sábado, 19 de dezembro de 2015

Assembleia Municipal de Lisboa aprova expropriações urgentes para se poder construir uma mesquita na Mouraria




Assembleia Municipal de Lisboa aprova expropriações urgentes para se poder construir uma mesquita na Mouraria

POR O CORVO • 18 DEZEMBRO, 2015 •
Texto: Samuel Alemão

Apesar de a votação final sem votos contra não o deixar adivinhar, a discussão em torno da aprovação da utilidade pública do instrumento legal que ajudará a fazer nascer uma mesquita foi tudo menos pacífica. Alguns deputados municipais do PSD dizem ter dúvidas sobre o processo urbanístico. E houve quem dissesse que um Estado laico não pode financiar templos. Afirmações e dúvidas que irritaram muito Fernando Medina e levaram um eleito do PS a falar em cedência a campanhas orquestradas pela extrema-direita nas redes sociais. A polémica promete continuar.
A discussão foi animada, e teve até alguns momentos mais tensos, mas a votação final da proposta foi quase unânime, contando apenas com a abstenção de meia-dúzia de deputados, cinco dos quais do PSD. Entre declarações ideológicas e discussões apaixonadas sobre a laicidade do Estado português e o carácter tolerante, cosmopolita e ecuménico da sua capital, a Assembleia Municipal de Lisboa (AML) aprovou, na tarde desta quinta-feira (17 de Dezembro), a declaração de utilidade pública de expropriação, com carácter urgente, de três prédios particulares “e de todos os direitos a eles inerentes”, por serem necessários à execução do projeto da Praça da Mouraria e da nova mesquita que nela será construída. A proposta havia já sido votada favoravelmente pelo executivo camarário, a 28 de Outubro.
O projecto, abrangido pelo Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Mouraria (PUNHM), deverá ainda voltar a ser apreciado pela assembleia no que concerne à autorização para a sua prossecução. O que foi agora aprovado foi o carácter urgente das expropriações que darão lugar a demolições de um edifício municipal na Rua da Palma e a três prédios particulares situados nas suas traseiras, na Rua do Benformoso. A nova praça nascerá nesse lugar, assegurando a ligação entre os dois arruamentos através de um espaço público que ficará sob o templo muçulmano a edificar. A construção da mesquita, destinada a servir sobretudo a numerosa comunidade do Bangladesh residente naquela área da cidade, será suportada pelo município de Lisboa e terá um custo estimado de 1,5 milhões de euros.
Ao contrário do sucedido na votação camarária, ocorrida em Outubro passado, em que a aprovação da proposta foi unânime – e pautada apenas por algumas reservas levantadas pelo vereador João Gonçalves Pereira (PSD), que ainda assim votou favoravelmente -, na discussão ocorrida na assembleia o tom foi claramente mais crispado. Chegou-se mesmo a falar da influência de ideias xenófobas e de extrema-direita, expressas sobretudo através das redes sociais, para tentar travar o avanço do projecto. As acusações partiram do deputado municipal José Leitão (PS), ex-alto comissário para a imigração e as minorias étnicas, que salientou as garantias de liberdade religiosa existentes em Portugal e a necessidade de reforçar o sentido multicultural.
“Lisboa é uma cidade global e não podemos esquecer que a comunidade muçulmana sempre este muito presente naquele local”, disse o eleito socialista, salientando o facto de o templo que deverá ser construído vir a suprir a forte necessidade, uma vez que o que existe naquela zona ser manifestamente pequeno para a procura crescente. “Este projecto cumpre o espírito ecuménico e contribui para o reforço da coesão na Mouraria e na cidade. Não podemos ceder à demagogia, à xenofobia e à intolerância expressa nas redes sociais”, afirmou José Leitão, que havia começado a sua intervenção no plenário afirmando-se surpreendido com as dúvidas expressas pelo PSD. “Antigamente, não tinham preconceitos em relação a estas questões”, disse.
Os social-democratas foram, de facto, e juntamente com o Movimento Partido da Terra (MPT), vozes abertamente discordantes face ao ambiente de aparente consenso em relação à utilidade da aprovação da utilidade da expropriação imediata para abrir caminho à construção da Praça da Mouraria e da mesquita. Pelo menos, esse foi a posição de dois dos mais importantes eleitos daquele partido – Vítor Gonçalves, líder a bancada, e Margarida Saavedra -, que acabaram por se abster na votação do documento juntamente com outros três colegas social-democratas, tendo os restante deputados laranjas votado a favor. E ambos, ex-vereadores, justificaram tal posição com dúvidas de cariz urbanístico.
Vítor Gonçalves disse que os deputados da 3ª comissão da AML, que acompanha os temas de urbanismo, “desconhecem o projecto urbanístico em causa”, pelo que não se poderiam pronunciar, favoravelmente ou o seu contrário, sobre o mesmo. Uma posição que foi, momentos mais tarde, reforçada pela declarações de Margarida Saavedra. “É totalmente inadmissível que se esteja a querer transformar numa questão religiosa aquilo que é uma questão urbanística. Enquanto não soubermos do que se trata o projecto não o votaremos. Na ignorância, não votamos, nunca o faremos”, afirmou a eleita do PSD, que se envolveu numa acesa troca de argumentos com o presidente da câmara, Fernando Medina.
O autarca, que já antes assumira que a construção da mesquita “é, inequivocamente, uma afirmação política de quem não se deixa levar pelo populismo e pelo medo”, contestou fortemente aqueles que põem dúvidas à edificação do templo. Medina começou por visar as dúvidas levantadas tanto por Vítor Gonçalves como pelo eleito do MPT Vasco Miguel Santos, que faziam lembrar a aparente contradição entre a laicidade do Estado português e o facto de a CML estar a abrir os cordões à bolsa para pagar um templo. O presidente da câmara lembrou o plenário que “se há coisa que distingue o estado laico é não descriminar nem beneficiar nenhuma fé religiosa”, acarinhando as diferenças. E elencou diversos exemplos de ajudas dadas pela autarquia, ao longo das últimas três décadas, a diferentes confissões, como os ismailis, os judeus, os hindus ou os católicos.
Como resposta, Margarida Saavedra voltou a sublinhar que as suas objecções são de cariz urbanístico e não outro. E elencou três. Fazendo referência à necessidade de os carros de bombeiros terem de passar no arruamento a surgir desnivelado sob a mesquita, disse que tal obrigaria a uma subida da cércea do edifício para uma altura total de “20 a 25 metros”. O que poderá causar uma desconformidade urbanística, face ao autorizado na zona. A eleita social democrata disse ainda que não estavam estudadas as condições de iluminação natural da futura Praça da Mouraria, que iria estar virada para Norte. E culminou a criticar o que considerou ser uma incógnita em relação à segurança dos acessos à mesquita. “Não estou disposta a votar numa aberração urbanística”, disse.
Tal elenco de dúvidas irritou visivelmente Fernando Medina. “Toda a gente sabe que gosto do debate político, mas uma coisa é certa: gosto de fazê-lo com frontalidade”, disse o presidente da autarquia, acusando a deputada municipal de estar a “arranjar alegadas dúvidas urbanísticas sobre o projecto, para não assumir verdadeiramente as razões porque votam contra a proposta”. Medina estava mesmo chateado e lembrou a Margarida Saavedra que ela e os restantes deputados não dispõem de competências para votar projectos urbanísticos. Tal fez com que Helena Roseta, presidente da AML, tivesse de atirar a Medina que se é verdade que a assembleia não tem poderes para o fazer, “tem certamente competências para fiscalizar a actuação da câmara”.

No meio do debate, Miguel Coelho (PS), o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, apelou a que fizesse uma sessão de esclarecimento junto da população da área sobre este projecto, quando o mesmo estivesse pronto. Mas também pediu ao executivo camarário que reunisse com os proprietários dos prédios que vão ser expropriados. “Eles disseram-me que não têm informação sobre o que se vai passar”. Entre eles está, como noticiou no início de Novembro O Corvo, António Barroso, dono do conjunto compreendido entre o 145 e o 151B da Rua do Benformoso (na foto), que se diz enganado pela câmara. Ficou a saber pelos jornais que iria ser expropriado por um valor que considera irrisório face ao dinheiro investido na recuperação dos imóveis que agora serão demolidos.

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