ENTREVISTA
“O
primeiro partido da França tornou-se um embaraço à esquerda como à
direita”
“ Se
não dermos respostas no curto prazo, a questão migratória vai
envenenar a vida política e não apenas em França. Toda a política
europeia vai ser afectada e as coisas podem tomar uma proporção
incontrolável, com toda a gente a pedir opt-outs, e não apenas os
britânicos. A Europa começará então a desintegrar-se.”
TERESA DE SOUSA
13/12/2015 – 07:15 PÚBLICO
Jacques Rupnik, que
estudou profundamente os nacionalismos e os populismos na Europa de
Leste, olha agora para a realidade francesa como um alerta muito
sério sobre o futuro da Europa.
A Europa está
suspensa do que vai acontecer hoje na segunda volta das eleições
regionais francesas. Na primeira, a Frente Nacional ganhou o estatuto
de “primeiro partido de França”. A segunda será um indicador
importante para o que pode acontecer nas presidenciais de 2017.
Jacques Rupnik, professor em Sciences Po, Paris, que estudou
profundamente os nacionalismos e os populismos na Europa de Leste,
olha agora para a realidade francesa como um alerta muito sério
sobre o futuro da Europa, e que vai mudar a paisagem política de
França. A questão dos refugiados e a incapacidade europeia para
lidar com ela está na raiz do que aconteceu em França, mas também
em muitos outros países europeus. A excepção é a Alemanha, que
devia pensar europeu e não apenas alemão.
A primeira volta das
eleições em França serve para medir os partidos a nível nacional.
Marine Le Pen pode reclamar-se de liderar o primeiro partido de
França? Ou as coisas não são bem assim?
Pode dizê-lo. Em
valores absolutos, teve 28 por cento dos votos, ou seja, um por cento
mais do que a direita moderada. Mas, apesar disso, é preciso não
esquecer que é uma eleição particular, regional, em que muitos
eleitores ou não lhe dão grande importância (metade dos eleitores
absteve-se), ou consideram que é possível um voto de contestação,
o que provavelmente não fariam numa eleição presidencial. Mas isso
não nos deve impedir de perceber que se trata de um aviso, que já
sentíamos chegar em eleições anteriores, municipais e europeias. É
um aviso que obriga toda agente, sobretudo os dois grandes partidos
estabelecidos, a posicionar-se relativamente a esta nova situação e
adaptar a sua estratégia. É esse o grande dilema, não apenas para
a segunda volta [das regionais], mas para o tempo que aí vem e que
nos vai levar a 2017 e às eleições presidenciais e legislativas. O
score de Marine Le Pen nestas eleições já é entendido como uma
espécie de primeira etapa para as eleições seguintes, o que vai,
aliás, influenciar o voto na segunda volta. Já não chega dizer que
são eleições secundárias, porque a segunda volta já é vista
como o prelúdio das eleições futuras.
A vitória da FN
quer dizer que Le Pen foi quem beneficiou mais com o terrorismo e com
os refugiados?
Essa é a questão
fundamental. O contexto em que decorrem estas eleições é marcado
por tendências a mais longo prazo, mas também por aquilo que
aconteceu este ano: uma vaga migratória na Europa sem precedentes e
os atentados terroristas de 13 de Novembro, em Paris. Basta olhar
diariamente para os jornais televisivos, com uma multidão imensa a
dirigir-se para as fronteiras da Europa, para que as pessoas se
lembrem de que é esse o pesadelo que a Frente Nacional anuncia há
muito tempo na sua propaganda. A imigração como invasão. Há
naturalmente diferentes tipos de imagens. Há as que suscitam a
compaixão, como a criança na praia, e há as que suscitam outras
emoções e, em primeiro lugar, o medo. A Frente Nacional nem
precisou de fazer propaganda, limitou-se a dizer: “Nós avisamos”.
E, para ela, quem é responsável por tudo isto? É a Europa, porque
abolimos as fronteiras entre nós, e agora Angela Merkel decidiu que
mesmo a fronteira exterior da Europa deixou de existir. Os gregos,
primeiro, e depois a chanceler decidiram abolir Schengen e abolir
também Dublin [a política de asilo da UE]. Estamos, portanto, na
política da emoção, na política do medo, que apenas pode
beneficiar a Frente Nacional. Além disso, o que estava já a
acontecer em Agosto e Setembro foi dramatizado pelos atentados de
Paris e a descoberta de que dois dos seus autores tinham vindo
através da vaga de imigrantes. Vimos agora que que o principal
organizador dos atentados foi buscá-los a Budapeste de carro e que
fez a viagem duas vezes. Isso alimenta a relação estabelecida pela
Frente Nacional: imigração igual a insegurança que, por sua vez,
pode levar ao terrorismo. E o que é responsável por tudo isto? A
abolição das fronteiras. E quem é responsável pela abolição das
fronteiras? Os dois grandes partidos, com as suas elites europeístas
do centro-direita e do centro-esquerda que fazem parte do sistema
europeu, sendo portanto a Europa a principal responsável.
Mas isso também
quer dizer que os grandes partidos do sistema não conseguiram
contrariar esse discurso, porque não têm resposta para as pessoas.
Isso também é
claro. É o outro grande tema utilizado pela Frente Nacional e que
explica, em parte, os resultados destas eleições. O que ela diz é
que os dois partidos atacam-se um ao outro mas jogam os ambos o mesmo
jogo: a mesma política, determinada pela União Europeia, pelos
mercados internacionais, pela Banca e pela Alemanha. Daí o slogan
UMPS [a União do Movimento Popular, hoje Os Republicanos, mais o
Partido Socialista]. Para muita gente é um discurso que faz sentido,
porque vêem a França mergulhar na crise, sobretudo com um elevado
desemprego, e não vêem qualquer diferença nos resultados. Os
governos mudam mas os problemas económicos e sociais são os mesmos.
Outros países da Europa conseguiram recuperar melhor, por exemplo, a
Espanha ou a Grã-Bretanha, enquanto nós continuamos com um
desemprego muito elevado, que aumentou em 700 mil no governo de
François Hollande. Há aqui muito descontentamento e muita decepção
do eleitorado popular, que permite à FN ser o maior partido da
França porque se tornou no maior partido operário de França. O PS
é visto como um partido de funcionários públicos, de professores,
que representam uma clientela política muito diferente. O PS tem-se
mostrado incapaz de resolver a questão social, preferindo as
questões societais: o modo de vida, uma visão mais liberal do
casamento entre homossexuais, o aborto, a igualdade de género, a
defesa do voto dos imigrantes e coisas assim, mas que se dirigem
apenas a um eleitorado de classe média, sem conseguir suscitar o
menor interesse no eleitorado popular. Não foi por acaso que Marine
Le Pen escolheu candidatar-se no Norte, uma velha região industrial,
e a sua sobrinha [Marion Maréchal-Le Pen] se candidatou no Sul, a
região em que a hostilidade aos imigrantes de origem árabe é mais
forte.
Os Republicanos de
Sarkozy também tiveram um mau resultado, que está a criar divisões
profundas. Há o risco de se partirem?
Sim. Eles vão
dividir-se com este resultado que os coloca um ponto abaixo da FN. É
já o prelúdio da batalha para as presidenciais e, em primeiro
lugar, para as primárias. Os adversários de Sarkozy, sobretudo [o
seu antigo primeiro-ministro] François Fillon e Alain Juppé [antigo
primeiro-ministro de Chirac] vieram logo a público mostrar as suas
diferenças, dando a entender que é a liderança de Sarkozy que
justifica os maus resultados. Eles pensam já na eleição
presidencial e no desafio da segunda volta. É fácil de compreender
que, se chegarmos a uma segunda volta com Marine Le Pen – um
cenário muito, muito provável –, não é indiferente saber quem
terá ela pela frente. E como a esquerda está bastante mal, é
provável que seja um candidato da direita. É aí que passa a ser
importante saber qual. Os eleitores de esquerda aceitariam melhor um
candidato moderado, como Alain Juppé, do que Sarkozy, que é uma
espécie de “bête noir” da esquerda. É tão adorado pelos
militantes do partido, como é detestado pelo eleitorado moderado.
Pode ganhar as primárias se, por exemplo, elas não juntarem mais do
que 70 ou 80 mil participantes. Mas, se mobilizarem meio milhão de
pessoas, então Juppé terá mais chances.
Sarkozy vai manter a
sua estratégia de 2007, que é roubar eleitorado à FN com um
discurso radical. O PS, com Manuel Valls, tenta integrar na sua
agenda política as questões que a FN levanta. Vai haver mudanças
na cena política?
Creio que a entrada
em cena da FN muda a paisagem política. Tínhamos um jogo político
com dois actores principais e com um escrutínio maioritário a duas
voltas que reforça a bipolarização. A escolha era simples. Agora,
a chegada do terceiro actor, com a possibilidade de Marine Le Pen se
manter na segunda volta [das presidenciais] em quase todos as
cenários, o jogo passou a ser triangular. A questão é saber a quem
aproveita o crime. Em termos gerais, na esquerda há ideia de que a
FN realiza duas funções. Um realinhamento identitário, quando já
não há programas económicos distintos ou grandes visões do
futuro, restando apenas o antifascismo. Mas há também a ideia de
que uma FN a crescer rouba votos principalmente à direita e que, por
isso mesmo, a FN seria hoje para a direita o que o Partido Comunista
foi noutros tempos, nos anos 50 e 60, para a esquerda. O PCF tinha
uma votação importante e isso impedia o centro-esquerda de ganhar
eleições. Creio que Mitterrand foi o primeiro a experimentar esta
lógica, dando espaço à FN para enfraquecer a direita, ao instaurar
o voto proporcional em 1986.
Mas corrigiu o tiro
rapidamente.
É verdade, mas
permitiu pela primeira vez à Frente Nacional emergir politicamente.
Foi um erro moral e político. Voltamos à mesma questão: a quem
favorece o crime? É o debate que estamos a ter hoje sobre as
desistências e a necessidade de criar ou não uma frente republicana
contra a Frente Nacional. O PS escolheu a desistência em três
regiões, mas não em todas. É uma resposta ambígua. Sarkozy
prefere o “nem, nem“, recusando as desistências com dois
argumentos. Primeiro, não se pode diabolizar a FN nem, muito menos,
os seus eleitores: declarar a unidade nacional face à iminência do
fascismo seria uma forma de diabolizar o eleitorado que poderia
radicalizar-se ainda mais. Ou seja, a diabolização acabou. Em
segundo lugar, se a FN diz que o PS e os Republicanos são a mesma
coisa, então fazer uma frente unidade contra a FN seria a
demonstração desta tese e, provavelmente, não impediria a FN de
ganhar, alimentando ainda mais o discurso populista do “povo contra
as elites” que são “todas iguais”, que confiscam o poder,
rejeitando o maior partido da França. A questão seria diferente se
se tratasse das presidenciais. É este o estado do debate. O primeiro
partido de França tornou-se um embaraço à esquerda como à
direita.
À esquerda qual é
a argumentação?
Curiosamente,
Sarkozy é visto como o adversário ideal para François Hollande. Se
Sarkozy for o candidato da direita e se se mantiver o nível de
eleitores moderados alérgicos ao anterior Presidente, mais o
terrorismo e a crise internacional que permitiu a Hollande
desempenhar o papel de líder, mascarando as suas fraquezas, então
poderia sonhar com o milagre de conseguir chegar à segunda volta
para enfrentar Marine Le Pen, contando com o eleitorado moderado. Com
Juppé seria muito mais difícil.
Para a Europa o
resultado da FN foi um choque, até porque, sem a França, não há
Europa e o populismo está a alastrar por toda a parte. Isso quer
dizer que a Europa deixou de ter capacidade para responder aos
problemas dos europeus?
A Europa está numa
encruzilhada. É ameaçada pelo crescimento do populismo e do
nacionalismo. Se fosse o problema de um só país, poderíamos dizer
que era lamentável mas não seria grave. Mas hoje o fenómeno
atravessa toda a Europa. Há partidos populistas e nacionalista que
já estão no governo, como é o caso da Hungria e, agora, da
Polónia. Na Suécia, por exemplo, uma sondagem recente atribui o
primeiro lugar a um partido de extrema-direita, justamente na
sequência da entrada maciça de refugiados. Um referendo
dinamarquês, há quinze dias, rejeitou mais integração europeia,
nomeadamente em matéria de Justiça e Assuntos Internos. É uma
realidade que hoje observamos em quase toda a parte, mesmo que menos
no Sul. Em Espanha ou na Grécia há partidos que podemos qualificar
de populismo de esquerda, que contestam a política económica
europeia.
Mas não ainda na
Alemanha.
Sim. Na Alemanha não
há nada disto. E a Alemanha, com todo o seu poder, tornou-se ao
mesmo tempo uma excepção. O problema é que Merkel não levou isto
em conta, ao tomar algumas decisões. A Alemanha está em acelerado
declínio demográfico, com as previsões a dizerem que, se tudo
continuar na mesma, em 20 anos a população alemã seria inferior ou
igual à da França. Tem uma economia que funciona bem, virada para
as exportações, com uma enorme necessidade de mão-de-obra. Basta
constatar que os principais apoiantes da abertura à imigração não
são apenas as ONG, são também os patrões, que já quantificaram
essas necessidades para os próximos tempos: cerca de 250 mil por
ano. Finalmente, a Alemanha é governada por uma “grande coligação”
entre os dois maiores partidos e, mesmo assim, não há o equivalente
da FN. O Pegida é um epifenómeno do Leste e a Alternativa para a
Alemanha continua com uma fraca implantação. A Alemanha está numa
situação excepcional, que não se pode comparar com muitos outros
países da União Europeia. Em alguns aspectos, até pode ser uma
excepção louvável, só que isso depende do ponto de vista. É
detestada na Europa de Leste, por exemplo, que a responsabilizam pela
vaga de refugiados que os atingiu e que quer agora impor quotas. O
problema é que a Alemanha, com as suas excepções, devia pensar
europeu quando toma as suas decisões. Mas a chanceler pensa que é
europeia porque é forte.
Mas hoje, a
chanceler também está a ser contestada internamente.
A Alemanha espera
que, até ao final do ano, o número de refugiados atinja um milhão
de pessoas. Sim, a sua demografia precisa; sim, a economia precisa; e
sim, é um acto humanitário, mas que tem de ter limites. Para
concluir, a Europa precisa de encontra muito rapidamente uma solução
para as suas fronteiras e para o direito de asilo – Schengen e
Dublin. Não podemos fazer implodir Schengen e Dublin, como aconteceu
no Verão, sem os substituir por outra coisa. Quando falei do
fenómeno da FN como a política do medo, se nos dizem que não temos
fronteiras entre os nossos Estados e que não temos fronteiras
exteriores devidamente controladas, eu direi que é uma situação
muito perigosa.
Para a Europa e não
apenas para a França?
Durante cinquenta
anos, a Europa representou a paz, a segurança, a confiança. Era uma
espécie de garantia para todos. Hoje, para muitos cidadãos, por
mais que os desprezemos ou ignoremos ou lamentemos, ela suscita medo
e passou a representar uma forma de insegurança. É uma constatação
triste, para quem é europeísta. Precisamos de um Schengen II, de um
Dublin II para mostrar que estamos preparados para decidir e também
para termos os meios financeiros para que isto funcione. Se não
dermos respostas no curto prazo, a questão migratória vai envenenar
a vida política e não apenas em França. Toda a política europeia
vai ser afectada e as coisas podem tomar uma proporção
incontrolável, com toda a gente a pedir opt-outs, e não apenas os
britânicos. A Europa começará então a desintegrar-se.
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