O estranho caso do super gestor
que perdeu a memória
Paulo Ferreira
27/2/2015, OBSERVADOR
Zeinal Bava fez um papel de tonto
que ele não é nem nunca foi esperando que todos os que o ouviram sejam tontos o
suficiente para acreditarem na sua narrativa.
Zeinal Bava tem
qualidades invulgares. Foi com essas características, difíceis de encontrar na
mesma pessoa, que fez a sua carreira de gestor até atingir um raro nível de
reconhecimento internacional. Não é um medíocre que entrou na PT à boleia de um
apelido sonante, por tráfico de influências, permuta de favores ou proximidade
partidária. Ao contrário de outros que o antecederam na PT, não precisou desses
expedientes para atingir lugares de destaque.
Se,
posteriormente, se rendeu a essa cultura para ascender ao topo, já é outra
história. Teve obviamente que fazê-lo, tornando-se um gestor de equilíbrios e,
para todos os efeitos, também um “homem do BES”. Podia não ser um entusiasta,
mas também não afrontava.
Entre o leque de
qualidades de Zeinal Bava está o domínio dos números, as contas de cabeça, a
habilidade financeira que a banca de investimento lhe deu e depois desenvolveu.
Ele não se atrapalha com a quantidade de zeros ou com casas decimais, com as
margens e as percentagens, com as somas e divisões. Sabe de cor e salteado os
EBITDAS e os ARPUS, os ROE e os ROI, os CAPEX e os yields. E como e em quanto a
variação de cada um vai influenciar todos os outros.
Outra qualidade é
a exímia preparação para cada reunião, o domínio de cada dossier, a construção
de um discurso lógico, convincente e suportado em factos e dados. Ele tem um
argumento novo para contrariar cada contra-argumento, dando a entender que já
tinha pensado antes em todos os caminhos possíveis e na forma de os barrar para
apenas deixar aberto o que ele acha que é o adequado.
Este homem, que
esteve durante alguns anos à frente dos destinos da PT, deve estar hoje com
vergonha daquele que esta quinta-feira deu um triste espectáculo perante a
Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso BES/GES.
Sem memória,
incapaz de recordar números, sem conhecimento do que se passava na empresa que
dirigia. Sem um dossier minimamente preparado que lhe avivasse factos e o
ajudasse a sustentar as suas teses. Os papéis ficaram, aliás, esquecidos em
casa porque a última coisa que lhe convinha era entrar nos factos comprovados
ou comprováveis. O Zeinal-Bava-CEO-da-PT não contrataria nem para estagiário
este Zeinal-Bava-interrogado-na-CPI.
O ex-líder da PT
foi responder aos deputados para se tentar safar talvez da única forma
possível: fazer um papel de tonto que ele não é nem nunca foi, esperando que
todos os que o ouviram sejam tontos o suficiente para acreditarem na sua
narrativa. Foi lá dizer que o gestor vencedor de prémios dos últimos anos era,
afinal, uma construção de papel, uma ilusão que nunca teve existência real. Foi
lá tentar convencer os deputados e o país que era, afinal, um incompentente a
quem tinham escapado 900 milhões de euros. Ou, pelo menos, um amador, como
certeiramente disse a deputada Mariana Mortágua.
Qual seria a
alternativa a este triste papel? Dizer que sim, que sabia. Que tinha
participado nas decisões de investimento da PT no grupo GES, ou que, pelo
menos, as conhecia e tinha aprovado ou permitido. Assumir que numa empresa não
há aplicações de tesouraria de 900 milhões num único produto sem que haja
previamente 37 validações internas antes de o assunto subir ao vértice dos
decisores para receber o ok final.
Mas o caso PT
está longe de estar fechado e as eventuais peças de defesa judicial começam a ser
feitas nas audições perante os deputados. Este escândalo, filho legítimo do
caso BES, tem contornos jurídicos ainda por definir. No limite, pode haver
responsabilidades criminais para alguns dos envolvidos. Diria mesmo que num
país decente, com órgãos de supervisão e judiciais que funcionem devidamente,
acontecimentos deste calibre na gestão de uma empresa cotada não passariam à
margem da imputação de condutas criminais. Foram demasiadas falhas em
estruturas preparadas para que elas não aconteçam. Foram demasiadas vontades
para que a fusão com a Oi se fizesse a todo o custo, de preferência a um custo
mais baixo para os brasileiros. Que interesses estavam ali em jogo? E qual foi
o preço desses interesses? E porque é que as auditorias tiveram os nomes dos responsáveis
omitidos? Se isto não é um caso de polícia, então não sabemos o que é um caso
de polícia.
A economia de
mercado e o capitalismo, com as suas complexidades e riscos próprios, não podem
ser o álibi perfeito para a destruição de valor ou, pior do que isso, para a
transferência ilegítima de valores. Há milhares de pequenos accionistas lesados
que, decerto, não perderam de um lado para ganhar do outro. Como diz a cartilha
liberal, à máxima liberdade deve corresponder a máxima responsabilidade.
O desfile destas
misérias do nosso capitalismo tem sido possível no Parlamento porque os
deputados estão, finalmente, a desempenhar o seu papel nesta CPI do BES. O que
temos assistido é a um comportamento digno da generalidade dos parlamentares,
que mostram interesse em saber e esclarecer e parecem estar genuinamente mais
interessados em conhecer a verdade do que em fazer a chicana política que
contaminou tristemente a CPI do BPN, para dar só um exemplo. Têm resistido à
tentação de torcer escandalosamente os factos até eles satisfazerem
conveniências partidárias de ocasião. Isso deve ser realçado e aplaudido
porque, por uma vez, a decência não tem cor política e a ética não é de direita
nem de esquerda.
Entre os
deputados desta comissão destaca-se justamente Mariana Mortágua. Estudou
profundamente assuntos que são muito complexos, tem sido implacável nas
questões sem entrar no terreno fácil da demagogia nem perder a preciosa
honestidade intelectual. É suposto que os deputados sejam também porta-vozes
dos cidadãos que não podem sentar-se à volta daquela mesa para questionar
directamente os inquiridos. Nesse sentido, eu sinto-me ali representado pela
deputada do Bloco de Esquerda. E muitos jornalistas deviam aprender como se
faz.
Jornalista,
pauloferreira1967@gmail.com
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