Cameron
ainda vai conseguir devolver o génio à garrafa?
TERESA DE SOUSA
20/12/2015 - PÚBLICO
Para
Cameron, uma saída da UE seria um duplo desastre, arriscando-se a
ficar na História como o líder britânico que acabou com a
Grã-Bretanha.
1. Não foi uma
cimeira particularmente produtiva em termos de resultados, a que se
realizou no final da semana em Bruxelas. O tema dos refugiados estava
em cima da mesa com a urgência que a realidade impõe no curto e no
médio prazo. A ideia de que a melhor maneira de salvar Schengen é o
reforço das fronteiras externas da União, através de uma força
própria e europeia, ganha terreno mas ainda suscita alguma oposição.
Há países que ainda rejeitam esta forma de “interferência”.
Também continua a ser difícil que toda a gente aceite o critério
das quotas, mesmo que, na prática, o que a chanceler alemã pretende
seja mais do domínio do simbólico (para acalmar as criticas
internas) do que do concreto. Houve certamente uma boa discussão
mas, como é costume no modo de funcionamento da União, as duas
questões foram adiadas para uma cimeira em Junho do próximo ano. É
um adiamento com riscos porque, mesmo que o Inverno retenha os
refugiados longe das fronteiras europeias ou a Turquia mantenha no
seu território muitos dos que chegam por essa via (a Europa paga-lhe
para isso, financeira e politicamente), ninguém garante que, com
melhor tempo, a vaga de refugiados não volte a aumentar. Há agora
uma pequena luz de esperança para pôr termo à guerra na Síria,
acesa no Conselho de Segurança da ONU que adoptou por unanimidade
(coisa rara) o plano de paz que os EUA e a Europa querem pôr
rapidamente em marcha. Mas o maior problema é que a questão dos
imigrantes (refugiados ou não) está a alimentar os partidos
populistas e de extrema-direita um pouco por toda a Europa,
transformando-se numa questão política central que não pode ficar
sem resposta, se quer travar o contágio. O comportamento da
Dinamarca é revelador da loucura política dos que querem rivalizar
com os partidos xenófobos. Na semana passada, a ideia de ficar com
as jóias e o dinheiro dos refugiados para ajudar a financiar a sua
instalação causou arrepios. Sobretudo num país que ficou na
história da II Guerra como um dos que mais judeus ajudaram a fugir.
2. E isto conduz-nos
ao segundo grande tema da cimeira, aliás, um verdadeiro exemplo do
risco de contaminação dos extremos na agenda dos governos europeus.
Durante 45 minutos David Cameron expôs o seu caso e as medidas que
quer negociar com Bruxelas, iniciando uma discussão que durou quatro
horas. Depois do debate, o primeiro-ministro britânico anunciou o
início de um caminho que poderia levar a bom porto. Os seus pares
não o contrariaram e o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk,
referiu também que tinha sido uma boa discussão. Ninguém quer o
Reino Unido fora da Europa, a começar por Cameron, que precisa de
retomar o controlo de uma aposta política que visava neutralizar os
eurocépticos do seu partido e retirar algum terreno ao UKIP de
Farage, mas que parece estar a ter o efeito contrário. A grande
maioria dos países europeus prefere ter o Reino Unido dentro, na sua
tradicional posição de “parceiro relutante”. E não se trata
apenas do que significaria a saída de um país que é a segunda
economia europeia e que ainda tem um poder militar (e nuclear) que
apenas pode rivalizar com a França. Mas não é só isto.
Politicamente, uma Europa sem o Reino Unido ficaria coxa, mais
“continental” e menos atlântica, desequilibrando a balança em
desfavor dos países que têm uma tradição euro-atlântica (da
Holanda a Portugal). Angela Merkel precisa dele para apoiar a sua
ortodoxia financeira e a negociação de um vasto acordo de comércio
e investimento que abranja as duas margens do Atlântico (o chamado
TTIP), equilibrando a posição mais renitente da França. E a
França, para além da retórica gaulista da “pérfida Albion”
descrita como um cavalo de Tróia dos americanos e do liberalismo
anglo-saxónico, precisa dele para equilibrar a sua relação com a
Alemanha nas questões da segurança e da defesa. Não foi por acaso
que os dois países lideraram a intervenção na Líbia.
3. Tudo isto é
sabido e indica que a União vai tentar dar a Cameron o que ele
precisa para tirar argumentos aos que querem abandonar a Europa, que
representam hoje metade do eleitorado. Cameron quer reformas que
outros também querem, devolvendo poderes aos Estados-membros e
simplificando o funcionamento da União (o governo holandês, por
exemplo, defende mais ou menos a mesma coisa). E quer, absolutamente,
preservar City de Londres de qualquer decisão da zona euro que a
possa prejudicar. Mas o problema maior, do ponto de vista europeu, é
que quer retirar aos imigrantes vindos da União Europeia as
garantias que hoje têm, graças à liberdade de circulação e à
não discriminação. O líder britânico quer aplicar-lhes regras
discriminatórias que a lei europeia não permite, nomeadamente
impedi-los do acesso à segurança social durante os primeiros quatro
anos de permanência.
A questão dos
imigrantes europeus apenas se colocou no Reino Unido a partir de
2004, com a adesão de 10 países do Centro e do Leste da Europa.
Nessa altura, foram muitos os que rumaram ao Reino Unido,
nomeadamente polacos, criando alguma animosidade mas fazendo muito
trabalho, e que hoje começam a regressar à Polónia. Agora, os
ingleses temem a “invasão” dos romenos ou dos búlgaros, que
ainda não se revelou catastrófica. Um estudo recente de dois
professores de Oxford, publicado no Guardian, estabelece uma ligação
perigosa entre a rejeição dos imigrantes e a rejeição da Europa.
Ou seja, quando sobe a rejeição aos imigrantes, sobe na mesma
proporção o não à Europa. Desligar esta ligação não será
fácil.
Para Cameron a
questão é mais simbólica do que real. É verdade que as condições
oferecidas pelo Reino Unido aos imigrantes europeus eram (já houve
alterações) das mais generosas da Europa. Também é verdade que a
entrada de imigrantes no país não tem parado de aumentar, graças
também aos efeitos das políticas de austeridade em alguns países
europeus, mais afectados pela crise. Mas o desemprego britânico tem
vindo a baixar acentuadamente, diminuindo a pressão sobre os
alegados postos de trabalho que os imigrantes roubariam. As
comunidades islâmicas já lá vivem há muito. Se os imigrantes
trabalharem não estão a pesar na segurança social.
4. David Cameron
adoptou uma estratégia que lhe pode sair cara. Terá ido longe
demais na sua retórica, deixando que a imigração dominasse a
opinião dos britânicos sobre a Europa. Deixou sair o génio da
garrafa e agora arrisca-se a não conseguir metê-lo de novo lá
dentro. Para ele, uma saída seria um duplo desastre, arriscando-se a
ficar na História como o líder britânico que acabou com a
Grã-Bretanha. A Escócia não perderia a oportunidade de um segundo
referendo para poder manter-se na Europa. O Reino Unido da
Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte passaria a ser da Inglaterra, do
País de Gales e da Irlanda do Norte, pelo menos até ver. Além
disso, num mundo de gigantes que voltou a ser multipolar, é difícil
manter a influência quando se está sozinho. Chris Patten, numa
entrevista recente, resumiu a questão numa só frase: “Não
conheço na História moderna, nenhum país que tenha decidido passar
da primeira divisão para a segunda.” O risco é que, sejam quais
forem as concessões obtidas, Cameron pode ter de enfrentar um estado
de espírito dos britânicos que, como mostram as sondagens, não
estão propriamente nos seus melhores dias. E há ainda outro risco
importante ainda que pouco valorizado: no estado em que a Europa se
encontra, essa saída alimentaria quase de certeza as tendências
centrífugas de outros países europeus.
Sem comentários:
Enviar um comentário