O fim das ilusões
TERESA DE SOUSA
28/02/2015 / PÚBLICO
1. O assassínio
de Boris Nemtsov em Moscovo, junto ao Kremlin, caiu como uma bomba nas capitais
europeias. Não faltaram adjectivos para o classificar. Não é caso inédito na
cena política russa. Mas acontece num contexto inédito das relações entre a
Europa e a Rússia.
Antes de Nemtsov,
um dos poucos opositores frontais de Putin, o método foi usado para calar de
vez outras vozes incómodas num estilo muito próprio do KGB durante a Guerra
Fria. Anna Politkovskaia, a jornalista que dedicou a sua vida a denunciar os
horrores das guerras na Tchetchénia, foi assassinada à porta de casa. Alexander
Litvinenko foi morto em Londres por envenenamento de plutónio, quando se
preparava para denunciar os assassinos da jornalista. Outros opositores viveram
anos na cadeia. Hoje, qualquer veleidade oposicionista é facilmente esmagada. As
televisões privadas foram sendo silenciadas. O clima de “ameaça externa” para
alimentar o nacionalismo dá ao Presidente russo margem de manobra para
silenciar quem for preciso.
3. Entretanto,
Putin começava a esclarecer ao que vinha. Em 2005 declarou que o fim da União
Soviética tinha sido a maior catástrofe do século XX. A estratégia da
“vizinhança próxima” para restabelecer a esfera de influência russa traduziu-se
numa série de conflitos muito incómodos para o Ocidente, mas que o Ocidente
ignorou. Em 2004, a
revolução laranja na Ucrânia ainda parecia ser a tendência dominante nessa
“vizinhança”. Só em 2008, Angela Merkel conseguiu convencer George W. Bush a
fazer um intervalo no alargamento da NATO, deixando de fora a Ucrânia e a
Geórgia. Para os europeus, falhada a comunidade de valores, ficavam apenas os
interesses, que cada país tratou à sua maneira. Mesmo quando, em 2006 e 2009, a Gazprom fechou a
torneira do gasoduto que abastecia muitos países europeus de leste através da
Ucrânia, o aviso não foi levado suficientemente a sério para obviar à
dependência energética da Rússia. Foi precisa a crise ucraniana para que a
Europa acordasse para uma realidade para a qual não estava preparada.
Do outro lado do
Atlântico as coisas não foram muito diferentes. Obama quis restabelecer uma boa
relação com Moscovo (o famoso reset), olhando para Putin como um parceiro na
resolução dos conflitos internacionais que tinha em mãos. Mas nunca viu a
Rússia (nem sequer agora) como um desafio fundamental ao poder americano no
mundo. Se prestarmos atenção às suas declarações desde que começou a crise, a
Rússia é sempre tratada como uma potência regional e decadente. O que é
verdade, mas não deixa de colocar um tremendo desafio à Aliança e à União
Europeia, que Washington não pode ignorar.
4. Hoje sabemos
onde estamos. Angela Merkel percebeu depressa que Putin desafiava directamente
a ordem europeia do pós-guerra e que não havia diálogo possível com ele. Com
Obama, tem conseguido liderar a resposta ocidental, evitando as divisões
europeias e transatlânticas, com as quais o líder russo contava. Enfrenta
alguma hostilidade interna, onde uma maioria de alemães não quer sequer ouvir
falar de um conflito com a Rússia. Gerhard Schroeder lançou um abaixo-assinado
apelando a uma nova política para o vizinho de Leste e insistindo na
“legitimidade” das preocupações russas com a sua segurança. Putin encontrou
alguns novos amigos nos países mais improváveis. Na Hungria ou em Chipre (mesmo
que nenhum deles tenha tido a coragem de votar contra as sanções) mas também na
Grécia ou na Áustria (ainda a viver o complexo de neutralidade imposto pela
Guerra Fria). O Presidente russo tem também feito amigos entre os movimentos
extremistas e nacionalistas que emergem na Europa, de Marine Le Pen ao Syriza,
passando pelo UKIP ou os nacionalistas austríacos.
A novidade é que
a Alemanha, incluindo o SPD, tradicionalmente mais amigo de Moscovo, percebeu
que o mundo não se reduzia à geoeconomia. A chanceler não tem grandes ilusões e
sabe que o braço-de-ferro vai ser prolongado. A NATO vê-se confrontada com uma
ameaça à segurança dos seus membros para a qual não estava preparada. Está a deslocar
forças para os países mais vulneráveis, em primeiro lugar os Bálticos, e mantém
o controlo do espaço aéreo aliado. Tem de voltar a funcionar como uma força
dissuasora suficientemente credível. Mas também deixou claro que a sua
responsabilidade se limita à segurança dos países aliados, deixando de fora a
Ucrânia. Os aliados europeus sabem que a ameaça russa não vai desaparecer no
futuro próximo. A Europa vai ter de apoiar com muito mais meios a estabilização
da economia e da democracia de Kiev, de forma a criar uma verdadeira barreira
contra qualquer outro destino que não o europeu. Uma democracia a funcionar bem
é tudo aquilo que Putin não quer na sua zona de influência. Escreve Josef
Janning do ECFR que “teme o soft power europeu na medida em que é uma força à
qual não tem como responder”.
5. Esta Rússia
antiocidental e nacionalista levou também a algumas mudanças significativas na
geopolítica europeia. A imprensa britânica acusa David Cameron de ter posto em
causa o papel do Reino Unido na Europa e no mundo e o seu estatuto de parceiro
confiável dos Estados Unidos. Quem lidera a crise ucraniana? Angela Merkel com
François Hollande. Quem é o interlocutor privilegiado de Obama? Angela Merkel.
É este o preço que Cameron vai ter de pagar com a sua obsessão antieuropeia.
A tragédia do voo
MH17 das linhas aéreas da Malásia com 200 holandeses a bordo, foi o sobressalto
que fez endurecer a Europa. O assassínio de Nemstov pode ter um efeito
semelhante. Seja como for, esta é a nova realidade em que os europeus se têm de
habituar a viver, num mundo onde dominam cada vez mais as “políticas de
potência” das quais a Europa se desabituou graças à garantia americana da sua
segurança.
Gideon Rachman, o
colunista do Financial Times, escreveu recentemente um texto com um título
apelativo: “Os corações e as mentes dos russos e os frigoríficos”. A sua ideia
é simples. Os russos que ainda se lembram da Grande Guerra Patriótica sabem o
que é ter apenas batatas para matar a fome. Os mais jovens, que não conhecem
outra realidade senão a actual, só vêem os frigoríficos vazios. É uma esperança? Talvez.
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