terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Joana Marques Vidal : O MP actua de acordo com a lei. Não há timings políticos


O MP actua de acordo com a lei. Não há timings políticos

Joana Marques Vidal revela nesta entrevista a razão pela qual não foi aberto processo-crime contra Mário Soares por causa das suas declarações em defesa de José Sócrates e alerta para o grave risco de prescrições devido à falta de funcionários

Há problemas graves e sem funcionários não vamos conseguir responder às nossas responsabilidades

Mariana Oliveira e Marina Pimentel / 25 fev 2015 / PÚBLICO

 Na primeira entrevista que a procuradora-geral da República dá após a detenção do exprimeiro ministro José Sócrates, Joana Marques Vidal fala do que está a ser feito para combater a corrupção, admite falta de meios e funcionários e relativiza as violações do segredo de Justiça. O ex-primeiro ministro José Sócrates veio da prisão para ser ouvido no âmbito de processos sobre violações do segredo de Justiça do caso Marquês. O combate às violações do segredo, que ocorrem de forma sistemática, era uma prioridade do seu mandato. Isto não indigna quem guarda ‘os guardas do segredo’? Claro que indigna. O Ministério Público e a Procuradora-geral em concreto têm procurado reagir a essa violação, instaurando os respectivos processos. E, em termos internos, apelando para que não se verifique essa violação. Preocupa-nos as violações que têm ocorrido neste caso, mas também todas as que têm ocorrido em outros processos igualmente importantes. Espero chegar ao final do mandato mais contente do que estou agora.

Que procedimentos? Não têm sido visíveis.
Se havia magistrados do MP que, por um motivo ou outro, pudessem ter alguns contactos mais próximos e alguns deslizes que iriam provocar uma violação do segredo de Justiça, considero que ao nível do MP isso está muito limitado para não dizer que não existe. As violações vêm de vários intervenientes. E para evitar que elas ocorram é necessário o envolvimento e o compromisso do Ministério Público, mas também de outros intervenientes, como os órgãos de polícia criminal, os funcionários e inclusive os advogados. Quando diz que as violações provêm de várias partes está a admitir que também vêm do MP? Seria um atrevimento da minha parte garantir que não há nenhuma fuga da parte do MP. Mas posso garantir que, actualmente, a existir, elas são muito mais limitadas. Está em estudo um conjunto de procedimentos de boas práticas, que vêm na sequência de uma auditoria realizada. Neste sentido foi constituído, mas ainda não começou a trabalhar, um grupo de trabalho com a Polícia Judiciária para tentarmos acertar algumas boas práticas e alguns procedimentos tendo em vista evitar a violação do segredo como limitar o número de intervenientes no processo, sinalizar o percurso dos documentos, por exemplo. Mas há outros, como a marcação das páginas... Como foi feito no processo Face Oculta. Quando é que podemos temos resultados destes inquéritos? Não sei. Será na altura própria. Neste e noutros casos. Mas este é um caso diferente até pelas consequências políticas que pode ter. Para o MP, as consequências políticas não são tidas em atenção, é tida em atenção a repercussão pública. Mas volto a dizer que este caso é tão importante como outros que temos em investigação. Falou na auditoria ao segredo de justiça. No documento eram feitas várias sugestões de alterações legislativas. Mas demarcou-se delas. Acha necessário mudar a lei para conseguir mais eficácia na investigação? A violação do segredo de justiça é um crime importante, mas não é um dos mais importantes. Nem sequer é o mais frequente. Praticase em 1% dos processos em que foi declarado o segredo e o segredo foi declarado em 0,5% de todos os processos existentes em Portugal. Estamos a falar de um problema reduzido. Se a comunidade, que tem reflexos nos deputados da Assembleia da República e no Governo, considerar que este crime é tão importante que deve puni-lo de forma mais pesada, isso permitirá a utilização de outros meios de prova. A Bastonária da Ordem dos Advogados já acusou neste estúdio preto no branco o Ministério Público de ser responsável pela violação do segredo de Justiça. A bastonária com certeza que irá colaborar activamente num inquérito que foi instaurado na sequência das suas declarações. Espero que ela venha dizer quem violou o segredo de justiça. Já agora, são os inquéritos por violação do segredo relacionados com o caso Marquês? Há dois inquéritos que incorporam várias outras participações. Eram três e passaram a dois. Não significa que haja apenas duas violações. A violação do segredo pode prejudicar a investigação, mas também pode ter consequências políticas. Vamos ter eleições legislativas este ano. Em que medida é que o Ministério Público tem em conta as repercussões políticas deste caso? O MP actua de acordo com a lei. Não há timings políticos. Os inquéritos são instaurados, são investigados, seguem a sua tramitação normal. E quando é necessário haver buscas ou prisões efectuam-se. Não podemos estar reféns do que são os prazos políticos ou os tempos políticos. A própria lei prevê que há processos com repercussão mediática e isso poderá influenciar somente alguma forma de comunicação daqueles processos. Mas não poderá influenciar a tramitação normal do processo.

Se a acusação cair em cima das legislativas, paciência?
Este como outros. Muito se tem dito sobre a qualidade da prova que terá o Ministério Público no caso Sócrates. As defesas têm falado em ilegalidades várias. Põe as mãos no fogo pela forma como este processo está a ser conduzido? O processo está a ser conduzido de acordo com as regras do Direito Penal e do Direito Processual Penal. Todas as questões de ilegalidade, irregularidade, prova suficiente de elementos probatórios são analisadas no âmbito do processo. Há possibilidade de recursos e há recursos que estão em apreciação por tribunais superiores. Com certeza que está a acompanhar este caso. Com o conhecimento que tem pode dar a garantia aos cidadãos que se sente tranquila com o que está a ser feito? Os inquéritos-crime têm uma tramitação que está prevista no código processo penal. A hierarquia intervém nas condições previstas. É evidente que a hierarquia, a procuradora-geral, os procuradores-gerais distritais, os directores de departamento fazem o acompanhamento dos processos em geral, sobre a forma como estão a decorrer. É evidente que há reuniões e não têm nada de fora do habitual. Declarações como a do antigo Presidente da República Mário Soares, que chegou a dizer num artigo ao juiz de instrução que se cuide, podem ser entendidas como formas de pressão, desabafos ou são crime? A liberdade de expressão é um direito que eu muito preservo. Quando se considera que há um crime, se for público, instaura-se o respectivo procedimento criminal.

E neste caso? Não foi instaurado porque se considerou que estávamos perante uma manifestação de opinião mais viva, mais impressiva. Pode-se concordar ou não, mas considerouse não existirem contornos de ilícito criminal. Está escrito. Há um despacho juridicamente fundamentado. Nos últimos anos, o combate ao crime económico-financeiro tem tido resultados como nunca tínhamos visto antes. Caso Face Oculta/Vistos Gold/Caso Marquês. O que mudou? Não mudou nada repetidamente. As circunstâncias foram-se alterando ao longo dos tempos. Hoje o MP e também os órgãos de polícia criminal têm muito mais conhecimento e experiência neste tipo de criminalidade. Foi havendo formação, mais especialização. A cooperação judiciária internacional melhorou muito. Melhoraram também alguns meios, mas ainda não os suficientes. Na investigação da criminalidade mais complexa, da competência do DCIAPDepartamento Central de Investigação e Acção Penal, existe neste momento uma outra direcção. Houve um levantamento daquilo que estava menos bem. Houve uma reorganização. Também uma aposta na especialização dos magistrados. Não são só os magistrados do DCIAP que trabalham melhor. Temos ao nível do país e ao nível dos DIAP-Departamentos de Investigação e Acção Penal distritais uma melhor capacidade de investigação. O MP está a fazer o seu caminho mas precisa de se articular melhor. A enviada da ONU a Portugal disse que a Justiça não pode estar de joelhos e de chapeuzinho na mão à espera de recursos administrativos e financeiros. É assim que se sente perante o Governo, de mão estendida? Não diria isso. Foi uma expressão da relatora. Mas chamou a atenção para a necessidade de termos uma maior autonomia financeira na administração dos dinheiros públicos atribuídos, neste caso, ao Ministério Público, a nível dos orçamentos da ProcuradoriaGeral da República e de outros serviços do MP. Temos problemas de funcionários muito graves. Faltam 563 funcionários nos serviços do MP, temos falta de magistrados e neste momento não temos perspectiva para a existência de um curso para a formação de magistrados, que era importante, e devia iniciar este ano. Podíamos e devíamos melhorar os meios informáticos, programas relacionados com tratamento da informação e que fazem as transcrições imediatas das gravações poupariam trabalho e melhorariam a nossa capacidade de fazer investigação criminal. Há perícias que demoram dois, três, quatro anos a iniciar. Isso são as perícias informáticas. Mas a área económico-financeiras exige técnicos cujo pagamento não se compadece com a lógica das tabelas de preços do Ministério da Justiça. Aí precisaríamos de mais meios. Abalar interesses instalados tem resultado em pressões? Todos os magistrados têm uma formação aprofundada no sentido de serem rigorosos e corajosos e aterem-se aos trâmites da lei na investigação criminal. Os portugueses têm a percepção que a corrupção é um fenómeno generalizado que mina toda a sociedade.

 Ao fim de dois anos e meios de mandato como PGR qual a conclusão que tira sobre o estado do regime? Só tenho que tirar conclusões e fazer análises que permitam lutar melhor contra os fenómenos que são da minha responsabilidade. Há uma rede que utiliza o aparelho de Estado e da Administração pública para concretizar actos ilícitos, muitos na área da corrupção. O MP, mais concretamente Portugal, nos diversos relatórios internacionais tem sido apontado estando em falta quanto à não definição de uma estratégia nacional de luta contra a corrupção. O MP, no que diz respeito à sua parte, está a fazêlo. Há um grupo de trabalho que está a ser coordenado pelo director do DCIAP em cooperação com todos os DIAP, designadamente os distritais, que vai ter resultados não só na área da prevenção, mas também na área da formação e numa melhor organização. Nos últimos dias várias entidades alertaram para a ruptura iminente do sistema de justiça, devido à falta de funcionários. Que consequências tem essa falta? Atrasa o tempo de duração média dos inquéritos, mas também todos os outros processos nos tribunais da família. Há acusações com meses à espera de serem notificadas às partes. A possibilidade de haver prescrições pode aumentar. Temse lutado contra as prescrições e não tem havido. Mas há esse risco. Há problemas graves e sem funcionários não vamos conseguir responder às nossas responsabilidades. Uma pergunta que muita gente faz, até por comparação com o Processo Marquês. No caso BES por que ninguém foi preso? As prisões preventivas obedecem a regras muitos restritas. Com certeza que os titulares consideraram que não era de aplicar essa medida de coacção. O caso BES é extraordinariamente complexo. Vai exigir do Ministério Público o recurso a conhecimentos que só podem ser potenciados desde que haja uma óptima articulação na cooperação internacional e entre os órgãos de polícia criminal, os reguladores e os peritos, para ter resultados. Temos falado em casos de sucesso, mas há outros que correram mal como o dos submarinos.

 Oito anos de investigação, três equipas de magistrados a dirigi-lo e um arquivamento que assume que ficam muitas dúvidas por esclarecer. Que imagem dá isto da Justiça?

 O caso dos submarinos é daqueles que dará uma imagem não muito simpática do Ministério Público, mas também órgãos de polícia criminal, peritos e outros órgãos. É um caso que devemos analisar com calma. Ver onde houve passos menos correctos e tornarse um case study que nos permita melhorar a nossa capacidade de investigação criminal. Aí o MP terá que reconhecer que podia ter tido um desempenho mais adequado. Passaram quase seis meses desde o arranque da nova organização dos tribunais. Que balanço faz da reforma? Em números é muito cedo. Aquilo que é uma gestão comum pode potenciar uma melhor resolução dos problemas. Foi prejudicada pelo problema do Citius. O Citius está a funcionar mas ainda é necessário um apoio informático localmente muito activo para poder ultrapassar pequenas perturbações locais, por exemplo no acesso a processos antigos. Próxima entrevista a 25 de Março

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