Uma intensa nuvem de desejos
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 07/02/2015 - PÚBLICO
A milhas do Syriza, pode-se saudar a mudança que o Syriza trouxe a um mundo
estagnado e pantanoso, maldoso e desigual. Não preciso de explicar mais nada,
pois não?
Uma das coisas
que a vitória do Syriza e o conjunto de eventos posteriores têm mostrado é a
sua importância para todo o espectro político da Europa. Neste sentido, os
gregos podem falhar em tudo, que nada será de novo igual nem na Grécia, nem na
Europa.
Quando um
acontecimento gera tão intensos sonhos e pesadelos, estamos perante a história.
Pode ser uma nota de pé de página, um parágrafo de meia dúzia de linhas, mas
ficará na história da Europa. Embora não esteja certo, admito que possa vir a
ser o mais importante momento europeu depois da unificação alemã.
Há quem considere
que nada disto tem importância, até pela irrelevância da Grécia no conjunto das
economias da União Europeia, ou pelo seu papel de minúsculo David face ao
Golias alemão. Mas David matou Golias apenas com uma funda... Seja como for,
mais do que não ter importância, é o desejo de que não tenha importância e o
mundo volte ao conforto do habitual. Como em todo este texto se verá, um dos
efeitos do caso grego é multiplicar o mundo dos desejos, e isso é já, em si
mesmo, uma poderosa vitória simbólica.
Mas olhe-se para
o mapa de Europa, a que se deve acrescentar alguma da história da Europa. A
Grécia está nos Balcãs, por si só um sítio muito pouco recomendável. Um pouco
mais acima e a leste arde cada vez com mais vigor a guerra civil ucraniana,
talvez o mais perigoso conflito internacional dos dias de hoje. Ao seu lado
está um tradicional inimigo, a Turquia, o fim da Europa e o princípio da Ásia. Alguém
pensa que a Grécia possa ser esmagada e humilhada sem consequências na sua
política externa e na geopolítica da região?
Os adversários do
Syriza, que são os “ajustadores inevitáveis”, sabem que se deu um ponto sem
retorno. Nós sabemos disso e eles sabem que nós sabemos que eles também sabem. Mas
um ponto sem retorno não significa que o caminho seja unívoco, apenas que as
coisas já não voltam para trás. Mesmo que, no fim de tudo isto, o Syriza seja
varrido da governação, os gregos remetidos para uma maior pobreza, e os alemães
e os seus aliados e colaboracionistas tenham conseguido domar a “revolta”
grega, a paz podre destes últimos anos não mais voltará.
No passado, ainda
próximo, havia uma maneira de acabar com a aventura do Syriza: ajudar os
“coronéis” a fazer um golpe de Estado. Pode parecer impossível, mas as forças
armadas gregas vão ser o lugar de um complexo choque de lealdades. Por um lado,
há uma forte componente nacionalista na vitória do Syriza – o aspecto mais
negligenciado nas análises que privilegiam o “ideológico” no extremismo do
Syriza – e não há grego que não se sinta insultado pela prepotência alemã e
pelos seus diktats à Grécia. Isso coloca os militares mais perto do governo,
mesmo que possa ser tido como um governo de perigosa ideologia “comunista”.
Por seu lado, os
militares gregos são “militares NATO” impregnados de uma forte cultura vinda da
Guerra Fria, e podem reagir a uma viragem governamental pró-russa que se venha
a dar de conveniência e de desespero, e que representa de facto uma das margens
de manobra para que o Syriza pode ser empurrado. Podem também achar que a
fragilização da Grécia representa oportunidades para o seu adversário
histórico, a Turquia, que pode ter a tentação de explorar este momento difícil.
Há um largo contencioso, incluindo um conflito territorial sobre as ilhas
gregas do mar Egeu, entre a Grécia e a Turquia, a somar aos conflitos mais a
norte com a Macedónia, perdão, a FYROM, e com o Epiro albanês. Se reduzirmos o
actual conflito grego apenas à sua dimensão da dívida, da troika, das
imposições alemãs, e não virmos o resto, cometemos um sério erro de análise.
Por isso, o
Syriza dá origem a um grande feixe de desejos, que penetram na linguagem
política, muitas vezes levando os seus sujeitos a confundirem o que desejam com
a realidade. Há sonhos pró-Syriza, e pesadelos anti-Syriza, e estão aí à solta
nos discursos, nos artigos, nos debates, nas redes sociais, nos blogues. Há, do
lado dos defensores da “inevitabilidade”, abalados pela singularidade de um
partido de fora do “arco governativo” ideológico ter ganho as eleições, um
desejo central: que o Syriza falhe. Que, pura e simplesmente, tudo corra mal,
haja novas eleições e volte a Nova Democracia a governar a Grécia,
reconstituindo-se o mundo como “nós” o conhecemos, familiar, habitual,
“inevitável”. Se isso acontecer, o mundo volta aos eixos, ou seja, à
“inevitabilidade.
As variantes
deste desejo são várias, a começar pelo desejo de que o Syriza abandone de
forma explícita e evidente as suas propostas eleitorais, que seja como
Hollande, em França. Confundindo o seu desejo com a realidade proclamam que
isso já aconteceu, mas seria bom serem mais prudentes, porque não é a
explicitude das propostas que conta, mas o saber-se se haverá ou não ganho de
causa para os gregos com todo este processo. E, mais importante, ainda, que os
gregos estejam convictos de que o obtiveram votando no Syriza e não em qualquer
outro partido.
A versão dura é o
desejo que o Syriza traia de forma evidente o que prometeu, aceite um acordo de
fachada, para que tudo continue na mesma. Que o Syriza apareça aos olhos de
todos como um bando de oportunistas, demagogos, irrealistas, que se venderam
por um prato de lentilhas, as mesmas lentilhas “inevitáveis” que a Nova
Democracia servia e que funcionavam como conforto para governos
colaboracionistas como o português.
Aí haveria o
desejo de que o Syriza encontrasse aquilo que eles chamam a “realidade” de
frente, de preferência sob a forma de um choque frontal com medidas de
retaliação, que punam os gregos pelo modo como votaram. É o desejo maldoso de
que os gregos sejam punidos com mais austeridade, porque contestaram a
austeridade, ou não a aplicaram com a ferocidade que deveria ter tido. Quando o
nosso primeiro-ministro diz que os gregos não fizeram o que deviam, como
Portugal e a Irlanda, o que está a dizer é que a tragédia que se abateu sobre a
Grécia com números assustadores de pobreza, miséria, desemprego, falta de
condições de vida mínimas, de desespero, foi pouco. E como eles contestaram
esse “pouco” devem ter ainda mais, que é para aprenderem a ser bem-comportados.
E por aí adiante, num exercício que Marx chamaria “luta de classes”, que é a
pólvora em que esta gente anda a mexer alumiando um fósforo mental para ver o
que se passa.
Claro que, do
outro lado, há também uma outra série de desejos, nem todos recomendáveis. Um
deles é o de que o Syriza faça por “nós” aquilo que não somos capazes de fazer,
faça pela esquerda aquilo que ela não é capaz de fazer, usar o mimetismo com o
Syriza sem se ser capaz de fazer o lento trabalho de implantação que ele fez. Ou
desejar ganhar eleições copiando o Syriza no plano antiausteritário e ignorar
os aspectos soberanistas e patrióticos que o fizeram sair da exclusividade
extremista.
Ou desejar que
Portugal seja a Grécia nas próximas eleições. Iludir-se com a ignorância de que
a situação grega (ou até espanhola com o Podemos) não é a situação portuguesa. Em
Portugal, as próximas eleições serão muito bipolarizadas e, se o não forem, é
porque o PSD-CDS já as ganhou, ou o PS terá apenas uma “vitorinha”. O PASOK na
Grécia foi varrido do mapa porque a bipolarização se fez entre o Syriza e a
Nova Democracia, como em Espanha o Podemos pode crescer devido às fragilidades
do PSOE. Em Portugal , nada disso acontece.
Eu também tenho um
desejo simples e modesto, com muito poucas ilusões. Desejo que as coisas corram
bem para os gregos, que eles comecem a sair do buraco infernal em que foram
colocados, e que possam, pelo seu acto corajoso de votar contra o statu quo,
mostrar que a ditadura da “inevitabilidade” é um deserto mental perigoso, útil
para se subordinar Portugal aos poderes europeus e alemães, fragilizar a
democracia e empobrecer os portugueses. É por isso que a milhas do Syriza se
pode saudar a mudança que o Syriza trouxe a um mundo estagnado e pantanoso,
maldoso e desigual. Não preciso de explicar mais nada,
pois não?
Sem comentários:
Enviar um comentário