O MP actua de acordo com a lei.
Não há timings políticos
Joana Marques Vidal revela nesta
entrevista a razão pela qual não foi aberto processo-crime contra Mário Soares
por causa das suas declarações em defesa de José Sócrates e alerta para o grave
risco de prescrições devido à falta de funcionários
Há problemas graves e sem
funcionários não vamos conseguir responder às nossas responsabilidades
Mariana Oliveira
e Marina Pimentel / 25 fev 2015 / PÚBLICO
Na primeira entrevista que a procuradora-geral
da República dá após a detenção do exprimeiro ministro José Sócrates, Joana
Marques Vidal fala do que está a ser feito para combater a corrupção, admite
falta de meios e funcionários e relativiza as violações do segredo de Justiça. O
ex-primeiro ministro José Sócrates veio da prisão para ser ouvido no âmbito de
processos sobre violações do segredo de Justiça do caso Marquês. O combate às
violações do segredo, que ocorrem de forma sistemática, era uma prioridade do
seu mandato. Isto não indigna quem guarda ‘os guardas do segredo’? Claro que
indigna. O Ministério Público e a Procuradora-geral em concreto têm procurado
reagir a essa violação, instaurando os respectivos processos. E, em termos
internos, apelando para que não se verifique essa violação. Preocupa-nos as
violações que têm ocorrido neste caso, mas também todas as que têm ocorrido em
outros processos igualmente importantes. Espero chegar ao final do mandato mais
contente do que estou agora.
Que
procedimentos? Não têm sido visíveis.
Se havia
magistrados do MP que, por um motivo ou outro, pudessem ter alguns contactos
mais próximos e alguns deslizes que iriam provocar uma violação do segredo de
Justiça, considero que ao nível do MP isso está muito limitado para não dizer
que não existe. As violações vêm de vários intervenientes. E para evitar que
elas ocorram é necessário o envolvimento e o compromisso do Ministério Público,
mas também de outros intervenientes, como os órgãos de polícia criminal, os
funcionários e inclusive os advogados. Quando diz que as violações provêm de
várias partes está a admitir que também vêm do MP? Seria um atrevimento da
minha parte garantir que não há nenhuma fuga da parte do MP. Mas posso garantir
que, actualmente, a existir, elas são muito mais limitadas. Está em estudo um
conjunto de procedimentos de boas práticas, que vêm na sequência de uma
auditoria realizada. Neste sentido foi constituído, mas ainda não começou a
trabalhar, um grupo de trabalho com a Polícia Judiciária para tentarmos acertar
algumas boas práticas e alguns procedimentos tendo em vista evitar a violação
do segredo como limitar o número de intervenientes no processo, sinalizar o
percurso dos documentos, por exemplo. Mas há outros, como a marcação das
páginas... Como foi feito no processo Face Oculta. Quando é que podemos temos
resultados destes inquéritos? Não sei. Será na altura própria. Neste e noutros
casos. Mas este é um caso diferente até pelas consequências políticas que pode
ter. Para o MP, as consequências políticas não são tidas em atenção, é tida em
atenção a repercussão pública. Mas volto a dizer que este caso é tão importante
como outros que temos em investigação. Falou na auditoria ao segredo de
justiça. No documento eram feitas várias sugestões de alterações legislativas. Mas
demarcou-se delas. Acha necessário mudar a lei para conseguir mais eficácia na
investigação? A violação do segredo de justiça é um crime importante, mas não é
um dos mais importantes. Nem sequer é o mais frequente. Praticase em 1% dos
processos em que foi declarado o segredo e o segredo foi declarado em 0,5% de
todos os processos existentes em Portugal. Estamos a falar de um problema
reduzido. Se a comunidade, que tem reflexos nos deputados da Assembleia da
República e no Governo, considerar que este crime é tão importante que deve
puni-lo de forma mais pesada, isso permitirá a utilização de outros meios de
prova. A Bastonária da Ordem dos Advogados já acusou neste estúdio preto no
branco o Ministério Público de ser responsável pela violação do segredo de
Justiça. A bastonária com certeza que irá colaborar activamente num inquérito
que foi instaurado na sequência das suas declarações. Espero que ela venha
dizer quem violou o segredo de justiça. Já agora, são os inquéritos por
violação do segredo relacionados com o caso Marquês? Há dois inquéritos que
incorporam várias outras participações. Eram três e passaram a dois. Não
significa que haja apenas duas violações. A violação do segredo pode prejudicar
a investigação, mas também pode ter consequências políticas. Vamos ter eleições
legislativas este ano. Em que medida é que o Ministério Público tem em conta as
repercussões políticas deste caso? O MP actua de acordo com a lei. Não há
timings políticos. Os inquéritos são instaurados, são investigados, seguem a
sua tramitação normal. E quando é necessário haver buscas ou prisões
efectuam-se. Não podemos estar reféns do que são os prazos políticos ou os
tempos políticos. A própria lei prevê que há processos com repercussão
mediática e isso poderá influenciar somente alguma forma de comunicação
daqueles processos. Mas não poderá influenciar a tramitação normal do processo.
Se a acusação
cair em cima das legislativas, paciência?
Este como outros.
Muito se tem dito sobre a qualidade da prova que terá o Ministério Público no
caso Sócrates. As defesas têm falado em ilegalidades várias. Põe as mãos no
fogo pela forma como este processo está a ser conduzido? O processo está a ser
conduzido de acordo com as regras do Direito Penal e do Direito Processual
Penal. Todas as questões de ilegalidade, irregularidade, prova suficiente de
elementos probatórios são analisadas no âmbito do processo. Há possibilidade de
recursos e há recursos que estão em apreciação por tribunais superiores. Com
certeza que está a acompanhar este caso. Com o conhecimento que tem pode dar a
garantia aos cidadãos que se sente tranquila com o que está a ser feito? Os
inquéritos-crime têm uma tramitação que está prevista no código processo penal.
A hierarquia intervém nas condições previstas. É evidente que a hierarquia, a
procuradora-geral, os procuradores-gerais distritais, os directores de
departamento fazem o acompanhamento dos processos em geral, sobre a forma como
estão a decorrer. É evidente que há reuniões e não têm nada de fora do
habitual. Declarações como a do antigo Presidente da República Mário Soares,
que chegou a dizer num artigo ao juiz de instrução que se cuide, podem ser
entendidas como formas de pressão, desabafos ou são crime? A liberdade de
expressão é um direito que eu muito preservo. Quando se considera que há um crime,
se for público, instaura-se o respectivo procedimento criminal.
E neste caso? Não
foi instaurado porque se considerou que estávamos perante uma manifestação de
opinião mais viva, mais impressiva. Pode-se concordar ou não, mas considerouse
não existirem contornos de ilícito criminal. Está escrito. Há um despacho
juridicamente fundamentado. Nos últimos anos, o combate ao crime
económico-financeiro tem tido resultados como nunca tínhamos visto antes. Caso
Face Oculta/Vistos Gold/Caso Marquês. O que mudou? Não mudou nada
repetidamente. As circunstâncias foram-se alterando ao longo dos tempos. Hoje o
MP e também os órgãos de polícia criminal têm muito mais conhecimento e
experiência neste tipo de criminalidade. Foi havendo formação, mais
especialização. A cooperação judiciária internacional melhorou muito. Melhoraram
também alguns meios, mas ainda não os suficientes. Na investigação da
criminalidade mais complexa, da competência do DCIAPDepartamento Central de
Investigação e Acção Penal, existe neste momento uma outra direcção. Houve um
levantamento daquilo que estava menos bem. Houve uma reorganização. Também uma
aposta na especialização dos magistrados. Não são só os magistrados do DCIAP
que trabalham melhor. Temos ao nível do país e ao nível dos DIAP-Departamentos
de Investigação e Acção Penal distritais uma melhor capacidade de investigação.
O MP está a fazer o seu caminho mas precisa de se articular melhor. A enviada
da ONU a Portugal disse que a Justiça não pode estar de joelhos e de
chapeuzinho na mão à espera de recursos administrativos e financeiros. É assim
que se sente perante o Governo, de mão estendida? Não diria isso. Foi uma
expressão da relatora. Mas chamou a atenção para a necessidade de termos uma
maior autonomia financeira na administração dos dinheiros públicos atribuídos,
neste caso, ao Ministério Público, a nível dos orçamentos da ProcuradoriaGeral
da República e de outros serviços do MP. Temos problemas de funcionários muito
graves. Faltam 563 funcionários nos serviços do MP, temos falta de magistrados
e neste momento não temos perspectiva para a existência de um curso para a
formação de magistrados, que era importante, e devia iniciar este ano. Podíamos
e devíamos melhorar os meios informáticos, programas relacionados com
tratamento da informação e que fazem as transcrições imediatas das gravações
poupariam trabalho e melhorariam a nossa capacidade de fazer investigação
criminal. Há perícias que demoram dois, três, quatro anos a iniciar. Isso são
as perícias informáticas. Mas a área económico-financeiras exige técnicos cujo
pagamento não se compadece com a lógica das tabelas de preços do Ministério da
Justiça. Aí precisaríamos de mais meios. Abalar interesses instalados tem
resultado em pressões? Todos os magistrados têm uma formação aprofundada no
sentido de serem rigorosos e corajosos e aterem-se aos trâmites da lei na
investigação criminal. Os portugueses têm a percepção que a corrupção é um
fenómeno generalizado que mina toda a sociedade.
Ao fim de dois anos e meios de mandato como
PGR qual a conclusão que tira sobre o estado do regime? Só tenho que tirar
conclusões e fazer análises que permitam lutar melhor contra os fenómenos que
são da minha responsabilidade. Há uma rede que utiliza o aparelho de Estado e
da Administração pública para concretizar actos ilícitos, muitos na área da
corrupção. O MP, mais concretamente Portugal, nos diversos relatórios
internacionais tem sido apontado estando em falta quanto à não definição de uma
estratégia nacional de luta contra a corrupção. O MP, no que diz respeito à sua
parte, está a fazêlo. Há um grupo de trabalho que está a ser coordenado pelo
director do DCIAP em cooperação com todos os DIAP, designadamente os
distritais, que vai ter resultados não só na área da prevenção, mas também na
área da formação e numa melhor organização. Nos últimos dias várias entidades
alertaram para a ruptura iminente do sistema de justiça, devido à falta de
funcionários. Que consequências tem essa falta? Atrasa o tempo de duração média
dos inquéritos, mas também todos os outros processos nos tribunais da família. Há
acusações com meses à espera de serem notificadas às partes. A possibilidade de
haver prescrições pode aumentar. Temse lutado contra as prescrições e não tem
havido. Mas há esse risco. Há problemas graves e sem funcionários não vamos
conseguir responder às nossas responsabilidades. Uma pergunta que muita gente
faz, até por comparação com o Processo Marquês. No caso BES por que ninguém foi
preso? As prisões preventivas obedecem a regras muitos restritas. Com certeza
que os titulares consideraram que não era de aplicar essa medida de coacção. O
caso BES é extraordinariamente complexo. Vai exigir do Ministério Público o
recurso a conhecimentos que só podem ser potenciados desde que haja uma óptima
articulação na cooperação internacional e entre os órgãos de polícia criminal,
os reguladores e os peritos, para ter resultados. Temos falado em casos de
sucesso, mas há outros que correram mal como o dos submarinos.
Oito anos de investigação, três equipas de
magistrados a dirigi-lo e um arquivamento que assume que ficam muitas dúvidas
por esclarecer. Que imagem dá isto da Justiça?
O caso dos submarinos é daqueles que dará uma
imagem não muito simpática do Ministério Público, mas também órgãos de polícia
criminal, peritos e outros órgãos. É um caso que devemos analisar com calma.
Ver onde houve passos menos correctos e tornarse um case study que nos permita
melhorar a nossa capacidade de investigação criminal. Aí o MP terá que
reconhecer que podia ter tido um desempenho mais adequado. Passaram quase seis
meses desde o arranque da nova organização dos tribunais. Que balanço faz da
reforma? Em números é muito cedo. Aquilo que é uma gestão comum pode potenciar
uma melhor resolução dos problemas. Foi prejudicada pelo problema do Citius. O
Citius está a funcionar mas ainda é necessário um apoio informático localmente
muito activo para poder ultrapassar pequenas perturbações locais, por exemplo
no acesso a processos antigos. Próxima entrevista a 25
de Março
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