quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Médicos e enfermeiros garantem que caso de morte no São José não é único

EDITORIAL / PÚBLICO
Um preço demasiado alto para a incúria
24/12/2015 -
A trágica morte de um jovem de 29 anos no Hospital de São José veio, diz-se agora, permitir que um problema que se arrasta desde 2013 nos hospitais fosse resolvido. É terrível chegar a esta conclusão, mas o facto de não haver no Centro Hospital de Lisboa determinadas especialidades ao fim-de-semana (no estranho pressuposto que há doenças que têm que ser “evitadas” fora dos chamados dias úteis), certamente para poupar nas despesas, é uma falha grave que teve, agora, consequências gravíssimas: uma morte que podia ser evitada. Por causa dela, e do eco que teve na imprensa, houve demissões, há inquéritos e há promessas. O ministro da Saúde garante que semelhante situação não se repetirá. Mas o que não devia repetir-se, mesmo, era o arrastar de decisões fulcrais para a normal assistência em casos graves, esperando talvez que ninguém morra e ninguém repare. Pois morreu alguém e repararam. Um preço demasiado alto para tal incúria.

Médicos e enfermeiros garantem que caso de morte no São José não é único
ALEXANDRA CAMPOS 23/12/2015 - PÚBLICO

"Há pessoas que ficam com sequelas e pessoas que morrem", diz presidente do colégio de neurorradiologia da Ordem dos Médicos. Em Maio, quatro serviços ofereceram-se para assegurar escala única ao fim-de-semana na área metropolitana de Lisboa, sem sucesso.

Há médicos e enfermeiros que garantem que o caso fatal que aconteceu no Hospital de São José, em Lisboa, está longe de ser único, e que lembram que os anteriores responsáveis do Ministério da Saúde já sabiam que não havia especialistas de prevenção ao fim-de-semana há muito tempo e nada fizeram. Continua, entretanto, por esclarecer se esta unidade hospitalar tentou transferir David Duarte, assim se chamava o jovem de 29 anos que morreu enquanto aguardava tratamento após a ruptura de um aneurisma cerebral, para o Santa Maria. O Ministério da Saúde diz agora que os dois hospitais têm que se articular para garantir resposta ao fim-de-semana.

Foi preciso que o caso de David chegasse aos jornais para que um problema que se arrasta desde 2013 fosse finalmente resolvido, lamentam vários profissionais de saúde. Em Maio deste ano, face ao drama dos doentes que não podiam ser tratados, os responsáveis pela neurorradiologia de intervenção de quatro hospitais de Lisboa ofereceram-se mesmo para assegurar uma escala única na área metropolitana da capital, o que permitiria resolver o problema, mas nada aconteceu, enfatiza o bastonário da Ordem dos Médicos. “Há mais casos [deste tipo], a diferença é que, neste, a família decidiu denunciar a situação”, afirma José Manuel Silva.


Agora, há uma sucessão de inquéritos em curso, um no próprio Centro Hospitalar de Lisboa Central(CHLC), que integra o Hospital de S. José, outro na Inspecção-Geral das Actividades em Saúde e mais um no Ministério Público.

Enquanto o ministro da Saúde garantia esta quarta-feira que o problema não se repetirá, o responsável pelo serviço de neurorradiologia do Hospital de São José, João Reis, assegurava também ao PÚBLICO que este “não é um caso único”. “Há pessoas que ficam com sequelas e há pessoas que morrem” porque as equipas que tratam os aneurismas são as mesmas que respondem em caso do AVC (acidentes vasculares cerebrais) agudos e não há escalas de prevenção de neurorradiologia de intervenção (nem de neurocirurgia vascular, a outra especialidade que pode tratar este tipo de situações) aos fins-de-semana, tanto no no São José como, segundo afirma, no Santa Maria.

Terá sido por esse motivo que David não chegou sequer a ser encaminhado para o Santa Maria e acabou por morrer. Há quem diga que ainda houve um contacto telefónico nesse sentido entre os dois hospitais e há quem assevere que isso não chegou a acontecer. A questão está a ser averiguada.
Certo é que, transferido do hospital de Santarém, David entrou ao final do dia 11 de Dezembro, sexta-feira, no São José, com dificuldades em falar e com o lado direito do corpo paralisado.

Diagnosticada uma hemorragia cerebral provocada por um aneurisma, os médicos avisaram a família que apenas podia ser tratado depois do fim-de-semana por não haver equipa nem de neurorradiologistas nem de neurocirurgiões especializados (são poucos os neurocirugiões preparados para este tipo de intervenção de alto risco).

“Há toda uma sequência de pessoas em lugares importantes que não tomaram as decisões adequadas, não foi só o ministro [o anterior responsável Paulo Macedo]”, lamenta João Reis, que também é presidente do colégio da especialidade de Neurorradiologia da Ordem dos Médicos.

Mas é preciso recuar até ao final de 2012 para se perceber toda esta história, nota. Nessa altura, os responsáveis do serviço por si liderado fizeram uma espécie de ultimato à administração do hospital, ameaçando que suspendiam as escalas ao fim-de-semana caso não fosse revisto o pagamento das horas extraordinárias, sobretudo dos enfermeiros e dos técnicos de raios X que integram estas equipas. “Pagavam-lhes três a quatro euros por hora, não dava para os transportes [quando há um caso urgente, têm 20 minutos para chegar ao hospital]”, explica.

Sem solução por parte da tutela, apesar do “empenho” da presidente do conselho de administração do CHLC, em Janeiro de 2013 a equipa de neurorradiologia de intervenção deixou de fazer prevenção aos fins-de-semana, lembra. Em Abril de 2014, a neurocirurgia vascular fez o mesmo.

As rupturas de aneurisma podem ser tratadas por equipas de neurorradiologia (através de cateterismo) ou pela neurocirurgia, com uma intervenção cirúrgica. Mas é a neurorradiologia que “trata de 80%” das rupturas de aneurisma, segundo João Reis. Mais: estas equipas dão também resposta aos AVC (acidentes vasculares cerebrais) na fase aguda, que, se não tratados atempadamente, podem causar graves sequelas e mesmo morte. Tratados com prontidão, “62% dos pacientes com AVC mais graves ficam totalmente autónomos aos 90 dias”, destaca o especialista que nota que estes casos são muito mais frequentes do que as rupturas de aneurisma e exigem uma resposta mais rápida.

Também o o presidente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), João Carlos Martins, lamentou a falta de resposta da tutela, face aos sucessivos apelos. A resposta podia ter sido retomada em Maio passado, quando os quatro serviços desta especialidade em Lisboa se disponibilizaram para constituir uma única equipa na Grande Lisboa. mas a “tutela não deu seguimento ao caso”, frisou à TSF o sindicalista.

À semelhança de João Reis, João Carlos Martins diz que este tipo de situação “já se repetiu muitas vezes” e que foi por isso mesmo que se decidiu fazer qualquer coisa, face aos “dramas dos doentes” verificados no dia a dia.

A divulgação do caso de David provocou uma cascata de demissões: além do presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa, estão demissionários os presidentes dos conselhos de administração do Centro Hospitalar de Lisboa Central, Teresa Sustelo, e de Lisboa Norte, Carlos Martins. Este último, ao que tudo indica, porque também o hospital de Santa Maria não tinha condições para dar resposta ao caso de David.


Para o actual ministro, Adalberto Campos Fernandes, o que aconteceu é “incompreensível” e não se tratou apenas de uma questão financeira ou de falta de recursos humanos. Apesar de reconhecer que os cortes financeiros em alguns aspectos foram “longe demais”, o ministro lembra que nas regiões Norte e Centro do país as equipas “funcionam sem nenhum tipo de problema” para ilustrar que houve aqui um problema de “organização”.  

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