Sócrates
mantém licenciatura devido à falta de fiscalização do ministério
Ministério
Público diz que se avançasse com acção para invalidar a
licenciatura do ex-primeiro-ministro, este e terceiros afectados
poderiam ter direito a uma indemnização paga pelo Estado
Mariana Oliveira /
19-12-2015 / PÚBLICO
A “conduta
notoriamente omissiva” do Ministério da Educação na fiscalização
do funcionamento da Universidade Independente (UnI), encerrada
compulsivamente em Agosto de 2007, é um dos argumentos usados pelo
Ministério Público para não avançar com uma acção para
invalidar a licenciatura em Engenharia Civil concluída por José
Sócrates naquela universidade no Verão de 1996. Isto apesar de
considerar que a licenciatura é nula, por as equivalências
atribuídas pela UnI — Sócrates tinha estudado antes no Instituto
Superior de Engenharia de Coimbra e no de Lisboa — terem sido
concedidas sem a intervenção do conselho científico da
instituição, como a lei exigia, um órgão que apenas se reuniu,
pela primeira vez, em Julho de 1997.
As pautas com as
notas de Sócrates são todas individuais, ou seja, só possuem a
nota do ex-primeiro-ministro
Caso o Ministério
Público decidisse avançar com uma acção para impugnar a
licenciatura de Sócrates, esta omissão, considera a procuradora
coordenadora do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, Carla
Lamego, “criaria certamente para o Estado o dever legal de
indemnização para com terceiros e para com os aqui visados
[incluindo Sócrates], fundada em responsabilidade civil
extracontratual, tendo em conta, para além do mais, o tempo
decorrido e a estabilidade das situações entretanto sedimentadas e
decorrentes dessa omissão da Administração”.
Num despacho de 71
páginas, proferido este mês, a procuradora salienta ainda o tempo
que passou desde a atribuição da licenciatura de Sócrates.
“Igualmente relevante é o tempo entretanto decorrido, quase 20
anos, sobre a prática dos actos, acrescido do facto de, pelo menos,
desde 9 de Abril de 2007 — data do primeiro despacho que determinou
o encerramento compulsivo da UnI — a situação de equivalências
ilegalmente concedidas era conhecida do Ministério da Educação”.
O facto de nessa
altura o ministério não ter avançado para a cassação dos
diplomas fez com que, na opinião da procuradora, ficasse acrescida
“a confiança dos destinatários daqueles actos de que dispunham de
diplomas obtidos sem violação de qualquer disposição”.
No despacho, Carla
Lamego analisa em detalhe o percurso académico de Sócrates e de
mais sete alunos da Independente. Todos estes estudantes eram
oriundos de outras instituições de ensino superior e frequentaram o
5.º ano em Engenharia Civil , na UnI, no ano lectivo de 1995/1996,
como o ex-primeiro-ministro.
Na apreciação do
caso, a procuradora diz que se verificou “o incumprimento de todo o
procedimento legalmente exigido para a atribuição de
equivalências”, um elemento essencial que determinada a nulidade
desse processo e de tudo o que se seguiu. Essa declaração de
nulidade, sustenta Carla Lamego, “acarreta a nulidade dos actos
subsequentes, ou seja, todos os actos praticados pela UnI e
incidentes sobre o percurso académico dos visados, in maxime sobre o
acto de atribuição das suas licenciaturas”.
A magistrada explica
que “um acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos” e é
“invocável a todo o tempo”, mas realça que, excepcionalmente,
pode manter certos efeitos jurídicos pelo decurso do tempo. Carla
Lamego cita o professor catedrático de Direito Administrativo da
Universidade de Coimbra Vieira de Andrade para defender que é
preciso fazer uma ponderação entre os valores da legalidade, de um
lado, e os da segurança jurídica e da estabilidade das decisões,
por outro.
Face à omissão de
fiscalização da UnI por parte do Estado, a magistrada entende que
resta analisar a boa-fé dos alunos, concluindo que “não decorre,
em momento algum dos elementos recolhidos pela Inspecção-Geral da
Educação e Ciência [IGEC], que algum dos visados não tenha
actuado de boa-fé”. E recorda o arquivamento do processo
investigado em 2007 pelo Departamento Central de Investigação e
Acção Penal (DCIAP), que concluiu pela “inexistência de eventual
tratamento de favor” de Sócrates, em detrimento dos restantes
candidatos à licenciatura. Por isso, o Ministério Público acaba
por concluir que “terá que prevalecer, no caso, o princípio da
protecção da confiança”, abstendo-se, por isso, de intentar a
acção para cancelar a licenciatura do ex-primeiro-ministro.
Lembra ainda um
despacho do então ministro da Ciência e do Ensino Superior, Mariana
Gago, em Abril de 2007. “Pese embora conhecedor das várias
ilegalidades ocorridas, nomeadamente na atribuição de
equivalências, como expressamente consta dos despachos em apreço, o
então ministro (...) teve, como lhe impunha a lei, que salvaguardar
os interesses dos estudantes”. Por isso, mesmo que o Ministério
Público avançasse com a acção para impugnar a licenciatura,
“teria como probabilidade séria, como consequência, apenas a
declaração da nulidade de tais actos, mas com a manutenção dos
seus efeitos”, remata a procuradora Carla Lamego.
Este processo
administrativo resultou de uma participação feita pelo antigo
vice-reitor da UnI, Rui Verde, em Abril de 2013, a pedir a declaração
de nulidade do curso do antigo primeiro-ministro, em nome do
princípio da igualdade. Isto porque o Ministério Público avançara
com um pedido para declarar a nulidade da licenciatura do antigo
ministro Miguel Relvas concluída na Universidade Lusófona — um
processo que aguarda há mais de dois anos por uma decisão. Rui
Verde, acusado de vários crimes no caso da Independente, argumentava
que havia muitas semelhanças entre os dois processos para justificar
a sua participação.
Inscrição no curso
Quando se inscreveu
na licenciatura de Engenharia Civil da UnI, Sócrates não apresentou
qualquer documento que comprovasse as disciplinas que realizara no
ano lectivo anterior no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa
(ISEL) e que viriam a darlhe equivalência a várias cadeiras. No
processo do aluno na Independente, a IGEC só encontrou uma certidão
do instituto superior de Julho de 1996, semanas antes de Sócrates
concluir a licenciatura. Por outro lado, a inspecção estranha que
no processo do ISEL, três das dez disciplinas que Sócrates fez
naquela instituição só tenham data de aprovação de Outubro de
1995, já o ex-primeiro-ministro formalizara a inscrição na UnI.
Tal não aconteceu apenas com Sócrates, notando a procuradora que o
mesmo se passou com outros dois alunos que vieram do ISEL.
Equivalências
Relativamente às
equivalências atribuídas, a IGEC encontrou referências a elas em
vários documentos, mas nenhum que determine, de facto, as
equivalências. “Não se encontrou qualquer vestígio de que o
efectivo acto esteja materializado em qualquer documento que
patenteie a sua prática ou que permita sequer descortinar algum
indício de que o mesmo possa ter sido praticado por qualquer órgão
da universidade,
designadamente, pelo conselho científico, órgão legalmente
competente para o efeito”, lê-se no despacho. Aliás aquele órgão
apenas se reuniu pela primeira vez a 24 de Julho de 1997, já
Sócrates terminara a licenciatura. O Ministério Público diz ainda
que quando a UnI determinou o planos de estudos para Sócrates
concluir o curso, tal “não terá assentado em documento
efectivamente comprovativo da aprovação nas disciplinas no ISEL,
mas, eventualmente, apenas na listagem que o aluno referiu no
requerimento inicial”. A IGEC conclui, aliás, que o caso de
Sócrates não é único, já que a ausência de participação do
conselho científico na determinação das equivalências ocorre
“desde o início do funcionamento” da UnI, em 1994, “até, pelo
menos, 26 de Julho de 2000”. O ex-reitor Luís Arouca, ouvido pelo
DCIAP em 2007, afirmou que antes de existir conselho científico “as
questões eram resolvidas de forma pragmática e por quem pudesse e
tivesse conhecimento para as decidir”. António Morais, que foi
professor de Sócrates em quatro das cinco disciplinas que o antigo
governante fez na UnI e se identifica como director do Departamento
de Engenharia Civil daquela universidade, afirmou ao DCIAP que quem
decidia a atribuição das equivalências era Luís Arouca,
“normalmente com prévia consulta” sua.
O Inglês Técnico
O programa da
disciplina apresentado na Direcção-Geral do Ensino Superior é
constituído por duas páginas, num papel que não possui sequer o
timbre da UnI. A disciplina foi ministrada a Sócrates por Luís
Arouca, que nos documentos oficiais nunca aparece como professor da
cadeira. No processo de Sócrates existe uma pauta da disciplina
assinada pelo ex-reitor e um trabalho datado de 22 de Agosto de 1996
e classificado com 15 valores quatro dias mais tarde. Estas datas
criaram confusão com uma outra: a do fim do curso. No dossier de
aluno está um certificado, emitido em 2003, que refere que o curso
de José Sócrates foi concluído a 8 de Setembro de 1996. Num outro
certificado, que foi enviado para a Câmara da Covilhã em 2000, para
que Sócrates fosse reclassificado como engenheiro civil, a data de
fim de curso é 8 de Agosto de 1996, ou seja, antes de concluída
esta disciplina. Na análise, a IGEC realça: “Salvaguardada a
ausência de elementos de identificação temporal em algumas das
pautas existentes no espólio conhecido da universidade, 8 de
Setembro não coincide com a data de nenhuma das pautas referentes a
este aluno, da sua afixação ou do lançamento das respectivas
classificações”.
As notas
A IGEC constata que
as pautas com as notas de Sócrates são todas individuais, ou seja,
só possuem a nota do ex-primeiro-ministro. “Estranha-se, no
entanto, a existência de pautas individuais, especialmente quando
não exibem classificação igual à registada nas pautas colectivas
da mesma disciplina, nem à que veio a ser integrada no sistema
informático e que consta do certificado, daí extraído, por
referência a essas disciplinas”, lê-se no despacho. O problema é
comum a vários dos outros estudantes analisados. Um deles apresenta
11 valores numa pauta de uma disciplina e a indicação de reprovado
com nove valores noutro registo oficial, não assinado. Há vários
casos como este relatados ao longo do despacho.
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