segunda-feira, 1 de junho de 2015

Passos à procura de leitores, enquanto se preparam dois livros sobre Costa


Passos à procura de leitores, enquanto se preparam dois livros sobre Costa

Quem visita as feiras do livro encontra cada vez mais biografias, ensaios e temas de actualidade política. O interesse das editoras e o dos próprios políticos cruza-se nestes “livros de temporada”

Paulo Pena / 1-6-2015 / PÚBLICO

No campeonato dos prováveis candidatos presidenciais, Rui Rio foi dos últimos, enquanto Marcelo Rebelo de Sousa já tem a sua biografia publicada há anos
Há, ainda assim, exemplos de trabalhos de referência. Fernando Rosas e João Pedro George destacam a biografia de Álvaro Cunhal, escrita por Pacheco Pereira O livro de Isaltino de Morais de Oeiras apareceu na capa do Correio da Manhã com um pretexto incomum: “Esta noite tive um sonho erótico”

Somos o que queremos ser, a biografia autorizada de Pedro Passos Coelho, de Sofia Aureliano, encheu linhas de jornal, foi tratada pelos colunistas, chegou às televisões. Um êxito editorial? Longe disso. Segundo os números oficiais, este livro lançado há menos de um mês ainda não vendeu 800 exemplares. E o tempo, como veremos, joga contra as futuras vendas...
Nada que impeça, para já, que duas editoras portuguesas tenham encomendado, quase em simultâneo, duas obras sobre a vida de António Costa, o principal candidato ao cargo que Passos ocupa. Acabam aqui as semelhanças. Enquanto a biografia de Passos foi devidamente “autorizada”, com a colaboração do primeiro-ministro e da sua família, os dois livros sobre Costa não vão poder contar com declarações inéditas do secretário-geral do PS, que recusou prestar qualquer apoio aos quatro jornalistas que estão a trabalhar no texto.
Essa é outra diferença: Sofia Aureliano, a biógrafa de Passos, é assessora do grupo parlamentar do PSD; os futuros biógrafos de Costa são jornalistas. Bernardo Ferrão e Cristina Figueiredo, do Expresso, trabalham num dos livros; Miguel Marujo e Octávio Lousada de Oliveira, do DN, estão a redigir o outro. Ambos estarão prontos antes das legislativas.
Além dos dois líderes partidários, vários outros protagonistas políticos contam com biografias publicadas. No campeonato dos prováveis candidatos presidenciais, Rui Rio foi dos últimos, enquanto Marcelo Rebelo de Sousa já tem a sua biografia publicada há anos.
Isaltino de Morais acaba de lançar as suas memórias do cárcere. O livro do ex-autarca de Oeiras apareceu na capa do Correio da Manhã com um pretexto incomum: “Esta noite tive um sonho erótico.” Esta foi a passagem destacada pelo jornal. Um exemplo limite daquilo a que João Pedro George, biógrafo de Luiz Pacheco, identifica, com ironia, como uma das promessas aos leitores de algumas destas obras: “Entrar nos recessos da alma...”
Apetite pelo efémero
“Se procurarmos uma explicação para a proliferação de biografia dos políticos apenas baseada em critérios de ordem política (estratégias de implantação e afirmação junto dos cidadãos; busca de uma relação de maior conhecimento e proximidade; resposta à lógica da mediatização e de uma política-espectáculo), não estaremos a analisar convenientemente o fenómeno”, observa António Guerreiro, crítico literário do PÚBLICO. “Ele é, primeiro que tudo, eminentemente editorial, ou seja, é a lógica da edição, mais do que as determinações da vida política e dos seus hábitos, que ‘produz’ estas biografias. Quando a edição era sobretudo literária e de prestígio, não havia o ‘apetite’ editorial que existe hoje por um certo tipo de livros que se sabe à partida que vão ser muito efémeros.”
As próprias editoras assumem a efemeridade destes “livros de temporada”, como lhes chama Guerreiro. “São livros assumidamente efémeros, com um ciclo de vida mais curto”, feitos a pensar num debate público que é, também ele, cada vez mais “rápido”, adianta Liliana Valpaços, editora da Matéria-Prima, uma das chancelas que se preparam para editar uma biografia de Costa e acabou de lançar Cercado — Os Dias Fatais de José Sócrates, do jornalista Fernando Esteves, um dos livros mais vendidos das últimas semanas. São vários os exemplos de best
sellers recentes na não ficção. A biografia de Marcelo, de Vítor Matos, as investigações de Gustavo Sampaio sobre a promiscuidade entre o Estado e o sector privado ou o livro sobre a Maçonaria do também jornalista António José Vilela. Todos eles foram trabalhados por Sofia Santos Monteiro, uma das precursoras deste nicho editorial em Portugal. Estes livros, crê a editora, cumprem uma função: “Abrir o debate.” “Traçam um quadro, estabelecem ligações que a maioria das pessoas não conhece, porque não tem um panorama geral sobre determinado assunto, apenas pelo que lê e ouve nos media.”
São livros que já podem concorrer “de igual para igual” com a ficção de êxito, resume Liliana Valpaços. “Ao ponto de hoje suplantarem, nos cálculos e nos programas editoriais, os chamados ‘livros de fundo de catálogo’ (isto é, aqueles que são editados para perdurar mais tempo)”, acrescenta António Guerreiro.
O historiador Fernando Rosas é muito crítico das virtudes dos “livros que não ficam”. Além de uma “mercantilização medíocre” do mercado editorial e de alguns exemplos de “jornalismo de sensação” que encontra, Rosas não vê “qualquer relevância” na maioria do que se edita neste campo. Sobretudo nas biografias...
“Há uma visão narcísica, doente, de si próprio em alguém que aos 40 ou 50 anos acha que tem uma vida que merece ser biografada”, aponta. Até porque, para o professor da Uni-
versidade Nova de Lisboa, “há riscos do ponto de vista historiográfico nas biografias, quando apresentam um papel sobreavaliado do indivíduo na História”. Quando é bem feito, o exercício pode ser “perigoso”, mas tem sido “justamente reabilitado”. Quando não é... “É uma desilusão... Explora o instinto primitivo da coscuvilhice sobre a vida dos outros. Ou então apresenta umas vidas heróicas de umas criaturas para efeitos puramente eleitorais.”
Desse ponto de vista, nenhum político português descobriu a roda. O fenómeno é internacional. Resume-se, para António Guerreiro, numa palavra “que passou quase a designar um mandamento”: empatia. “Aos políticos exige-se que eles estabeleçam uma relação ‘empática’ com os cidadãos. Uma biografia cumpre, em parte, essa missão. Tanto mais que o pacto biográfico é, tradicionalmente, visto como um pacto de verdade. A biografia de uma pessoa aventureira ou com uma vida cheia de peripécias responde a uma injunção deste tipo: ‘Contando a vida de X constrói-se um grande romance.’ A biografia de um político, com uma vida geralmente anódina, responde a uma outra necessidade, que se pode talvez traduzir assim: ‘Contando a vida de X (ou parte dela) dá-se a ver a sua verdade.’ No entanto, qualquer leitor minimamente treinado nas convenções do género percebe desde a primeira linha que não há qualquer verdade nestas biografias, mesmo que os biógrafos não sejam movidos pela vontade de mentira; basta serem um pouco primários na escrita, que é o que acontece quase sempre, para não conseguirem produzir uma única linha de onde transpire qualquer efeito de ‘verdade’.”
A verdade e as vendas
Exemplo? Na capa, o livro anunciase como uma “biografia de Pedro Passos Coelho”. Logo na introdução, a autora, Sofia Aureliano, explica que a obra “não tem a pretensão de ser um retrato fiel do que foi a vida deste homem”. Na definição seca de um dicionário, biografia é a “história de vida de uma pessoa”.
Liliana Valpaços garante que há uma fronteira que os editores não devem ultrapassar: a da “honestidade face às expectativas dos leitores”. Até porque “poucos livros propagandísticos de políticos tiveram uma prestação excepcional nas vendas”.

Há, ainda assim, exemplos de trabalhos de referência. Fernando Rosas e João Pedro George destacam a biografia de Álvaro Cunhal, escrita pelo historiador e colunista José Pacheco Pereira. Rosas referese ainda ao “trabalho jornalístico de investigação histórica feito com empenho” por Joaquim Vieira, e que resultou na biografia de Mário Soares. O que mostra que é possível biografar um político vivo sem um registo “laudatório”. Sofia Santos Monteiro, a editora desse trabalho, acredita que muitos destes livros serão “ferramentas úteis para os historiadores, no futuro”.

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