Dignidade, aquele conceito que o
Governo não entende
JOSÉ VÍTOR
MALHEIROS 24/02/2015 - PÚBLICO
A acção da troika foi tecnicamente errada, politicamente contraproducente e
moralmente inaceitável.
1. “Pecámos
contra a dignidade dos povos, nomeadamente na Grécia e em Portugal e muitas
vezes na Irlanda”. As declarações do presidente da Comissão Europeia,
Jean-Claude Juncker, proferidas a propósito da actuação da troika, perante os representantes
dos Estados-membros e transmitidas pelos órgãos de comunicação social,
constituem um mea culpa formal e em termos raramente ouvidos da boca de um
político.
Juncker
considerou que a troika era um órgão sem legitimidade democrática e que a Comissão
Europeia agiu de forma errada ao dar-lhe carta branca para impor políticas de
austeridade aos Estados-membros e ao “confiar cegamente” nela. Juncker
considerou que, no domínio da assistência financeira aos estados, “tudo deve
ser revisto” e admitiu mesmo que parecia “estúpido” ao dizer isto agora, ele
que foi presidente do Eurogrupo, mas que é necessário “aprender com as lições
do passado e não repetir os mesmos erros”. Mas Juncker não disse apenas que a
troika foi ineficaz. Ao usar a expressão que usou, o presidente da Comissão
introduziu um julgamento moral que não pode deixar de ser pesado. Para Juncker,
a acção da troika não foi apenas tecnicamente errada. Ela foi também
politicamente contraproducente e moralmente inaceitável.
É impossível não
concordar com o político luxemburguês quando diz que faz figura de parvo ao
admitir agora isto, enquanto se calou antes, mas é evidente que Juncker, que de
estúpido terá pouco, o diz hoje porque o pode dizer sem grandes custos e não o
podia dizer antes sem arriscar a cabeça.
O que faz com que
Juncker tenha ganho este espaço de manobra não é apenas o facto de ser hoje
presidente da Comissão Europeia, mas o facto de a posição do novo Governo grego
ter obrigado as instituições europeias, os governos europeus, as instituições
financeiras, os analistas, os media e a opinião pública a uma reavaliação do
papel e da legitimidade da troika que dificilmente poderia ter outro resultado.
Se não houvesse
outra razão, esta seria já uma boa razão para nos congratularmos com a eleição
do Syriza na Grécia.
2. As declarações
de Juncker são raras num político, mas não são a história toda. E a história
toda poderia fazer deste episódio um case study nos cursos de relações
internacionais, se Passos Coelho e o seu Governo tivessem relevância política
ou intelectual para ficarem na história.
A história
completa-se com a reacção do Governo português às declarações de Juncker, pela
boca de Marques Guedes, ministro da Presidência do Conselho de Ministros e dos
Assuntos Parlamentares, que considerou as declarações do presidente da Comissão
Europeia “infelizes” e garantiu que a dignidade de Portugal “nunca foi
beliscada” pela troika.
Como se pode
entender que, por um lado, a Comissão Europeia diga que ofendeu a dignidade dos
portugueses, que se penitencie pelo facto e que afirme que isso não pode voltar
a acontecer, e que, por outro lado, o Governo português responda que não
senhor, que a dignidade dos portugueses não foi ofendida, que não há razão para
penitências nem para falar de indignidade?
A explicação é
chocante, mas simples: acontece que Jean-Claude Juncker é mais exigente na
defesa da dignidade dos portugueses do que o Governo português.
Para Paulo Portas
(que instituiu oficialmente o regime de “protectorado” de Portugal sob a tutela
das potências europeias sem o mínimo sobressalto patriótico, como se se
tratasse apenas de um contratempo menor) e para Pedro Passos Coelho e Maria
Luís Albuquerque, para quem servir os credores de Portugal é a mais alta das
honrarias, é difícil imaginar o que seria ofender a dignidade dos portugueses,
porque o conceito de dignidade do povo português é algo extremamente vago, que
se encontra subalternizado em relação à vassalagem devida aos mais fortes e à
admiração devida aos mais ricos.
Outra razão por
que o Governo português e o seu ministro porta-voz receberam mal a afirmação de
Juncker é porque ele fechou, de facto, a porta à troika e disse que esta
indignidade não pode voltar a acontecer, mas, caso se apresentasse outra
oportunidade, o Governo em bloco gostaria de obedecer de novo às ordens da
troika, mesmo sendo ela arrogante, antidemocrática e ineficaz, porque sabe que
isso agrada aos seus maiorais.
3. Quando o
Governo grego disse que não negociaria com a troika e acabou por aceitar
negociar com — além do Eurogrupo — a Comissão Europeia, o FMI e o Banco Central
Europeu, houve quem tivesse falado de uma mera “questão de semântica”, já que
estas três instituições eram, de facto, a troika. Mas há uma diferença política
fundamental. Há um mundo de diferença entre ter ministros a negociar com
Christine Lagarde, Mario Draghi e Juncker ou ter os mesmos ministros a obedecer
a três burocratas com imenso poder, imensa arrogância, nenhuma legitimidade e
nenhuma flexibilidade. Para perceber como isto é diferente, basta ver as
diferenças entre o discurso dos dirigentes do FMI e a posição do funcionário do
FMI na troika durante o “programa” português. A Grécia conseguiu arredar a
troika do panorama e, também por isso, a vitória do Syriza é importante para a
Europa.
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