Grécia: a revolta democrática
europeia
ÁLVARO
VASCONCELOS 23/02/2015 - PÚBLICO
A ameaça que paira sobre a Europa
não é o Syriza, partido que se enquadra bem no consenso democrático europeu,
mas sim o populismo identitário e xenófobo.
A revolta
democrática grega pode ser o sobressalto cidadão de que a Europa tanto precisa;
mas também pode ser uma etapa de um processo mais amplo, que pode levar não ao
fim do euro, mas, muito mais grave, à fragmentação europeia. Se tivéssemos
dúvidas de que a desintegração é hoje uma tendência global, bastava olhar para
a vizinhança leste e sul da União.
O Eurogrupo adiou
a decisão sobre as propostas da Grécia, mas, como se viu, será impossível que a
Grécia, sozinha, consiga travar o desastre europeu. Em vez do apoio dos que
mais têm a ganhar com as suas propostas, congregou a oposição de Portugal e da
Espanha e a tibieza da França.
A lamentável
declaração do ministro das Finanças alemão, de que o Syriza “vai ter muita
dificuldade em explicar aos seus eleitores o acordo", é uma provocação
incompatível com qualquer negociação séria. Melhor fariam os dirigentes
europeus se aproveitassem este “adiamento” para reflectirem.
Devem, antes de
tudo, reflectir porque têm medo dos cidadãos e do seu voto. Foi esse medo que
levou Merkel e Sarkozy, em 2011,
a ameaçarem a Grécia de saída do euro se Georges
Papandreou levasse avante um referendo sobre a política de austeridade, como
foi esse medo que os levou a impor uma solução tecnocrática (Mario Monti)
depois da queda de Berlusconi.
A ameaça que
paira sobre a Europa não é o Syriza, partido que se enquadra bem no consenso
democrático europeu, mas sim o populismo identitário, xenófobo, que cresce e
espreita o fracasso das propostas de mudança de política, subscritas por
muitos, e não só na esquerda. Veja-se, em Portugal, a proposta de
reestruturação da dívida, assinada, entre outros, por João Cravinho, Manuela
Ferreira Leite, Miguel Anacoreta Correia ou Luís Braga da Cruz.
O que os gregos
exprimem hoje é a opinião maioritária dos europeus — se a UE tivesse mecanismos
democráticos para reflectir a opinião da maioria, imporia outra política. Este
é o verdadeiro problema europeu — o défice democrático da União.
Mesmo assim, até
à imposição de medidas de austeridade, foi possível, sem sobressaltos trágicos,
avançar na integração europeia sem resolver a sua questão democrática. Hoje, já
não parece possível. Os cidadãos apropriaram-se das questões europeias e já não
aceitam passivamente as decisões tomadas em seu nome.
Guilherme
d’Oliveira Martins tem afirmado que a construção europeia assenta numa dupla
legitimidade, dos cidadãos e dos Estados. Esta assenta nos princípios da
igualdade e da soberania partilhada, e foi enfraquecida pela forma como foram
tratados os países da Europa do Sul, nomeadamente a Grécia e Portugal,
colocados sob a tutela da troika.
É a defesa do
princípio da igualdade que leva Jean-Claude Juncker a afirmar que Portugal e a
Grécia foram humilhados e, agora que preside à Comissão, a opor-se aos que,
como Schäuble, defendem desde os anos 1990 um núcleo duro europeu, sem
Portugal, a Espanha e a Grécia.
As vanguardas
iluminadas dominaram o século XX — independentemente da vontade dos cidadãos
“alienados”, iriam construir um mundo melhor, já não acreditavam na utopia
celestial, o século das luzes tinha passado por aqui, era na terra que a utopia
seria construída.
A Europa é uma
dessas utopias (outras houve), iluminada pelo belo sonho kantiano de paz
perpétua, de solidariedade entre os Estados, concretizado nas terras que tinham
sentido o horror do nacionalismo extremo. O apoio que o nazismo e o fascismo
encontraram, em alguns países, criou a desconfiança no voto popular. A rejeição
pelo Parlamento francês, em 1954, do projecto de União Política Europeia ainda
aumentou mais a desconfiança na democracia no seio dos altos funcionários
europeístas.
Da política e do
jogo democrático passou-se para a construção pelo mercado, que, por saltos de
integração, nos levaria aos Estado Unidos da Europa. As décadas de crescimento
europeu, impulsionado pelo Plano Marshall, primeiro, e depois pelas políticas
europeias de estímulo económico, facilitaram o sucesso do vanguardismo
comunitário, agora posto em causa pelo fim dos anos de prosperidade e pelo
fracasso da resposta à crise financeira.
Haverá
alternativa à desintegração? Para alguns, o caminho é o salto na integração
financeira, mas traria um consequente agravamento do défice democrático. Outros
pensam que será o salto federal, um novo tratado que desse verdadeiro poder ao
Parlamento Europeu, dissolvesse o Conselho e criasse um Senado representativo
dos Estados — cenário desejável, mas nada provável.
Eu ficaria feliz,
por enquanto, com algo mais modesto: sobreviver, tudo fazer para preservar a
Comunidade Europeia (designação que prefiro à de União). Ouvir os que dizem que
a política de austeridade não resolve os problemas económicos e financeiros da
Europa, discutir à escala da União essa alternativa.
É preciso agora
reabrir o debate sobre o futuro da Europa, sem tabus, nem mesmo o dos critérios
do euro. As eleições em vários países da União, e sobretudo na Espanha, podem
facilitar esse debate.
Os dirigentes
europeus fogem ao debate das reformas desde o fracasso do Tratado
Constitucional, mas os cidadãos contestam claramente essa fuga e é fundamental
ter noçãode que é melhor que a União
seja, embora imperfeita, o resultado da vontade da maioria dos europeus do que
ser coisa nenhuma, desintegrada pelos egoísmos dos seu dirigentes e os
nacionalismos identitários que a corroem.
A revolta
democrática que começou na Grécia ainda é a melhor esperança para o futuro dos
europeus e da sua União.
Investigador
convidado, Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo
Sem comentários:
Enviar um comentário