Pela primeira vez a Europa
tornou-se uma questão de política interna
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 28/02/2015 / PÚBLICO
Pela primeira
vez, desde sempre, uma matéria europeia tornou-se uma fractura de política
nacional: a questão grega. Apesar dos esforços inglórios de muitos europeístas,
e de alguns eurocépticos, esta entrada de uma questão europeia na agenda
política nacional não se deu com nenhuma das matérias canónicas da “construção
europeia”. Não foi um tratado, como o de Lisboa, não foi um projecto
constitucional, não foi qualquer reforma institucional, nem o equilíbrio ou
desequilíbrio do poder da Comissão, do Conselho, ou do Parlamento. Não foram
fundos, nem planos, nem quadros comunitários, que esses mobilizam apenas
aqueles que estão na fila para os receber e são vistos com indiferença pela
maioria das populações que acham que não estão do “lado recebedor”. São matéria
popular numa elite especializada em os usar, das empresas às autarquias, ou em
grupos de interesse que conhecem todos os segredos da burocracia europeia para
ir buscar o seu quinhão.
Para o cidadão
comum, é pouco mais do que umas estrelas azuis nuns cartazes junto a obras e
uma enorme suspeita de corrupção pelo caminho.
Não foi, o que é
ainda mais revelador, nenhuma das agendas que surgem nas eleições europeias,
que só mobilizam votantes, e mesmo assim pouco, pelo uso do voto europeu nas
questões políticas nacionais. Não foi nada disso, foi uma discussão que envolve
questões poderosas mas incómodas na União Europeia: democracia, vontade
popular, liberdade dos povos, igualdade das nações, soberania, pensamento
“único”, hierarquias de poder, todas as questões malditas que a actual geração
de governantes europeus anda a querer evitar a todo o custo e agora não pode
fugir delas.
Foi isso que
tornou a questão grega uma questão nacional em muitos países, do “nein” alemão
do Bild às sucessivas sessões do Parlamento português, com tomadas de posição
pró e contra muito mais apaixonadas do que é costume numa questão
internacional, e muito menos na pasmaceira que costuma caracterizar a política
europeia. Passado um mês da vitória do Syriza, temos um mau acordo para os
gregos, que o aceitaram com reserva mental e dificilmente o cumprirão, e um mau
acordo para a União Europeia, que o fez também com reserva mental para
“esmagar” os gregos. Pelo caminho, revelou-se um “estado” da Europa que assusta
qualquer um, com uma elite governamental sob a batuta de um alemão vingativo,
Schäuble (muito mais do que Merkel), que se dedicou a punir a Grécia pelo
atrevimento. A Grécia, o país que mais do que qualquer outro tem razões de
queixa da Europa, tendo sido sujeito a uma imposição de violenta austeridade
sem qualquer resultado palpável, sob um governo espelho do poder europeu, um
partido do PPE aliado com um do PSE. Não foi o Syriza que colocou a Grécia no
estado em que está, foram a troika e o Governo grego amigo de Merkel, Rajoy e
Passos Coelho.
O que se assistiu
foi a uma pura exibição de poder imperial, até com uma dimensão individualizada
em Schäuble, rodeado por uns gnomos serviçais e no meio de uma série de
governantes que de há muito se esqueceram que eram democratas- cristãos,
sociais-democratas, socialistas, e que agora são “europeístas”, uma coisa
indiferenciada e iluminista, feita de uma engenharia utópica serôdia e do mais
clássico impulso burocrático. O que mais os incomodou naquelas salas não foi a
petulância de Varoufakis, nem os discursos inflamados de Tsipras, mas o facto
de os governantes gregos terem lá chegado com um esmagador apoio popular, que
as sondagens revelam ir muito para além dos resultados nas urnas, e de eles
estarem acossados em cada país, a começar pelos mais serviçais, portugueses e
espanhóis.
Para esta elite é
inaceitável que ainda haja governantes que olham para baixo, para a vontade de
quem os elegeu, mal ou bem, enquanto eles o que têm feito é evitar
cuidadosamente levar a votos aquilo que estão a fazer, muitas vezes a milhas
daquilo que prometeram nas suas campanhas eleitorais. Por isso, os gregos
tinham de ser esmagados e humilhados, para regressarem à pátria como
demonstração viva de que não há outro caminho que não seja a submissão, a
“realidade”. A frase jocosa de Schäuble, dizendo que “os gregos certamente vão
ter dificuldades em explicar este acordo aos seus eleitores”, é o mais
revelador do que se passou. Não foi o dinheiro, nem a dívida, nem as “regras”,
foi obrigar o Syriza a comer o pó do chão e quebrar o elo entre eles e os seus
eleitores, essa coisa mais do que tudo perturbadora para estes homens.
E não me venham
dizer que o que está em jogo é a vontade dos eleitores alemães contra a dos
gregos, porque a última coisa que passa pela cabeça de Schäuble é pensar que
faz o que faz porque é o que os seus eleitores desejam. Ele faz o que faz,
porque defende o poder alemão na União Europeia e assim os interesses últimos
da Alemanha, económicos, sociais e políticos. Ele pode ser nacionalista, os
gregos não.
Toda a gente
percebe que o que se passou não pode ser esquecido ou “arrumado” e andar-se
para a frente. Daqui a quatro meses vai tudo voltar outra vez ao de cima e é
até bastante provável que a Grécia deixe o euro. Claro que nesse mesmo dia
deixará de pagar a dívida e as centenas de milhares de milhões de euros
emprestados vão ao ar.
Mas se é possível
admitir um processo de saída do euro sem grandes convulsões institucionais, o
que é que acontece se a Grécia quiser continuar a fazer parte da União
Europeia, onde tem um voto juntamente com os outros países que, em matérias que
implicam a unanimidade, é um veto? Política externa, por exemplo. Será que a
Grécia pode ser “expulsa”? Não pode, a não ser que se mudem os tratados, para o
que é preciso o voto grego…
Claro que há
entorses possíveis de fazer, por gente muito habituada a fazer essas entorses,
mas será líquido que os dezoito continuem dezoito contra um? Já nem sequer falo
do fim da União Europeia como foi fundada, que de há muito já acabou. Falo
desta coisa que se percebe muito bem: o poder imperial não pode manter-se sem a
força e a força não são canhões ou soldados (a não ser no Leste da Europa, mas
depois falamos disso…), mas o dinheiro, a dívida, os mercados – ou seja, como
já o disse, a forma moderna de aliança entre os grandes interesses financeiros
e a política.
Os portugueses,
que as sondagens revelam estar maioritariamente com os gregos, mesmo depois dos
argumentos mesquinhos de que isso lhes iria custar dinheiro, percebem isto com
uma enorme clareza. O argumento de que não há manifestações a favor da Grécia
com mais de 50 pessoas é bom para alimentar o fogo da Internet “liberal” e
governamental que espuma com o Syriza, grita vingança e humilhação, e bate
palmas a Schäuble. Mas deviam olhar com mais atenção para as razões pelas quais
o Governo português, depois de ter sido exibido e denunciado no seu papel
vergonhoso de acólito alemão, percebeu que tinha ido longe de mais em público e
disfarça hoje os seus passos. Porque será?
A resposta é
simples: a exibição de um poder imperial unanimista dos dezoito contra um, com
motivações que se percebe não terem qualquer elevação, dignidade, ou sequer
utilidade, é, como todas as exibições de força, muito preocupante. Assusta, e
bem, quem ainda tiver uma réstia dessa coisa maldita na Europa, o sentimento
nacional antigamente chamado "patriotismo". E se um dia for Portugal
a estar do lado perdedor? E se um dia os eleitores portugueses votarem num
governo “errado”, como pode acontecer em democracia? E se um dia todas as
políticas nacionais tiverem de ir a visto em Bruxelas (já vão em parte)? E se
um dia a União se começar a imiscuir nas nossas fronteiras atlânticas, como já
se imiscui no que os nossos pescadores podem ou não pescar? E se um dia algum
burocrata europeu entender que Portugal deve ser reduzido a um país agrícola e
turístico e fazer uma fábrica for proibido, se competir com a quota francesa ou
espanhola? E se um dia os nossos europeístas (como já o dizem) considerarem que
as decisões do Tribunal Constitucional são “ilegais” face ao direito
comunitário? E se um dia houver um qualquer sobressalto nacional que nos
coloque em confronto com um qualquer Schäuble e os seus dezoito anões?
Nessa altura
lembrar-nos-emos certamente da Grécia.
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