Contrariando
alguns mitos sobre Quioto, Paris e Portugal
PEDRO MARTINS BARATA
18/12/2015 - PÚBLICO
O
acordo climático de Paris apenas pode enquadrar aquilo que vai ser
agora o foco da atenção: como concretizar as metas e como ir mais
longe.
O Acordo de Paris
marca uma nova etapa no confronto com a ameaça global das alterações
climáticas e comporta uma complexidade de temas, desde a mitigação
ao financiamento, passando pela adaptação ou as questões complexas
da gestão do risco de perdas e danos futuros. Um acordo com essa
abrangência é necessariamente difícil de negociar e difícil de
compreender. Sobre o acordo, assim como sobre o seu antecessor – o
Protocolo de Quioto – têm surgido algumas notícias/comentários
que importa contraditar, para uma melhor compreensão pública do seu
alcance. Seguem-se alguns dos comentários lidos/ouvidos.
1. Portugal só
cumpriu as metas do Protocolo de Quioto à custa de créditos de
projectos nos PALOP
A este comentário
só há uma forma de responder: Portugal nunca comprou créditos de
redução de emissões aos PALOP pela simples razão de que estes
países não tinham esses créditos para vender. Sei-o, porque estive
envolvido do lado do Governo português no programa de compra de
créditos, e porque, uma vez saído do Governo, assessorei alguns dos
projectos nos PALOP que se vieram a realizar. Na verdade, Portugal
cumpriu – e bem – as metas de Quioto por três efeitos: a queda
das emissões por via da crise financeira e económica que o país
vive; a queda acentuada da intensidade carbónica da nossa economia
por via do investimento em renováveis e eficiência energética, e a
contabilização do sequestro de emissões do nosso sector florestal.
Importa também desmistificar: a compra de créditos de redução de
emissões pelos governos foi uma resposta legítima às metas do
Protocolo de Quioto e, no caso de Portugal, mesmo não tendo sido
necessária, não implica uma má gestão da nossa posição de
cumprimento, muito pelo contrário.
2. O Acordo de Paris
não é vinculativo
A resposta a esta
afirmação é um pouco mais complexa, porque necessita de contexto.
O que se entende por “vinculativo”? Para um especialista de
direito internacional público um acordo juridicamente vinculativo é
o que vincula as partes a um conjunto de obrigações juridicamente
escrutináveis, ou seja, que possam ser objecto de processo jurídico
em caso de incumprimento. Nesse sentido, não há como enganar: o
acordo de Paris contém um sem-número de obrigações juridicamente
escrutináveis, mesmo em tribunais domésticos.
Já uma segunda
interpretação, fruto de desconhecimento de muitos sobre o
funcionamento das relações internacionais, é a de que o acordo
deve ter mecanismos punitivos, de sanção sobre as partes. Esses
mecanismos não existem senão em muito poucos acordos
internacionais, predominantemente na área comercial, e ainda menos
no caso de acordos internacionais de ambiente. Mesmo quando existem,
eles muito raramente são accionados, preferindo as partes os
mecanismos facilitativos em que as partes são levadas a cumprir, em
vez de mecanismos sancionatórios. Assim foi também com o Protocolo
de Quioto. A história demonstra que os mecanismos sancionatórios
não são mais eficazes do que os facilitativos. Bastaria a
experiência do Protocolo de Quioto para o infirmar.
Finalmente, e o mais
importante: argumenta-se que o Acordo de Paris peca porque os
objectivos de redução que as partes se autopropõem atingir (e que
estavam fixados antes de Paris) não fazem parte do pacote de
obrigações vinculativas e escrutináveis. Acontece que tal nunca
estaria em cima da mesa, porque implicaria a saída do Acordo de
Paris do segundo principal país emissor – Estados Unidos – e
consequentemente do primeiro – China. Os Estados Unidos, se
confrontados com um acordo desse tipo, dificilmente o assinariam e
ainda mais dificilmente o ratificariam. A experiência de 30 anos de
acordos internacionais de ambiente e zero ratificações por parte do
Congresso dos Estados Unidos deveria fazer reflectir os que pensam de
outra forma. A pretensão chinesa de paridade inviabilizaria também
a sua ratificação. Idem para a União Europeia. Sendo assim, a quem
beneficiaria um acordo que limitasse de alguma forma apenas metade
das emissões globais?
3. O acordo não
prescreve metas de redução nem trajectória global
Mais uma vez,
importa ler o acordo na sua totalidade. No último dia em Paris,
foram retiradas várias opções de texto que faziam menções a
limites quantificados de emissões para 2050 (reduções de 40-70%;
reduções de 80-95%)). Ficou inscrita em vez disso a meta de
descarbonização global líquida (ou seja, o balanço entre emissões
e remoções (por via das florestas ou sequestro geológico) de gases
com efeito de estufa na segunda metade do século. Ao que alguns
ambientalistas imediatamente alinharam por “emissões zero” só
em 2099, implicando que poderíamos continuar a aumentar as nossas
emissões sem limite até 2099 e em um ano então atingir a tal
“neutralidade de emissões”. Importa mais uma vez olhar para a
análise científica e para os outros artigos do acordo. De acordo
com os modelos que temos, a meta de 1,5ºC-2ºC preconizada no acordo
só é compatível com a descarbonização total da economia até aos
anos 60-70 deste século. É sempre possível em termos meramente
teóricos estabilizar num determinado valor de temperatura de longo
prazo, se apostarmos em emissões negativas mais tarde, ou seja, em
trajectórias em que, pelo aumento maior das emissões nas primeiras
décadas deste século, pagamos o preço em termos de sequestro
maciço no final do século. Há, contudo, variadíssimos problemas
com estes cenários, a começar pela incapacidade física de
sequestro das quantidades necessárias: simplesmente não temos
reservatórios possíveis, mesmo que tivéssemos a tecnologia!
Sendo assim, só há
uma forma razoável de ler as duas metas do acordo: a descarbonização
da economia – “emissões zero” na segunda metade do século –
e a meta de 1,5-2ºC implicam efectivamente emissões líquidas zero
algures na década de 60. Essa mensagem é talvez a mais forte do
Acordo de Paris, porque implica simultaneamente que a partir de hoje
– 2015 – os Estados não poderão mais apostar em investimentos
pesados com tempos de vida superiores a 20 anos nas tecnologias de
carvão ou petróleo. Curiosamente, os que perceberam essa mensagem
melhor foram os executivos das empresas multinacionais desses
sectores, que a interiorizaram mais rapidamente do que a maioria dos
ambientalistas.
4. O acordo é
insuficiente, porque as metas de curto prazo levam-nos a 3ºC e não
a 2º, muito menos a 1,5ºC
Esta é outra
afirmação que carece de contexto. É verdade que as contribuições
que as partes puseram na mesa, ainda antes de Paris, colocam o mundo
numa trajectória mais coincidente com 3ºC do que com 2ºC. O
primeiro ponto a ressaltar é que, na ausência destes compromissos a
que as partes se auto-vincularam, os mesmos modelos e os mesmos
cientistas apontavam para uma subida da temperatura na ordem dos
4,5ºC, o que indica que mesmo este primeiro esforço global de
exploração de oportunidades de redução demonstrou já um
potencial bastante forte. Dito isto, 3ºC é claramente insuficiente
quando no mesmo acordo se projecta o limite de 1,5ºC como desejável.
Mas afirmar que por isso mesmo o acordo é insuficiente é mais uma
vez tresler o acordo. Não era intenção em Paris que os
compromissos que de lá saíssem tivessem como objectivo garantir, em
2015, uma trajectória coincidente com 1,50C, mas garantir um
mecanismo que assegurasse o aumento progressivo da ambição. Esse
mecanismo está lá, e o que é mais interessante é que o mesmo faz
exactamente parte das obrigações vinculativas do acordo. As partes
vinculam-se juridicamente a ir mais longe na sua ambição individual
nas próximas rondas de negociação.
O acordo tem
certamente pontos mais fracos: o mecanismo de ambição começa
demasiado tarde (apenas em 2023) para a opinião da maioria dos
peritos; os mecanismos de transparência da acção que os
Estados-membros se obrigam a cumprir ainda estão por definir, para
dar só dois exemplos. Todavia, a reacção que li no Twitter de um
ambientalista resume a visão de muitos no movimento ambientalista:
“And we don’t even have to pretend this is a good deal” – nem
sequer precisamos de fingir que este é um bom acordo. No final de
Paris, o acordo internacional apenas pode enquadrar aquilo que vai
ser agora o foco da atenção: como concretizar as metas acordadas,
como ir mais longe do que as próprias metas e aumentar a ambição
na próxima ronda de compromisso.
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