Hoje a Grécia, amanhã a Espanha e
depois a Itália?
Jorge Almeida Fernandes / 1-2-2015 /
PÚBLICO
Na noite
da vitória do Syriza escreveu Paolo Flores D’Arcais, filósofo e radical
italiano: “Hoje na Grécia, amanhã na Espanha, depois de amanhã na Itália.”
Alexis Tsipras, líder do Syriza, prometeu refundar a Europa. “O 25 de Janeiro é
o começo, a vitória do Syriza será seguida pela do Podemos em Espanha e, no
próximo ano, pela do Sinn Féin na Irlanda.” Pablo Iglesias, líder do Podemos,
proclamou: “2015 será o ano da mudança na Espanha e na Europa. Vamos começar
pela Grécia.” Anuncia-se o fim da “era da austeridade” e um novo efeito dominó,
inverso daquele que a Grécia abriu na zona euro em 2010. Os mais ousados sonham
com uma nova “Primavera dos Povos”, como a de 1848.
Três
factos perturbam a festa. Primeiro, o Syriza escolheu para aliado um partido da
direita radical — Gregos Independentes (Anel). Foi um balde de água fria para
Roma e Paris. É uma “aliança contra naturam”, protestou Daniel CohnBendit. Não
é um ponto acessório e a ele voltaremos.
A 19 de
Abril, há eleições legislativas na Finlândia. Os Verdadeiros Finlandeses,
partido populista eurocéptico, contam com Atenas para mobilizar o eleitorado
contra Bruxelas e contra o Sul. Seria a primeira de uma série de vitórias
eleitorais “antiGrécia”. O perdão parcial da dívida grega provocaria uma
ressaca no Norte da Europa que fortaleceria a extrema-direita e os partidos
nacionalistas, anotou o analista britânico Gideon Rachman.
Por fim,
o Sul não é homogéneo. Em Portugal, mantém-se a lógica bipartidária. Na França,
quem capitaliza eleitoralmente a luta antieuro e antiausteridade é a Frente
Nacional, de Marine Le Pen — que as sondagens colocaram esta semana na casa dos
30%. Marine apoia o Syriza. Ou melhor: utiliza o Syriza para reabrir o
“julgamento” da UE. Também na Itália não é a esquerda radical quem capitaliza a
vitória do Syriza: são os adeptos de Beppe Grillo e a Liga Norte, convertida
hoje a Le Pen. Tsipras e Iglesias esqueceram-se de juntar Marine à sua lista de
desejos.
Os novos radicais
O Syriza
e o Podemos são um fenómeno político novo, uma esquerda radical que não deve
ser confundida com as antigas extremas-esquerdas de que provêm. É Iglesias quem
melhor o teoriza. O velho esquerdismo visava manter a pureza doutrinal e os
seus mitos ideológicos, permanecendo uma força marginal. Iglesias explica que
ao Podemos não interessa ter 10 ou 15% dos votos — aspiração do Bloco de
Esquerda ou das extremasesquerdas europeias. Quer seduzir o eleitorado do
centro e mesmo da direita. Quer o poder. Não fala em luta de classes — relíquia
do século XX — mas no confronto entre os de “cima” e os de “baixo”, entre a
“gente” e a “casta”.
A sua
aprendizagem na Venezuela ou na Bolívia não visa assimilar a Europa do Sul à
situação da América Latina. O seu objectivo é encontrar novos mecanismos da
acção política. A antiga esquerda radical sonhava “mudar o mundo sem tomar o
poder”. Podemos quer o poder. Por isso estudaram as experiências de “conquista
da hegemonia” pelos populismos bolivarianos. “Ganhar eleições não é ganhar o
poder”, escreve Iglesias. Por enquanto, a meta são as eleições. O resto, e o
depois, é deliberadamente vago.
O seu
“primeiro mandamento” é deixar de falar para a esquerda e falar para a “gente”.
O segundo é estar em sintonia com o “estado de espírito” (não com as
ideologias) dos espanhóis. O Podemos quer dizer “aquilo que as pessoas pensam”.
Os grandes partidos só agora começam a perceber um fenómeno que menosprezaram
(Ponto de Vista de 30.11.14).
O
Podemos reconhece que o terreno lhe foi aberto não só pela crise económica —
que popularizou a hostilidade a Bruxelas e Berlim — mas sobretudo pela
degradação do sistema bipartidário, que se propõe destruir. Tal como o Syriza,
rompeu com a anterior estratégia de aliança com a esquerda social-democrata — o
objectivo é “pasokizar” o PSOE.
O Syriza
começou por ser uma coligação de várias forças da extrema-esquerda clássica
que, agora, se vê forçada a funcionar como partido. Tem um estilo mais clássico
que o Podemos. Mas começou recentemente a usar uma retórica mais próxima de
Iglesias, falando para “toda a sociedade”, para “a nação”, ultrapassando a
dicotomia esquerda-direita.
O seu
sucesso não decorre apenas do “desespero social”, mas do descrédito do sistema
bipartidário e da ruína das “dinastias gregas”. Depois, soube condensar o
descontentamento social num sentimento de “humilhação nacional”. Faz uma
leitura da crise com raízes na História. “A esquerda radical interpretou a
crise dos últimos anos como uma luta de libertação nacional contra o jugo estrangeiro”,
anota o economista Manos Matsaganis. “Prometeu um regresso fácil e indolor aos
bons velhos tempos de antes do resgate. (...) O partido é alérgico às reformas,
combatendo asperamente as mais inócuas.” A mola unificadora é o nacionalismo.
Não é surpresa que se tenha aliado ao Anel, “uma direita reaccionária e
xenófoba” com laivos de antisemitismo. “A Europa é governada por alemães
neonazis” — é a tese de Panos Kammenos, líder do Anel. Tudo os separa
ideologicamente, menos a questão principal: a austeridade e a Europa.
Não será
a primeira vez, nem a última, que os extremos se aliam. Não é de excluir, na
actual conjuntura, inesperadas recomposições políticas que não passam pela
clivagem esquerdadireita. Lembremos o referendo francês sobre a Constituição
europeia, em 2005. Esquerdistas partidários de “outra Europa”, soberanistas e
eurocépticos, de esquerda e de direita, e a extremadireita de Le Pen uniram-se
para derrotar o tratado.
“Credores e devedores”
O
Governo grego está numa posição de fraqueza negocial no plano económico: a
chantagem sobre o fim do euro deixou de funcionar. Mas tem uma posição política
forte. Joga numa vaga de simpatia, na contestação da austeridade noutros países
do Sul e no aumento da pressão sobre Berlim. Estabeleceu uma base negocial
maximalista para dramatizar a negociação, tentando forçar uma mediação por
parte de países como a Itália ou a França.
Diagnostica
o alemão Joschka Fischer: “Dado o impacto do resultado das eleições gregas na
Espanha, na Itália e na França, onde os sentimentos antiausteridade são
igualmente altos, subirá significativamente a pressão sobre o Eurogrupo — tanto
à direita como à esquerda. (...) A eleição grega já produziu uma inequívoca
derrota de Merkel e da estratégia baseada na austeridade para defender o euro.”
“O elo
fraco da teoria europeia é político”, escreveu há semanas Gideon Rachman. “É,
especificamente, o risco de os eleitores se poderem revoltar contra a
austeridade e darem os seus votos a partidos ‘anti-sistema’ que rejeitam o
consenso europeu para manter a moeda única.” É nisto que Atenas aposta,
ignorando o efeito bumerangue que vai criar.
Que
significa politicamente? Crescerão as reacções “soberanistas antieuropeias”, a
Norte e a Sul. Que margem de manobra terá Merkel na Alemanha para retomar a
iniciativa? Como vão Paris e Berlim responder à divisão Norte-Sul que se alarga
e mudará a UE? A Europa está a radicalizar-se entre dois blocos: credores e
devedores.
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