O tesouro do delfim
ANA GOMES
13/02/2015 / PÚBLICO
As infracções indiciadas por elementos que constam do processo judicial dos
submarinos não prescreveram.
Há demasiadas
questões nebulosas sobre os actos praticados por Paulo Portas nos atribulados
processos de compra dos submarinos e de outro equipamento militar. É tanto o
nevoeiro que quase passa despercebida uma das questões centrais. Perguntei no
Twitter, mas até hoje não tive reacção: “Quem pergunta a Paulo Portas de onde
vinha o fundo ad usum delphini que era para seu uso exclusivo? E passou-o ao
sucessor no CDS/PP, em 2005?”
A interrogação é
justificada – afinal não foi por suspeitas de financiamento partidário ilegal
que foi aberta a investigação judicial ao contrato dos submarinos? Além do
milhão de euros que entrou nas contas do CDS/PP no BES, subitamente, na última
semana de 2004, por afã doador de personagens fictícias como um tal
"Jacinto Leite Capelo Rego", havia escutas telefónicas no processo
Portucale (o dos sobreiros do GES) com referências a fundos e compromissos
financeiros secretos.
Tudo consta do
processo que tive oportunidade de consultar, como assistente. E sucede haver
elementos sobre decisões que em Abril de 2005, afastado do Governo, o
ex-ministro da Defesa tomou, com o seu tesoureiro Abel Pinheiro, sobre a
passagem de contas à nova direcção partidária, relativamente a financiamentos
feitos ao CDS/PP.
Com parte do
dinheiro recolhido (cuja origem não é conhecida) terá sido criado um fundo
secreto. Para quê? Ad usum delphini ("Para uso do delfim").
A expressão é
famosa porque era usada para designar as edições dos clássicos latinos,
destinadas ao uso do delfim, filho de Luís XIV. Ainda hoje é usada para referir
qualquer edição expurgada e simplificada. Mas não era, por certo, nesta acepção
que a usavam os dois dirigentes partidários. O que importava era que o dinheiro
obtido não fosse parar a mãos erradas, no caso as de José Ribeiro e Castro,
sucessor de Paulo Portas na direcção do CDS/PP.
Assumindo que
delfim só há um, para que serviria o dinheiro?
Não se sabe. Nem
quanto era, nem de onde veio, nem onde estava guardado, nem para que serviria. Nem
para onde foi. Sabe-se apenas que se destinava a uso exclusivo de Paulo Portas.
Como é possível
que esta revelação não suscite indignação pública? Suscitará, de certeza, se
quem de Direito esclarecer o que ocorreu efectivamente.
A lei impõe que o
pagamento de qualquer despesa dos partidos políticos seja obrigatoriamente
efectuado por meio de cheque ou por outro meio bancário que permita a
identificação do montante e a entidade destinatária do pagamento, devendo os
partidos proceder às necessárias reconciliações bancárias.
Um fundo secreto,
como o referido, permitiria fazer pagamentos, à margem da lei, a bel-prazer do
chefe partidário em exercício. Distinta e mais grave seria, todavia, a
apropriação desse dinheiro pelo ex-líder do partido, para uso próprio ou por
terceiros da sua confiança.
Uma coisa é
certa: face à legislação sobre financiamento partidário, a criação de um saco
azul como o aludido constitui infracção grave.
Não apenas por
ter natureza clandestina, violando regras de transparência que a lei consagra,
mas porque seria apropriação de dinheiro pertencente ao partido por membros da
sua direcção cessante.
A reacção
enervada de Paulo Portas e a tentativa de fugir ao debate político sobre
violações da lei, disparando julgamentos de carácter e fazendo de vítima de
perseguição, não vão chegar para encerrar o assunto e virar a página.
As infracções
indiciadas por elementos que constam do processo judicial dos submarinos não
prescreveram. Os protagonistas e as suas vítimas estão vivos e podem depor
perante a Justiça, que decidirá, nos termos da Constituição e da lei.
O tesouro do
delfim não lhe pertence. Se é o que parece, é nosso e deve ser devolvido.
Eurodeputada (PS)
Sem comentários:
Enviar um comentário