OPINIÃO
É a soberania, idiota!
GUSTAVO CARDOSO 27/02/2015 / PÚBLICO
( ... ) O que se
passa na Europa é que as pessoas, os cidadãos, estão descontentes. E tanto
estão descontentes nas eleições em Hamburgo quando votam no "Alternativa
para a Alemanha" (AfD) e no seu programa anti-euro como quando votam no
Syriza em Salónica.
Seja pelas boas
ou más razões, o problema é que os cidadãos de todos os países da União estão
cada vez mais descontentes com a expectativa futura de terem de alienar a sua
soberania e, também, de já terem alienado demais.
Isso não é
antagónico com estarem contentes com o euro, pois gostam do "seu
euro", gostam dos seus euros portugueses, gregos, espanhóis, franceses ou
alemães, mas não gostam do que o "euro dos outros" representa para a
sua soberania.
Os partidos que
estão a surgir à direita ou à esquerda e a capitalizar votos na Europa são
todos, neste momento, ou nacionalistas ou soberanistas ou patrióticos. A Frente
Nacional, em França, define-se como nacionalista, já o Podemos, em Espanha,
define-se como patriótico, a AfD é soberanista e o Syriza também.
No entanto, os
partidos em crescendo na Europa (e não aqueles que estão à defesa tentando não
perder votos nas próximas eleições) também não são antieuropeus, apenas
procuram outra Europa que lhes permita recuperar soberania.
É um paradoxo mas
é compreensível, algo não está a funcionar na Europa e, por arrasto, também ao
nível nacional e, por isso, algo de diferente se está a formar.
Mesmo em
Portugal, onde as intenções de voto não mostram ainda (pelo menos nas próximas
legislativas) um novo partido com um líder carismático que desafie a
tradicional distribuição de votos, há múltiplos sinais de mudança.
Muito mudou desde
a "tanga" e o "pântano" do início do novo século português,
não é preciso procurar muito para perceber que algo mudou, está a mudar, mas
ainda não ganhou forma definitiva em Portugal.
Para além do que
podemos ler diariamente sobre o crescer das desigualdades em Portugal e da
baixa dos juros da dívida portuguesa, há um vasto conjunto de mudanças que se
estão a acumular e que, mais ou menos, lentamente virão à superfície sob uma
forma diferente daquela que captamos na nossa análise das rotinas diárias.
Em conjunto com
três colegas sociólogos, publicámos em 2015 um livro sobre as mudanças na
sociedade portuguesa nos últimos dez anos, chamado A Sociedade em Rede em
Portugal. Uma década em transição.
Nesse livro há
múltiplos sinais que valerá a pena listar, mas bastarão apenas alguns para
ilustrar o argumento de que os cidadãos percepcionam que há algo que já não
funciona em Portugal e que, para o consertar, algo necessita de ser mudado no
quadro do exercício da nossa soberania e cidadania.
Perto de 70% dos
portugueses pensam que as pessoas podem influenciar os acontecimentos com
mobilizações políticas e sociais. A concordância com esta ideia teve um aumento
de 16% entre 2003 e 2013.
Apenas 8%
considera que o sistema económico português tem sido justo para si.
Cerca de 60% dos
portugueses considera que o sistema económico actual afecta negativamente a sua
vida pessoal.
Segundo a
percepção de 83% dos portugueses, a distribuição de rendimentos em Portugal e´
mais desigual do que na maioria dos países da Europa.
No que respeita a
indicadores de atitudes face a` mudança, 85% dos portugueses consideram que
precisamos de novas políticas com ideias novas.
No conjunto da
população portuguesa, 45% dos indivíduos acham que podem contribuir para uma
mudança social positiva.
Um terço dos
portugueses (33%) considera como principal responsável pela crise económica
actual os governos portugueses, 19% os líderes políticos portugueses em geral,
8% os bancos portugueses, e 25% culpam todo um conjunto de instituições,
pessoas e contextos por igual.
Mais de 70% dos
portugueses mostraram a sua inquietação com escândalos como o caso BPN ou o
caso dos submarinos.
Cerca de 85% dos
portugueses pensa que, de uma forma geral, devia haver mais fiscalização por
parte do governo em relação às instituições financeiras, como bancos e empresas
de crédito.
O aumento da taxa
de desemprego para uma das mais elevadas da Europa, a redução do poder de
compra da população e a falta de recuperação económica preocupam cerca de 90%
dos portugueses.
Sobre a escolha
entre austeridade ou estímulo económico como forma de superar a crise, 50% dos
portugueses acha que devia haver um equilíbrio entre medidas de austeridade e
medidas de estímulo ao crescimento e 31% pensa que devia ser dada
preponderância a estas últimas.
Para além de um
ambiente que oscila entre a vontade de romper com o que está e o não vislumbrar
ainda como tal poderá acontecer, o que os dados nos mostram é a percepção de
que, se não houver um reequilíbrio da soberania no quadro Europeu, os problemas
que hoje identificamos continuarão por tempo indeterminado.
Isto diz-nos que,
se a Europa não mudar (Europa aqui definida como o conjunto de cidadãos eleitos
em diferentes países e tecnocratas, também eles cidadãos de países europeus,
que se encontram regularmente em reuniões da União Europeia), a actual crise
não poderá ser resolvida, estará apenas a metamorfosear-se, de novo, noutra
coisa.
Na metamorfose
actual, depois de já ter sido financeira, económica, fiscal e política, está
agora a evoluir para uma crise de soberania europeia e a deixar de ser, apenas,
uma crise da dívida soberana europeia.
Professor do ISCTE-IUL,
em Lisboa, e investigador do College d'Études Mondiales na FMSH, em Paris
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