Políticas de Merkel, o fim do
pesadelo?
JOSÉ PEREIRA DA
COSTA 10/02/2015 / PÚBLICO
O número da revista alemã Der Spiegel de 30 de Janeiro traz na capa uma
foto de Alexis Tsipras com a legenda "Der Geisterfahrer", que se
poderá traduzir livremente por o “visionário” e à letra por o “condutor de espíritos”.
Devido ao que se passou há 70 anos, os alemães criticam sempre os outros de um
modo benevolente, nunca exprimindo abertamente o que verdadeiramente pensam.
A revista faz uma
longa e informada análise, da autoria de nada menos dez jornalistas, sobre as
consequências da vitória do Syriza na Grécia, que pode ser lida em inglês na
versão online. Considerada de centro-esquerda, a Der Spiegel era tida, durante
a Guerra Fria, como das poucas publicações alemãs que criticavam a ausência
quase por completo de desnazificação na República Federal da Alemanha, onde
milhares de quadros nazis ocuparam, pouco tempo depois da guerra, importantes
postos em todos os sectores da sociedade. Isso pode ser confirmado nos relatos
que Hanna Arendt fez do julgamento de Adolf Eichman no início dos anos 1960 e
recentemente nas notícias divulgadas pelo The New York Times de que os Estados
Unidos iriam deixar de pagar as pensões aos nazis, ainda sobreviventes, que
levaram para a América depois da guerra, para nos serviços de informações
combaterem os soviéticos, e que mais tarde regressariam à Alemanha. Noam
Chomsky, numa entrevista a uma rádio americana em 1994, explica também a esse
propósito How the Nazis won the war. Quando comecei a receber a newsletter
diária da Der Spiegel, já depois do início da crise, pensei pois que iria
encontrar uma análise objectiva da mesma. Mas desiludi-me em pouco tempo com a falta
de espírito crítico da actual direcção sobre as políticas de Angela Merkel,
impostas à Comissão Europeia de Durão Barroso, o principal culpado desta
política antieuropeia, como sublinhei num artigo neste jornal em 23/11/13, onde
defendi que se devia ter demitido de presidente da Comissão, o que teria
originado um volte-face das políticas de empobrecimento da maior parte dos
povos europeus.
Segundo a revista
alemã, há três possíveis soluções para o confronto Merkel/Syriza. A primeira é
a de a chanceler alemã resistir ao enfraquecimento do euro, que se está a
desenhar com a recente decisão do BCE de injectar liquidez na economia
europeia, e a tudo o que se está a passar em países como a Espanha, com grandes
mobilizações das populações contra a austeridade, e em França e na Itália, onde
há sinais de que os respectivos governos reforçam as suas críticas a estas
políticas. O facto de a Suíça se ter desligado do euro é mais um sinal de que a
desvalorização já está em marcha. Os alemães pretendem uma moeda forte, como
era o marco, apesar de serem dos países mais exportadores do mundo, porque têm
uma grande capacidade de poupança, por natureza e também pela grande
competitividade da sua economia. Os investimentos que fazem com esses fundos,
as suas pensões e outras poupanças têm desvalorizado imenso com a baixa das
taxas de juro e ainda mais o serão com a injecção de liquidez que o BCE vai
efectuar. Segundo a revista, esta primeira batalha parece perdida. O segundo
cenário é o do pesadelo. O euro continuaria a desvalorizar, os Estados-membros
deixariam de fazer reformas, e ao invés começariam a aumentar os seus défices
investindo na economia, ficando a Alemanha como último garante e responsável, o
que não seria aceite pelo Tribunal Constitucional alemão, nem pela população. E
que redundaria no fim do euro. A terceira hipótese é a do compromisso. Uma
eurozona na qual os Estados não poderiam endividar-se livremente, mas onde as
duríssimas regras impostas pela Alemanha, leia-se Tratado Orçamental, seriam
flexibilizadas nos períodos de recessão como o actual. Mas mantendo-se as
reformas, para que as economias dos Estados endividados se tornassem
competitivas. No fundo, o que propõe Juncker e provavelmente o que o Eurogrupo
irá propor à Grécia. A bola ficaria do lado de Tsipras e do Syriza, segundo a
Der Spiegel.
Há décadas que
conheço esta revista, uma das mais bem-feitas e mais bem informadas da Alemanha
e da Europa. O que me espanta agora é a ausência de espírito crítico. Um seu
director chegou a estar detido por suspeitas de colaboração com a Alemanha
Oriental, há pouco mais de 50 anos, como foi assinalado recentemente nas suas
páginas. Inúmeros artigos e entrevistas foram publicados nestes anos de crise,
quando se começou a ver que as políticas de austeridade iriam redundar em
fracasso, tentando a revista, embora indirectamente, defendê-las como
contraponto a uma injecção de liquidez que não resultaria no crescimento
desejado, sendo o caminho para tanto o que chamam reformas estruturais. Quando
da entrevista com o Prémio Nobel Joseph Stiglitz, perguntaram-lhe se não achava
que nos países, como nas famílias, não se deve gastar o que se não tem, ao que
este respondeu que a economia de um Estado não funciona nem pode ser comparada
com a das famílias.
Penso que não
existe dúvida de que se trata do dobre de finados da política de Merkel, que
está cercada por todos os lados. Até o governador do Banco de Inglaterra,
segundo o The Guardian de 28 de Janeiro, veio lançar um forte ataque às
políticas de austeridade da zona euro e apoiar a acção de liquidez que o BCE se
prepara para lançar e que a Alemanha tudo fez para evitar. Para já não falar de
todas as críticas que têm sido lançadas frequentemente do outro lado do
Atlântico, provenientes de membros do Governo de Obama, como de entidades
privadas e analistas credenciados. Por último, até na própria Alemanha, alguém
como o antigo ministro Joschka Fischer, num texto publicado no Project
Syndicate e transcrito pelo The Guardian, diz que a política de austeridade de
Angela Merkel está agora “in tatters”, ou seja, em farrapos.
E que dizer do
que se passa em Portugal, onde dois mentirosos compulsivos, e sem vergonha, vão
lá para fora dizer que Portugal está a recuperar e que “conseguiu resolver os
seus problemas”, afirmações obtidas de Passos Coelho pelo El País? Mesmo sendo
verdade que houvesse um crescimento digno de registo, que até é inferior ao da Grécia
e da Espanha, não há ninguém que explique ao primeiro-ministro que crescimento
não é sinónimo de desenvolvimento, quando os dois outros índices do
Desenvolvimento Humano, educação e saúde, estão ao nível dos países
subdesenvolvidos? Aconselho Passos Coelho e Portas a passarem nas salas de
espera das consultas externas do Hospital Garcia de Orta, em Almada, para verem
a miséria em que vive o povo português. E que dizer de um Presidente da
República que perante o descalabro dos órgãos da Justiça, com os tribunais
parados durante meses, e dezenas de escolas sem iniciarem o ano lectivo, a
juntar aos hospitais a rebentarem pelas costuras com pessoas a morrer nas
urgências por falta de atendimento, ficou impávido e sereno? Está lá a fazer o
quê? Apenas para receber os banqueiros falidos?
Parece-me que se
está a desenhar um movimento na classe dos médicos e dos outros profissionais
de saúde para fazer com que sejam apuradas responsabilidades criminais do que
se está passar no sector da saúde, para que estes senhores sejam chamados a
responder pelos seus actos premeditados de colocação na miséria de milhões de
portugueses.
Investigador em
Relações Internacionais, antigo funcionário da Comissão Europeia
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