximo empréstimo de 8 mil
milhões de euros:” Manitakis afirma, indignado: “Fui chantageado. Ele queria
medo e submissão. Deu-me a sensação, nas reuniões que tivemos, que eu
representava um país não apenas em dificuldades, financeiras, mas basicamente
corrupto.”
Não se julgue que
isto é uma questão de choque político ou ideológico. A ex-ministra do Trabalho,
que agora é a presidente não-executiva do Banco da Grécia, conta uma história
semelhante. Loika Katseli mostra um e-mail, que recebeu da troika, onde se lê,
a propósito de uma proposta de lei que o Governo grego pretendia aprovar: “Cara
ministra, pedimos desculpa, mas a sua proposta é inaceitável. A lei deve ser
escrita do modo que se segue…” E lá aparecia uma nova redacção, minuciosa da
lei. Com um pequeno problema: não era no sentido que o Governo, eleito,
pretendia…
O pior que pode
acontecer a um país é cair mãos de burocratas internacionais”, lamenta Paulo
Nogueira Baptista, director-executivo do FMI, em Washington. Este brasileiro
tem assento no “conselho dos 24”
que comanda os destinos do Fundo, e reconhece que a participação da instituição
no processo grego “foi um momento mau do FMI”. Não só porque tudo foi “pouco
transparente”, mas também porque “nos ambientes protegidos de Washington e de
Bruxelas” ninguém consegue “sentir os problemas dos países” sob intervenção.
Uma das
entrevistas mais curiosas, e que despertou gargalhadas na assistência no cinema
Arsenal, foi dada por um desses “burocratas”, Albert Jaeger, também austríaco,
representante do FMI na troika portuguesa. O clímax aconteceu com uma pergunta
simples de Schumann: “Porque está escrito no memorando português que o BPN tem
de ser vendido no prazo máximo de um mês?” Resposta, sorridente: “Sobre esse
assunto eu preferia não comentar casos específicos.”
Jaeger tem o
papel de redimir a seriedade do documentário com momentos cómicos. Schumann
pergunta-lhe por que razão insiste a troika em mexer na legislação laboral
portuguesa e em baixar os salários. “Na situação em que Portugal se encontra,
tem de aumentar a competitividade. Muitas das reformas laborais foram muito
úteis para a competitividade da economia.”
Porém, os maiores
beneficiários dessas medidas, os empresários portugueses, desmentem Jaeger no
minuto seguinte. António Saraiva, da CIP, explica a Schumann que “os salários
em Portugal não são elevados. Os salários baixos fazem parte de um modelo de
desenvolvimento ultrapassado. Num inquérito aos nossos empresários, a reforma
laboral aparece em sétimo lugar das suas prioridades. A troika limitou-se a
ouvir-nos, mas pouco fez. Acho que deveria ter a nossa opinião em consideração.”
Paul Krugman,
economista, resume o problema a Schumann: “Se nós somos Angela Merkel, tomamos
decisões que afectam gregos e portugueses, mas só respondemos aos eleitores
alemães…”
Estes eleitores
alemães, aqui presentes em Potsdamer Platz, sorriem. E os eleitores dos países
sob intervenção, quando tiverem a tentação de tomar a parte pelo todo também
podem sorrir, quando descobrirem que Harald Schumann, que é grande-repórter do
diário Der Tagesspiegel, tem como editora a filha do ministro das Finanças
alemão, Wolfgang Shauble.
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