Os "povos" que não
querem trabalhar
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 14/02/2015 / PÚBLICO
Em 2010, ainda
governava José Sócrates, Cavaco Silva ouviu do Primeiro-ministro checo as
seguintes palavras: «O défice do nosso orçamento chegou, o ano passado, aos
cinco por cento. Eu fico muito surpreendido por Portugal não estar preocupado
quando tem um défice de oito por cento. É um caso curioso, interessante e
espero que não estejam aqui jornalistas porque, a nível interno, eu digo que é
absolutamente necessário eliminar o défice o mais depressa possível e defendo a
introdução de medidas radicais para o conseguir. Portanto, sr. presidente,
peço-lhe que não divulgue por cá que vocês têm um défice ainda maior que o
nosso».
Vaclav Klaus fez
várias afirmações deste tipo diante de Cavaco Silva, algumas nos contextos mais
inapropriados, e o Presidente ficou muito incomodado. Acabou por responder que
Portugal iria sem dúvida no futuro ter défices mais baixos e elogiou um dos PEC
de Sócrates.
Muita água passou
de 2010 a
2015. É natural que hoje Cavaco Silva se sinta como Klaus face à Grécia, até
porque as suas afirmações da semana passada são do mesmo teor das do político
checo. No intervalo, Portugal “ajustou”, ou seja, aumentou exponencialmente os
seus impostos, cortou salários e despediu centenas de milhares de portugueses,
levou milhares de empresas à falência, destruiu a vida e o futuro de muitas
famílias portuguesas, acabou com a escassa e débil classe média que se formara
depois do 25 de Abril, alterou profundamente o equilíbrio das relações laborais
a favor do patronato, vendeu todas as “jóias da coroa” menos uma, aumentou a pobreza,
a exclusão social e as diferenciações sociais, desmantelou vários serviços
públicos na administração central, na saúde, na educação e na justiça, e tem
uma política externa ficcional. Mas “ajustou”, pelo que Cavaco Silva pode
aparecer orgulhoso diante do sucessor de Klaus e dizer, na linguagem
adolescente de Passos Coelho, que “fez o trabalho de casa”. Como batemos no
fundo, alguns números da economia são debilmente positivos e outros continuam
negativos, uns crescem, outros descem, outros já cresceram e depois desceram.
Nalguns casos, as coisas melhoraram exactamente pelas razões que o governo
demonizava, como seja o consumo interno.
Nada de sólido,
tudo muito instável e ninguém de bom senso é capaz de dizer que foi feita
qualquer “reforma estrutural” em Portugal, muito menos na economia. Na
sociedade sim, mas chamar-lhe reformas é um insulto à inteligência. Andou-se
para trás. Quem quiser “compor” o país, vai ter enormes dificuldades.
É verdade que os
juros estão historicamente baixos, só que não há nenhum analista independente
que atribua essa circunstância aos méritos nacionais, mas sim ao BCE e ao
excesso de liquidez dos investidores, que levaram quase todos os juros europeus
(incluindo os gregos, até Janeiro de 2015), a baixar muito. A única coisa que o
governo pode dizer a seu favor na questão dos juros é que, como sempre foi bom
aluno das políticas de “ajustamento”, não foi um óbice para essa descida, como
é o haver hoje em Atenas um governo rebelde. Mas, como também qualquer analista
independente dirá, os juros são de tal maneira voláteis face aos diferentes
riscos europeus, que podem voltar a subir a qualquer altura.
Cavaco Silva e
Passos podem hoje esnobar da Grécia, como Klaus fazia com Portugal, mas ao
fazê-lo enfileiram no pior que existe hoje na política europeia: a perversão
dos objectivos da União, transformada num instrumento da política económica e
financeira da Alemanha. A essa situação de facto, que nenhum Tratado permite,
juntam-se duas outras ainda maiores perversões – o declínio do socialismo
europeu domado pelo Tratado orçamental, logo a perda da alteridade política, e
o permanente resvalar das democracias europeias para retirar do escrutínio dos
parlamentos e, pior ainda dos eleitores, todas as políticas europeias
decisivas. Está criado um monstro, e é da natureza dos monstros fazer
monstruosidades.
Ora, quando
Cavaco e Passos passaram a falar dos “gregos” como uma entidade orgânica, um
país de gente preguiçosa, que só quer férias, que não paga impostos, nem aliás
coisa nenhuma, das portagens à electricidade, e que pretende viver eternamente
à custo do dinheiro estrangeiro, eles engrossaram uma hoste europeia que é
demasiado conhecida e que vai do Partido dos Verdadeiros Finlandeses, à Liga
Norte italiana de Umberto Bossi e à sua reivindicação da Pâdania.
O caso italiano é
muito significativo, porque espelha argumentos muito comuns nas zonas ricas de
um determinado país, em relação às zonas mais pobres, muitas vezes rurais e
pouco industrializadas, como é o caso do Sul da Itália. Por que razão o Norte
italiano rico, industrial, trabalhador e próspero tem que “pagar” para esses
preguiçosos da Calábria que vivem da assistência social e não querem trabalhar?
O mesmo tipo de “argumentos” existe em vários países: na antiga Checoslováquia
por parte dos checos e contra os eslovacos, em Espanha e mesmo em Portugal. E
não é verdade que os alentejanos não gostam de trabalhar e querem viver sempre
à “sombra de um chaparro” a dormir? E Pinto da Costa não falou várias vezes do
Porto e do Norte trabalhador que alimenta os “mouros” de Lisboa para baixo? E
em que é que estes “argumentos”, atingindo povos, regiões, histórias
diferenciadas, são diferentes dos que a extrema-direita dá contra os “pretos”,
os “árabes”, e os “imigrantes”, que também não querem trabalhar, mas viver da
segurança social e das regalias dos países mais ricos, em detrimento dos seus
habitantes “nacionais”?
Cavaco Silva e
Passos Coelho falaram dos “gregos” com o mesmo grau de generalidade e anátema.
Como muito dos seus repetidores nos media e nas redes sociais, são as
“características” intrínsecas do povo que são atacadas. O que aconteceu na
Grécia, nesta versão, é culpa do povo, não dos anteriores governos gregos.
Percebe-se, porque o povo votou mal e derrotou o governo preferido por Cavaco
Silva e Passos Coelho: o tandem troika-Nova Democracia.
Sim, porque se o
PASOK tem culpas no passado, a Grécia era até Janeiro governada por um governo
membro do Partido Popular Europeu (de que faz parte Merkel, Rajoy, Passos
Coelho e Portas) que foi apoiado pelos partidos no poder na Alemanha, Espanha e
Portugal. E mais: foi governado pela troika, em conjunto ou em cima, e se os
resultados deixaram a Grécia com a gigantesca dívida que tem, e sem “ter feito
o trabalho de casa”, a culpa é de quem? Do Syriza? Silêncio.
E os gregos não
querem austeridade, o pecado mortal da Grécia para Cavaco e Passos. Mas o que é
que eles tiveram nos últimos anos: despedimentos, falências, encerramentos,
corte de serviços fundamentais, cortes na educação, na saúde, na segurança
social, uma queda brutal do produto Interno Bruto? De onde é que isto veio, do
esbanjamento e da preguiça inata aos gregos? Como é que se chama a isto, senão
uma dura, penosa, cega, punitiva austeridade? Na verdade, como Passos Coelho
diz com todas as letras: foi pouco, têm ainda que ter mais. Mas o que nem
Cavaco nem Passos dizem, é aquilo que é evidente: não resultou, nem resulta,
nem resultará. É uma receita errada quer em Portugal, quer na Grécia. Mas era a
continuação dessa receita, aquilo a que chamam “cumprir as regras”, que Passos
queria para a Grécia, com aquela cegueira que tem os acólitos e que continua
mesmo quando os mestres já estão noutra.
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