sábado, 28 de fevereiro de 2015

“Credibilidade e confiança” / MANUEL LOFF


“Credibilidade e confiança”
MANUEL LOFF 28/02/2015 / PÚBLICO

“A nova Europa deverá, portanto, constituir um todo: um agrupamento de países autónomos na sua governação e administração, mas orientados por princípios gerais uniformes”, o que implica “(a) o reconhecimento pelos diferentes Estados da solidariedade dos seus interesses individuais; (b) uma certa uniformização na estrutura desses Estados; (c) um acordo geral sobre os princípios e processos a adotar para alcançar os fins que se têm em vista”. O texto é de 1941, mas podia ser de 2015. Quem escrevia assim sobre os projetos de “comunidade europeia” (a terminologia era mesmo essa) que a Alemanha de Hitler queria impor à Europa na II Guerra Mundial era Tovar de Lemos, negociador económico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, um diplomata monárquico que Salazar mandara para Berlim depois de se ter convencido (ocupação de França e dos Balcãs, isolamento da Grã-Bretanha, conquista de metade da parte europeia da União Soviética) que a Alemanha ganhara a guerra no continente.

Governando um país periférico face ao conflito, as elites salazaristas (seguindo uma tradição que se mantém até aos dias de hoje) não queriam perder um barco que os levaria, sem participar na guerra, a entrar na Nova Ordem Europeia que Berlim ia tecendo. O mais curioso é ver como os dirigentes de um regime abertamente nacionalista se punham em bicos de pés para, já então, se fazerem passar pelos melhores amigos do chefe da pandilha: um tecnocrata dos anos 40 como era Tovar garantia a Salazar: “Podemos desde já salientar que dificilmente se encontrará na Europa outro país que apresente em relação à Alemanha tamanha similitude de instituições, de princípios de governação e de ideologias políticas e sociais como o nosso. (…) Em parte alguma encontrará a Alemanha menor necessidade de uniformização que em Portugal.” (Relatório, 15/11/1941, reproduzido em Dez Anos de Política Externa, 1936-1947)

Lembrei-me deste exemplo (entre muitos) a propósito da tese sibilina que Wolfgang Schäuble, esse velho advogado que faz as vezes de ministro das Finanças na Alemanha, expendeu sobre o “'sucesso' do programa português” por comparação, subentenda-se, com o insucesso da política grega: ele “explica-se pela confiança e credibilidade” (citado no Negócios, 18/2/2015). À sua frente, em Berlim, numa conferência da Fundação Bertelsmann, a nossa ministra, com aquele seu sorriso profissional, deliciava-se com essa outra farpa lançada aos novos governantes gregos do Syriza: "O mais importante é não destruirmos a confiança mútua. Se [a] destruirmos, estamos a destruir a Europa." “[Pelo contrário,] Portugal, em conjunto com a Irlanda, é 'a melhor prova' de que os programas [europeus de assistência financeira] funcionam, 'e de forma mais eficaz do que muitos esperariam há quatro anos'.”

Foi, com certeza, nessa “confiança”, e beneficiando dessa especial “credibilidade” de que a nossa ministra dos swaps goza junto de Schäuble (um impoluto político investigado em 1999-2000 por financiamento ilegal do seu partido) que, como garante o jornal alemão Die Welt, terá pedido “pessoalmente” a Schäuble firmeza ao para enfrentar esse “contador de histórias” (Passos dixit) que lhes parece ser Varoufakis.

Já muito se disse sobre esta especial vocação do Governo português (o de Passos não foi o primeiro, e não será, infelizmente o último) para fazer o papel de queixinhas do xerife Schäuble, até mesmo quando o seu vice Juncker quis vir encenar um arrependimento dissimulado e lamentar-se da humilhação infligida a portugueses e a gregos. Os intermediários nacionais da humilhação sentiram-se, naturalmente, magoados... O que me parece significativa é essa terrível pobreza da política europeia do Estado português, ou simplesmente de toda a sua política externa. País periférico do centro europeu da economia mundial, e parceiro perfeitamente menor da estratégia norte-americana no mundo (veja-se como andam desesperados os atlantistas militantes ao verificar como Portugal aparece no item peanuts das prioridades de Washington), a única estratégia que se percebe haver, de novo, na forma como se tem posicionado Portugal na Europa e no mundo desde o fim do período revolucionário e a descolonização é a permanente procura de colagem a quem manda no mundo, isto é, aos EUA-polícia-global, por mais que a sua política crie cisões no próprio Ocidente em que Lisboa enfileira; e ao diretório de turno na Europa, o que, desde Maastricht, Tratado Orçamental e, sobretudo, o pacto com a troika, passou a ser a Alemanha, mesmo quando esta nem se preocupa em esconder a sua opção por uma UE organizada em círculos concêntricos, no mais central dos quais está apenas ela e aqueles que sigam os estritos preceitos que lhe garantam uma hegemonia económica e comercial que, desde a unificação, ela deixou de fingir querer partilhar com os demais. Os governos portugueses (direita ou PS, é indiferente) são, de resto, a par do britânico, do holandês, do dinamarquês e dos da Europa pós-comunista (a nova Europa, como lhe chamava Rumsfeld, para a distinguir de alemães e franceses que então mostravam, a propósito da invasão do Iraque, alguma autonomia), dos que mais se empenham em compatibilizar o que muitas vezes é incompatível: um atlantismo ortodoxo, que cala todas as críticas a um aventureirismo bélico americano que se tornou permanente, e um europeísmo que, sem nunca se assumir federalista, presume a cedência total a Bruxelas/Berlim da soberania económica como a melhor forma de impor aos portugueses um modelo que contradiz todos os esforços de democratização social, contornando uma Constituição que, desta forma, passou a ser irrelevante sequer rever.


Não há aqui nenhuma nostalgia das ilusões salazaristas de manter uma certa autonomia à custa da guerra em África. Nem a solução está em oferecer a base das Lajes aos chineses; há tanta criatividade nessa proposta quanto há na venda das nossas empresas públicas a chineses, franceses, angolanos... O horror que povoa os corredores do poder de Lisboa face à reivindicação grega de autonomia e a vontade (até agora vã) de construir uma frente das economias sobreexploradas pela dívida diz tudo de quão pequena e tacanha é a política externa portuguesa.

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