Lojas
antigas da nossa perdição
20.12.2015 às
17h000
ANA SOROMENHO
ISABEL PAULO
EXPRESSO online
Por amor à
tradição, há ainda empresários da nossa praça orgulhosos do seu
passado presente
Sejam luvas, grãos
de café ou bombons a peso, fatinhos de bebé tricotados à mão,
chapéus feitos à medida, livros ou botões de madrepérola, as
lojas centenárias — como agora chamam a estas lojas tão
especiais, cujo negócio pertence à mesma família há várias
gerações — têm na sua singularidade uma coisa em comum. São
sobreviventes do arraso que o comércio tradicional sofreu nas
últimas décadas, tornando-se pequenas ilhas, cada vez mais
isoladas, nas ruas da cidade. Quando as cruzamos, somos convidados a
entrar para, por breves momentos, sermos transportados na nostalgia
de um tempo em que a vida citadina corria devagar e as pessoas
calcorreavam as ruas para adquirirem coisas precisas e únicas que
cada uma dessas lojas vendia. Ainda hoje é assim. Umas boas luvas de
cabedal ou de pelica, por exemplo, de cores suaves ou extravagantes,
manufaturadas com cuidado e que se adaptam a cada dedo da nossa mão
como se fossem pele, onde encontrá-las senão na Luvaria Ulisses, a
lojinha minúscula que ocupa 4 m2 no número 87 da Rua do Carmo?
Abriu porta em 1925, desde então, manteve um estilo de fabrico
artesanal de qualidade irrepreensível e o mesmo toque na atenção
aos pormenores. Um deles são os arranjos gratuitos que fazem sem
prazo de expiração. Outro, é a prova de calçar a luva, com o
cotovelo pousado na almofada rija, e as ferramentas utilizadas a
preceito, para que sejam ajustadas à medida da nossa mão. Um mimo.
Em matéria de
confeção artesanal e rigor, outra loja que merece visita é a
Chapelaria Azevedo, ao Rossio, a praça de excelência dos
chapeleiros de Lisboa no final do XIX. Dessa memória já só nos
resta a Azevedo, inaugurada em 1886 pela mão de Manuel de Azevedo
Rua. Há cinco gerações que pertence a esta família, que a
conserva tal como o era na sua época de ouro, quando ninguém podia
andar na rua sem cobrir a cabeça. Ainda exibe os mesmos balcões em
madeira e os armários de vidro, com grande variedade de chapéus de
feltro e bonés de caxemira e em tweed, como pede a estação. No
verão, são os panamás e as palhinhas que dominam a chapelaria,
onde também se encontram bengalas e chapéus de festa para senhoras
e cavalheiros.
Na rota dos tecidos
e das manufaturas, vale a pena dar um salto à Avenida da República
e espreitar a Casa Xangai, mesmo ao lado da Versailles. São os
únicos estabelecimentos sobreviventes dos sublimes anos 20,
sistematicamente destruídos nesta artéria da cidade. A Casa Xangai
abriu portas em 1931 como alfaiataria de sedas e algodões da China e
só em 1953 foi adquirida por Caetano Soares da Fonseca. Desde então,
conserva-se na família. Do projeto inicial manteve-se o interior da
loja e as fabulosas montras art déco assinadas pelo arquiteto Norte
Júnior, mas mudou-se-lhe a vocação. De alfaiataria passou a loja
dedicada a artigos para recém-nascidos devido à sua localização
mesmo em frente à antiga maternidade Pro-Mater. Hoje, que escasseiam
as bordadeiras, aqui ainda se fazem enxovais completos bordados à
mão, de linho e piquet, irrepreensíveis, com cueiros e casacos
tricotados em lã e os sapatinhos de festa. Um encanto.
PARADAS NO TEMPO
Mudando de agulhas e
voltando à Baixa, vale a pena espreitar as velhas retrosarias, das
poucas que ainda sobram na freguesia de São Nicolau. Na Rua da
Conceição, os reis da festa ainda são os botões de mil
variedades, os fios de lã, as linhas coloridas ou as fitas para
debruar com motivos fantásticos. Tudo apresentado em gavetas, caixas
e caixinhas, ou num escaparate que é um regalo para os olhos.
Destacamos a Adriano Coelho, por ser a mais antiga, contando, esta
sim, mais de cem anos.
Também património
municipal, a Manteigaria Silva exige visita obrigatória. Mercearia
fina dedicada aos produtos nacionais, tal como o nome indica, começou
por vender manteiga e laticínios a peso, como tantas no seu tempo.
Foi um matadouro, ainda no final do século XIX, depois um talho,
passando a manteigaria, já em meados do século XX. A casa conserva
a traça original e nas paredes tem penduradas fotografias a preto e
branco que nos mostram como era. Não precisava. Mal se põe o pé na
porta, é um mundo de cheiros e de ambientes que nos transporta para
uma Lisboa antiga, onde o preço do bacalhau era acertado em balança
de pesos e cortado em balcão de pedra lioz. Sem precisarem de
carimbos gourmet para validar a qualidade dos produtos — dos
azeites aos enchidos, dos vinhos e dos queijos à fruta fresca da
estação ou aos frutos secos em grande variedade — aqui tudo
apetece, tudo nos faz salivar. Incontornável, continua a ser a Casa
Pereira, que já foi uma das confeitaria de luxo do Chiado e que
desde 1933 se dedica à venda de chás, cafés, biscoitos e
chocolataria fina, assim como os acessórios que lhe competem, como
os bules e as louças de porcelana, ou as máquinas de vidro para
fazer café em água aquecida com lamparina de álcool. Tudo se
vende, avulso ou a peso e tem um selo de garantia de qualidade. Mas o
melhor continua a ser o café, puro ou de mistura, podendo cada
cliente compor o seu lote, moído na hora, deixando no ar o seu
inconfundível aroma tropical.
COMÉRCIO JUSTO
Na Baixa da Invicta,
alheios à voragem do tempo, são ainda alguns os comerciantes que
não medem a atividade só pela força do lucro. É o caso da Pérola
do Bolhão, a joia da coroa das mercearias tradicionais da cidade.
Fundada em 1917 por António Reis, é gerida até hoje pelo filho
homónimo e pelo neto, amigos do comércio justo e devotos de
produtos nacionais. Por detrás da fachada Arte Nova, com azulejos
ilustrativos da rota das especiarias, no princípio o grosso das
vendas eram o chá e o café, moído na hora. Até hoje, dos frutos
secos aos cristalizados, do bacalhau ao leitão, tudo é pesado sob o
olhar da fiel clientela. O último dos ilustres a fixar para a
posteridade a inspiradora casa dos Reis foi Mario Testino, que
escolheu o Porto como cenário de moda para a “Vogue”
norte-americana, de dezembro. A dois passos, na comercial Santa
Catarina, o Majestic Café, imóvel de interesse público, caminha a
passos largos para os 100 anos de vida. Quando abriu, a 17 de
dezembro de 1927, chamava-se Élite para vincar o seu estilo
aristocrático. Da autoria de João Queirós, o seu salão de chá de
lanches perfeitos, famoso pelas rabanadas, continua a encantar
turistas e locais, com os seus espelhos e dourados, colunas e
capitéis, sofás de couro e elegante jardim de inverno. Após anos
de decadência, o Majestic mudou de mãos nos anos 80, para a família
Barrías, que devolveu ao edifício, outrora frequentado por Teixeira
de Pascoaes ou Leonardo Coimbra, o seu antigo esplendor. Já a chegar
aos Clérigos, inaugurada em janeiro de 1906 por José Manuel de
Sousa Lello, impõe-se pelo estilo neogótico a Livraria Lello &
Irmão, a catedral do livro no olhar e nas palavras de Manoel de
Oliveira e Agustina. Património Nacional, distinguida
internacionalmente como “uma pérola de arte nova”, há muito
quem diga que é a mais bonita livraria do mundo. Desde que a saga
Harry Potter celebrizou a sua singular escadaria, a Lello regista, em
média, cinco mil visitantes por dia, o que levou a histórica
livraria, que alberga mais de 60 mil obras, a cobrar €3 de entrada
dedutível em livros, para ajudar a pagar a pegada turística.
MÁRIO JOÃO
ambém património
municipal, a Manteigaria Silva exige visita obrigatória. Mercearia
fina dedicada aos produtos nacionais, tal como o nome indica, começou
por vender manteiga e laticínios a peso, como tantas no seu tempo.
Foi um matadouro, ainda no final do século XIX, depois um talho,
passando a manteigaria, já em meados do século XX. A casa conserva
a traça original e nas paredes tem penduradas fotografias a preto e
branco que nos mostram como era. Não precisava. Mal se põe o pé na
porta, é um mundo de cheiros e de ambientes que nos transporta para
uma Lisboa antiga, onde o preço do bacalhau era acertado em balança
de pesos e cortado em balcão de pedra lioz. Sem precisarem de
carimbos gourmet para validar a qualidade dos produtos — dos
azeites aos enchidos, dos vinhos e dos queijos à fruta fresca da
estação ou aos frutos secos em grande variedade — aqui tudo
apetece, tudo nos faz salivar. Incontornável, continua a ser a Casa
Pereira, que já foi uma das confeitaria de luxo do Chiado e que
desde 1933 se dedica à venda de chás, cafés, biscoitos e
chocolataria fina, assim como os acessórios que lhe competem, como
os bules e as louças de porcelana, ou as máquinas de vidro para
fazer café em água aquecida com lamparina de álcool. Tudo se
vende, avulso ou a peso e tem um selo de garantia de qualidade. Mas o
melhor continua a ser o café, puro ou de mistura, podendo cada
cliente compor o seu lote, moído na hora, deixando no ar o seu
inconfundível aroma tropical.
COMÉRCIO JUSTO
Na Baixa da Invicta,
alheios à voragem do tempo, são ainda alguns os comerciantes que
não medem a atividade só pela força do lucro. É o caso da Pérola
do Bolhão, a joia da coroa das mercearias tradicionais da cidade.
Fundada em 1917 por António Reis, é gerida até hoje pelo filho
homónimo e pelo neto, amigos do comércio justo e devotos de
produtos nacionais. Por detrás da fachada Arte Nova, com azulejos
ilustrativos da rota das especiarias, no princípio o grosso das
vendas eram o chá e o café, moído na hora. Até hoje, dos frutos
secos aos cristalizados, do bacalhau ao leitão, tudo é pesado sob o
olhar da fiel clientela. O último dos ilustres a fixar para a
posteridade a inspiradora casa dos Reis foi Mario Testino, que
escolheu o Porto como cenário de moda para a “Vogue”
norte-americana, de dezembro. A dois passos, na comercial Santa
Catarina, o Majestic Café, imóvel de interesse público, caminha a
passos largos para os 100 anos de vida. Quando abriu, a 17 de
dezembro de 1927, chamava-se Élite para vincar o seu estilo
aristocrático. Da autoria de João Queirós, o seu salão de chá de
lanches perfeitos, famoso pelas rabanadas, continua a encantar
turistas e locais, com os seus espelhos e dourados, colunas e
capitéis, sofás de couro e elegante jardim de inverno. Após anos
de decadência, o Majestic mudou de mãos nos anos 80, para a família
Barrías, que devolveu ao edifício, outrora frequentado por Teixeira
de Pascoaes ou Leonardo Coimbra, o seu antigo esplendor. Já a chegar
aos Clérigos, inaugurada em janeiro de 1906 por José Manuel de
Sousa Lello, impõe-se pelo estilo neogótico a Livraria Lello &
Irmão, a catedral do livro no olhar e nas palavras de Manoel de
Oliveira e Agustina. Património Nacional, distinguida
internacionalmente como “uma pérola de arte nova”, há muito
quem diga que é a mais bonita livraria do mundo. Desde que a saga
Harry Potter celebrizou a sua singular escadaria, a Lello regista, em
média, cinco mil visitantes por dia, o que levou a histórica
livraria, que alberga mais de 60 mil obras, a cobrar €3 de entrada
dedutível em livros, para ajudar a pagar a pegada turística.
Luvaria Ulisses
Rua do Carmo, 87.
Tel. 213 420 295
Casa Xangai
Avenida da
República, 19. Tel. 213 540 857
Chapelaria Azevedo
Praça Dom Pedro IV,
72. Tel. 213 470 817
Retrosaria Adriano
Rua da Conceição,
121-123. Tel. 213 426 818
Manteigaria Silva
Rua Dom Antão de
Almada, 1. Tel. 213 424 905
Casa Pereira da
Conceição
Rua Garrett, 38.
Tel. 213 426 694
Mercearia Pérola do
Bolhão
Rua Formosa, 279,
Porto. Tel. 222 004 009
Majestic Café
Rua de Santa
Catarina, 112, Porto. Tel. 222 003 887
Livraria Lello &
Irmão
Rua das Carmelitas,
144, Porto. Tel. 222 002 037
Sem comentários:
Enviar um comentário