Alemanha brinca com o fogo na
Grécia
JOSÉ VÍTOR
MALHEIROS 10/02/2015 - PÚBLICO
Sempre que existe uma oportunidade para mostrar um lampejo de sentido
patriótico, Passos Coelho exibe a sua natureza.
1. Pedro Passos
Coelho nunca surpreende. Sempre que existe uma oportunidade para mostrar uma
réstea de dignidade pessoal, alguma ténue preocupação com os cidadãos do seu
país ou um lampejo de sentido patriótico, Passos Coelho exibe a sua natureza e
faz a única coisa que sabe: obedece ao que julga serem os desejos do seu
suserano.
Foi assim com a
notícia da vitória do Syriza na Grécia, com o anúncio das primeiras posições do
Governo grego e foi assim com a proposta grega de uma conferência internacional
sobre a dívida. Tudo acontecimentos que qualquer Governo português,
independentemente da sua cor política, deveria receber com algum agrado, porque
reforçam a nossa posição negocial como credores no seio da União Europeia, mas
que Passos Coelho preferiu criticar ecoando os ditames da voz do dono. O
Governo grego quer defender a dignidade e a vida dos gregos e Passos Coelho não
suporta esse atrevimento. Passos Coelho nem percebe como é que Tsipras não
considera uma honra servir os poderosos deste mundo e lamber a sola cardada das
suas botas, deleitando-se na volúpia da submissão. Passos Coelho não é mais
papista que o Papa: é apenas mais alemão do que Angela Merkel e mais obsceno do
que Miguel de Vasconcelos.
2. Tsipras vai
ter de voltar atrás, o Syriza vai recuar, Varoufakis tem de engolir uns sapos,
a Grécia vai renegar as suas promessas, aquilo era um conto de crianças, a
Alemanha vai-lhes partir as costas, as pernas, os braços, os dentes e Portugal
vai ajudar com todo o gosto, a Espanha também e a Itália e a França vão ter
medo de se meter ao barulho. Uma parte da imprensa nacional e internacional
rejubila com a mais pequena intervenção onde um dirigente do Syriza fale
sensatamente porque isso significa que estão “a recuar”.
Na realidade, a
negociação ainda nem começou de facto e, como é habitual, deverá envolver
múltiplos ajustamentos nas posições dos negociadores.
Muitas das vozes
interessadas em enfraquecer a posição grega sublinham o facto de os gregos
terem deixado de usar a expressão “perdão”, mas isso é irrelevante. A Grécia
exige e precisa de renegociar a sua dívida, mas se isso é feito por corte do
capital em dívida, por redução dos juros ou por alargamento dos prazos (que
pode ser uma transformação de parte da dívida em dívida perpétua) é
indiferente. Quanto a dívida perpétua, soubemos nos últimos tempos que a
Inglaterra só agora vai pagar dívidas que contraiu no século XVIII e que a
Alemanha só em 2010 pagou o que sobrava da sua dívida da I Guerra, havendo ainda
hoje contas por acertar – nomeadamente com Portugal.
Em todos os
casos, a renegociação da dívida grega, que terá de acontecer se não quisermos
aceitar o pior, significará perdas para os credores. Mas a garantia de que irão
receber é uma vantagem importante. E a manutenção de alguma concórdia na Europa
também.
Como em todas as
negociações, nesta é importante que nenhum dos negociadores perca a face e, por
isso, é preciso dar algum desconto às declarações das várias partes. A Alemanha
precisará de dizer que fez recuar a Grécia e que a obrigou a retirar a
exigência de haircut. A Grécia precisa de dizer que conseguiu obrigar a UE a
reescalonar pagamentos de acordo com as possibilidades da sua economia. Isto,
se tudo correr bem. Mas o que é evidente para quem leia jornais é que há
demasiada gente empenhada em que não corra bem e apostada em inquinar a
discussão. Gente para quem é importante fazer da Grécia um exemplo para que
mais nenhum governo de esquerda seja eleito na Europa, para que mais ninguém se
atreva a contestar os credores ou a pôr em causa o poder da Alemanha. Por
agora, Merkel tenta apagar um fogo na Ucrânia mas brinca com o fogo na Grécia.
3. Por agora, a
posição da Alemanha é de total intransigência. Apesar de saber que a
intransigência não permitirá que a Grécia pague a sua dívida mais cedo. Não faz
sentido? Faz, se o objectivo for manter a Grécia numa eterna dependência. E, de
caminho, todos os outros países devedores, como Portugal. Faz, se o objectivo
for transformar a dívida numa renda eterna, de que os alemães irão beneficiar
para sempre e que irá escravizar os gregos e os portugueses durante gerações. As
invasões das novas guerras já não se fazem com soldados no terreno. Se se quer
conquistar um país, é mais fácil escravizá-lo pela dívida.
A Alemanha,
último país da Europa a usar mão-de-obra escrava em massa, conhece as vantagens
do processo. Muitos dos grandes empórios alemães cresceram assim, sobre o
trabalho gratuito de milhões de escravos que, durante a última guerra, chegaram
a representar 20% da sua mão-de-obra e cujos sobreviventes só muito
recentemente começaram a ser indemnizados com quantias pouco mais que
simbólicas. Um empréstimo forçado, sem juros, com longa maturidade, ainda
largamente por pagar, que não indigna os comentadores. Milhares de empresas
como o Deutsche Bank, a Siemens, a
Volkswagen, a Hoechst, a Allianz, a BASF, a Bayer, a BMW cresceram assim. A
Alemanha sabe que não o pode voltar a fazer, mas a escravidão da dívida
assegura a melhor alternativa.
jvmalheiros@gmail.com
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