O bom aluno
ANTÓNIO GUERREIRO
27/02/2015 - PÚBLICO
Em 1992, numa
entrevista a um canal de televisão grego, o filósofo e psicanalista francês
Félix Guattari incitava os gregos a recusarem as regras que fazem da política
europeia um teatro de sombras semelhante ao que a lei edipiana faz na família:
“A Grécia é o mau aluno da Europa. É essa a sua qualidade. Felizmente que há
maus alunos, como a Grécia, que trazem a complexidade. Que trazem uma recusa de
uma certa normalização germano-francesa. Por isso, continuem a ser maus alunos
e continuaremos bons amigos.” Em Portugal, nessa altura, já estávamos a ser
ungidos pela metáfora do bom aluno e ainda hoje transportamos o brilho intenso
e o contentamento sem reserva que a metáfora irradia. O que é, neste caso, um
bom aluno? O bom aluno caracteriza-se por um determinado comportamento, por um
programa de acção, mas é também aquele que interiorizou convictamente uma
moral, ao ponto de política e moral serem para ele a mesma coisa. A dívida,
como sabemos muito bem, segrega uma moral própria. Um breve exercício
genealógico ajuda a perceber porquê. Actualmente, já não é preciso ter lido a
Genealogia da Moral, de Nietzsche, para saber que o conceito moral de culpa
remonta ao conceito material de dívida, que, por isso, se diz, em alemão,
exactamente com a mesma palavra — Schuld. A figura do “homem endividado”, que o
sociólogo italiano Maurizio Lazzarato definiu como o representante por
excelência da condição neoliberal, é afinal, a figura típica de uma economia da
salvação, como nos lembrou Walter Benjamin num célebre fragmento de 1921 sobre
O Capitalismo como Religião, onde define o capitalismo como uma religião sem dogma,
caracterizada pela celebração de um culto sem tréguas, para o qual não existem
dias feriados. “Este culto”, diz Benjamin, “é gerador de culpa” (ou de dívida,
já que a palavra verschuldendsignifica as duas coisas). E acrescenta: “O
capitalismo, com toda a probabilidade, é o primeiro caso de um culto que não
redime o pecado, mas gera culpa” (isto é, dívida). Uma culpa que não pode ser
expiada — e essa é a condição paradoxal da religião capitalista — mas tornada
universal. O bom aluno é aquele que interiorizou plenamente a moral da culpa e
sabe que deve comportar-se como um ser em débito. Haverá algum momento em que a
culpa vai ser expiada, isto é, em que o débito vai ser saldado? Evidentemente
que não. Por isso é que se criou a figura da “dívida eterna” ou infinita. Por
ela, o homem endividado interiorizou para sempre a dívida e é isso — e não que
a pague de uma vez por todas — que o credor lhe exige. Comentando Nietzsche,
escreveu Deleuze: “A dívida torna-se a relação de um devedor que nunca acabará
de pagar e de um credor que nunca acabará de esgotar os interesses da dívida.” O
infinito que o cristianismo introduziu na religião, reinventa-o o capitalismo
ao nível económico, num plano imanente. Para se tornar um bom aluno, como lhe é
exigido para continuar a dar-lhe crédito, a Grécia não precisa de pagar a sua
dívida — que é infinita e eterna. Tem é de dar como garantia do fictício e
sempre diferido reembolso um conjunto de virtudes sociais e políticas que são a
carne e o sangue da moralidade a que está obrigada. Tem de sujeitar-se
eternamente ao performativo da promessa. Não é que as promessas paguem dívidas,
mas são um reconhecimentos e uma ritualização da culpa. Em suma: é preciso que
o modo de existência da Grécia, o seu ethos, seja determinado pela culpa que
todos os bons alunos interiorizaram e que os faz arrastarem-se, de ombros
descaídos e olhar baixo, sempre que está por perto um supremo credor.
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