Bastaram três semanas
TERESA DE SOUSA
22/02/2015 - PÚBLICO
Se as coisas correrem bem nas próximas semanas, a vitória do Syriza pode
ainda ter alguma utilidade para a Europa.
1. Devo confessar
que não tenho a mínima simpatia pelo Syriza. Não acredito que a sua conversão à
Europa seja mais do que uma necessidade eleitoral.
Há menos de um
ano era contra a União Europeia, contra o euro, contra a NATO e contra o
capitalismo. Para nossa tranquilidade é bom evitar a leitura de alguns
discursos recentes de Alexis Tsipras ou do seu mediático ministro das Finanças.
Hoje, não põem em causa nem a União nem o euro (descobriram que mais de 70 por
cento dos gregos quer manter-se na moeda única, mesmo que com um preço menor a
pagar). Souberam interpretar o desespero dos gregos e o rol infindo de razões
para votarem num partido novo, que prometia bater o pé a Bruxelas e impor o fim
da troika e da austeridade. Tiraram partido de um sistema partidário corrupto e
clientelar completamente desacreditado. Não foram, naturalmente, os radicais de
esquerda que lhe deram os votos. Foi uma vasta camada de gente sem grandes
ilusões que apenas sabia que mais do mesmo já não era suportável. Tsipras
conduziu a campanha assente numa única ideia: rasgar os programas de
ajustamento impostos pela Europa e pôr definitivamente a troika fora do país. Chegou
ao poder em Atenas convencido de que conquistaria facilmente o apoio de outros
governos europeus, também eles fartos da receita austeritária de Berlim. Tinha
sido recebido com simpatia em Paris e em Roma. Via a Grécia como a intérprete
da revolta dos europeus.
O primeiro sinal
de anormalidade aconteceu logo depois da vitória, com a negociação relâmpago de
uma coligação com o partido nacionalista “Gregos Independentes” (as mentes mais
ingénuas achavam que Tsipras iria entender-se com um partido civilizado e
europeu, o River), cuja proximidade política só pode ser encontrada numa visão
soberanista (para dizer o mínimo) e pouco amiga da Europa. Esta mistura entre
populismo de esquerda e nacionalismo de direita é nova e é perigosa. Marine Le
Pen foi uma das primeiras a felicitar o Syriza e o embaixador da Rússia foi o
primeiro a ser recebido pelo novo primeiro-ministro.
2. O primeiro
erro do Syriza, que acabou por conduzi-lo direitinho ao acordo político de
sexta-feira passada (em que Atenas cedeu em quase tudo) foi uma avaliação
errada do equilíbrio de forças europeu. Tsipras acreditou que iria encontrar um
clima suficientemente aberto às suas reivindicações. Descobriu rapidamente que
as pancadinhas nas costas que recebeu em Roma ou em Paris não significavam
qualquer apoio político ao seu programa. Com Hollande ou sem Hollande, a França
guia a sua política europeia pela necessidade de manter uma parceria com
Berlim, iludindo a sua própria fraqueza. Hollande não quer desperdiçar a nova e
bela amizade que estabeleceu com a chanceler, graças à Ucrânia e ao terrorismo.
Roma joga noutro tabuleiro e Renzi é tudo menos um radical. A oposição de
Madrid e Lisboa a qualquer facilitação da vida dos gregos ia ser feroz porque
nenhum dos Governos pode aceitar que o crime por vezes compensa. Para os
alemães (que Varoufakis acreditou ingenuamente que poderia vergar), a saída da
Grécia do euro deixou de ser uma questão tabu. A arrogância de Wolfgang
Schäuble, absolutamente desnecessária, só é desculpável pela estranha
insistência com que o jornal do Syriza continua a publicar caricaturas suas
envergando a farda do exército nazi.
Numa palavra, o
novíssimo governo de Atenas deixou-se isolar em meia dúzia de dias. Ainda
recalcitrou. Ainda ameaçou com a China e a Rússia. Acabou por optar por um
comportamento muito mais razoável que lhe garante o apoio financeiro da Europa
(o que falta ainda receber do segundo resgate) e lhe dá margem de manobra para
levar a Bruxelas o seu próprio programa de reformas, já na próxima
segunda-feira. Ganhou a semântica (a palavra troika foi substituída pelas
“instituições”). Em contrapartida, aceitou que as dívidas são para pagar, que o
seu novo programa será negociado com Bruxelas, que as medidas de socorro social
serão neutras financeiramente e que, embora de forma flexível, as metas são
para cumprir. Na verdade, não tinha outro remédio. Não consegue financiar-se
nos mercados. Sem o apoio do BCE ao seu sistema bancário e o dinheiro europeu
para as despesas do Estado, o caminho para o default seria inevitável. Imagina-se
a corrida aos depósitos na próxima segunda-feira se não tivesse havido acordo.
3. Se as coisas
correrem bem nas próximas semanas, a vitória do Syriza pode ainda ter alguma
utilidade para a Europa. Em primeiro lugar, lembrando que as democracias
existem e têm de ser levadas em conta nas decisões europeias. Hoje, mesmo que
tarde, há um reconhecimento público dos erros cometidos pelas instituições
europeias e pelo FMI nos programas de resgate, com resultados que ficaram muito
longe do previsto. Não é só a Grécia que tem uma dívida descomunal. Portugal
também e ainda não começou a descer.
De algum modo, o
desabafo de Jean-Claude Juncker sobre a forma humilhante com que foram tratados
os gregos ou os portugueses representa esta mudança. O problema maior é que o
seu desabafo também resulta do facto de, mais uma vez, a Comissão ter sido marginalizada
pelo Eurogrupo. Convém recordar que, na segunda-feira, dia 16, a Comissão tinha um plano
para pôr em cima da mesa do Eurogrupo que acreditava ser a saída possível. Esse
plano desapareceu, deixando todo o espaço ao presidente do Eurogrupo e ao
ministro das Finanças de Berlim para conduzirem as negociações. No caso, para
acabar com elas.
4.E isso traz-nos
directamente a Portugal é ao impacte político da crise grega. Por mais que
digam que não, os dois governos de Espanha e de Portugal seriam os mais
“prejudicados” (eleitoralmente falando, claro) com um acordo que concedesse a
menor das facilidades a Atenas. Em Madrid o problema chama-se Podemos. Em
Lisboa, porque põe em causa a estratégia do aluno diligente, que tinha engolido
o cálice até ao fim, para ver o prémio ser dado a outro. A questão da dignidade
é a mais dura de engolir e o governo sabe disso. Paulo Portas ainda pode fazer
o seu número do protectorado. Pedro Passos Coelho veio agora dizer que também
ele enfrentou a troika (só que no segredo dos gabinetes), acrescentando que nem
o FMI nem o BCE deviam integrar a aplicação dos programas. É verdade que
Portugal é muito diferente da Grécia. Para bastante melhor. Mas, tal como na
Grécia, a dívida portuguesa continua a subir, o crescimento é ténue, o
desemprego é alto. E quanto a humilhações, são tantas que a escolha se torna
difícil. Quem não se lembra de um senhor do FMI que nos veio dizer que, afinal,
se tinham enganado na avaliação do impacte das medidas de ajustamento sobre o
emprego, como se fosse um erro sem importância nenhuma. Ontem, Rui Machete
resolveu falar em “reparações” que nos são devidas. Não disse reparações de
guerra, como os gregos, porque não fomos ocupados pelo exército nazi.
E isso leva-nos à
última questão que os acontecimentos na Grécia colocam. Não é de agora, nasceu
com a queda do Muro e a globalização. Mas hoje é muito mais evidente, quando
nos confrontamos com os resultados desta crise tremenda que se abateu sobre a
Europa. Os Syrizas existem porque a social-democracia ainda não conseguiu
encontrar uma agenda que faça sentido num tempo em que deixou de poder recorrer
aos impostos para garantir uma redistribuição da riqueza mais equitativa e em
que a competitividade da economia mundial é muito maior, esmagando os
rendimentos da classe média. Mas isso são outros contos
a que voltarei.
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