Para
não acabar de vez com os jornais (e a democracia)
ALEXANDRA LUCAS
COELHO / 27-12-2015 / PÚBLICO
1. A revista do
PÚBLICO, onde esta coluna sai aos domingos, acaba hoje. A
administração antecipa um prejuízo na ordem de três milhões de
euros em 2015, segundo notícias na imprensa. O número será
confirmado após o fecho de contas, e não consta do comunicado aos
trabalhadores, a 10 de Dezembro, anunciando “redução de custos”.
Com variações, a revista existe desde a fundação do jornal, há
25 anos (a partir da semana que vem, reportagens, entrevistas e
perfis mais extensos serão integrados no jornal de domingo, bem como
esta coluna).
Além da extinção
da revista, a administração comunicou aos trabalhadores um “plano
de rescisões voluntárias” em condições “mais favoráveis do
que as previstas na lei”. Os “interessados podem manifestar-se”
até 6 de Janeiro, a administração “avaliará”, reservando-se o
direito de “declinar” algumas, e quer concluir o processo no dia
15. O comunicado, divulgado pela Agência Lusa, não indica quanto se
pretende poupar, mas diz que pode haver “a necessidade de recorrer
a outras medidas” caso “a execução do plano” proposto “não
atinja dimensão adequada às necessidades”. Ou seja, não exclui
um despedimento colectivo, concluem notícias na imprensa.
A última vez que
isso aconteceu foi em 2012, quando, perante um prejuízo de 3,5
milhões de euros, devido à queda de publicidade e vendas, a
administração despediu 48 trabalhadores, incluindo fundadores do
jornal. A redacção foi, de longe, o sector mais afectado: 36. Além
dos despedidos, alguns jornalistas optaram por deixar os quadros,
ficando a colaborar (é o meu caso).
A mudança histórica
é deixar de pensar o jornalismo escrito como um negócio e encará-lo
como um bem comum, envolvendo todos: quem tem dinheiro, para que isso
possa existir, e quem não tem, para que possa ser melhor
O que aconteceu
desde então, diz o comunicado dos administradores, foi que esses
cortes não bastaram face à continuação da “quebra de vendas em
banca” e na publicidade em papel: o jornal ganhou 10% de audiência
devido ao online, onde triplicou de assinantes, mas a subida na
publicidade digital não compensa a descida na publicidade em papel.
Propriedade da
Sonae, uma das maiores empresas portuguesas, o PÚBLICO deu quase
sempre prejuízo. Belmiro de Azevedo (que em 2015 passou a
presidência da administração da Sonae ao filho, Paulo Azevedo)
resumiu em entrevista a este jornal: “Não há muita gente a
aguentar um ‘perdócio’ de 25 anos.” É um facto, mais do que
isso, um património na democracia portuguesa. Quando o PÚBLICO
começou, a democracia tinha apenas 16 anos, e sem os milhares de
pessoas que o foram fazendo o país seria outro, e o mundo que cá
chegou também. Foi preciso dinheiro e visão para erguer esse
património, como será preciso dinheiro e visão para continuar.
O meu ponto nesta
crónica tem a ver com a visão: o que pode ser um projecto de
jornalismo como este 25 anos depois.
A tendência
internacional (dados adiante) é para que os diários tenham
dificuldade em sustentar-se com vendas e publicidade. O ideal, creio,
será encarar isso já, pensando como salvaguardar o jornalismo
escrito enquanto bem comum. Projectos como este jornal podem, devem,
actualizar a publicidade para o digital, mas por mais cortes que
façam, sacrificando trabalhadores, diversidade e profundidade, têm
pouca hipótese de sobreviver com vendas e publicidade. A mudança
histórica, então, seria deixarem de ser pensados como um negócio —
propício ao prejuízo, a cada ano decepcionante para accionistas e
desestabilizador para trabalhadores que vão perdendo condições —
e serem tomados como responsabilidade social. Colectivos decisivos
para a democracia, para uma sociedade mais complexa, livre e justa,
envolvendo toda a gente que se sentir implicada neles: quem tem
dinheiro, para que possam existir, e quem não tem, para que possam
ser melhores. O que está em causa é a própria existência de um
jornalismo que contrarie abusos de poder e amplie o mundo, não
menos.
Mas antes de
desenvolver essa ideia, é preciso completar um pouco o quadro dos
jornais no fim de 2015.
2. Dias antes de os
novos cortes no PÚBLICO serem noticiados, soube-se que o diário i e
o semanário Sol vão fechar, tal como existiam, e cerca de 120
trabalhadores, na maioria jornalistas, serão despedidos. A empresa
detentora dos dois jornais, a Newshold, do angolano Álvaro Sobrinho,
ex-presidente do BES Angola, alega prejuízos de 4,4 milhões de
euros no Sol e de 3,8 no i, e decidiu extinguir-se.
O anúncio foi feito
aos trabalhadores pelo CEO Mário Ramires, num plenário a 30 de
Novembro. Ramires informou que ia liderar um novo projecto com um
terço das pessoas. As 66 sobreviventes fariam uma edição diária e
outra ao sábado, com salários inferiores e abdicando de
antiguidade, caso no futuro fossem despedidas. Estas condições não
só eram obrigatórias como o CEO pediu a quem aceitasse para assinar
ali um documento prescindindo da indemnização. Entretanto, estava a
gravar em áudio o plenário, e a 2 de Dezembro publicou na íntegra
o registo, de quase duas horas, nos sites dos jornais.
“Um desses
momentos que ficam na história recente do jornalismo português
pelas piores razões”, reagiu em comunicado o Sindicato de
Jornalistas (SJ), considerando que a decisão de Mário Ramires
“ultrapassa todos os limites da decência, abre grave precedente e
merece uma análise específica”, pelo que o SJ apresentou “queixa
à Entidade Reguladora para a Comunicação Social pedindo uma
avaliação urgente” do caso. “Como é possível os responsáveis
editoriais e da empresa acharem que têm direito de publicar um
momento grave e íntimo destes para a vida de dezenas e dezenas de
trabalhadores? E, o que é ainda mais inacreditável, sem autorização
expressa dos trabalhadores, como apurou de forma cabal o SJ. Será
que não se dão conta da violência, da coacção, do abuso?”
As diferentes
notícias sobre o processo Sol/i referem que Mário Ramires se
manteve incontactável, tal como Álvaro Sobrinho (alvo de diversas
investigações judiciais/financeiras nos últimos anos).
O essencial será
não apenas manter o que ainda sobrevive, como devolver aos leitores
o que foi sacrificado: a tradição de crítica cultural em várias
áreas; de grande reportagem e cobertura internacional; de longas
investigações.
3. A 16 de Dezembro
veio a público que o Diário Económico enfrenta uma penhora do
Estado. Além das dívidas fiscais, o jornal devia a fornecedores,
tinha salários em atraso e um passivo de 30 milhões. O director
Raul Vaz informou a redacção nesse dia que a situação se tornara
“muito complicada, para não dizer dramática” e falou ao
Expresso na necessidade rápida de “uma solução que permita
manter a marca”, sempre implicando cortes, admitiu ao PÚBLICO. O
Diário Económico é propriedade da Ongoing, ex-accionista da PT com
participações noutros media. O empresário angolano Domingos Vunge
mostrou-se interessado em comprar o jornal e o canal de TV que lhe
está associado, num total de 160 postos de trabalho, cortando o
“défice de tesouraria”. Vunge esteve ligado à venda do Sol a
Álvaro Sobrinho.
4. O que resumi
acima são apenas notícias dos últimos 15 dias no momento em que
escrevo. Outras redacções já tinham sofrido cortes, mundo fora há
paralelos, o debate é vasto. No caldeirão dos “media” cabe
muito, incluindo paparazzi, arrivistas e jogadores com fins
não-declarados, que apostam a vida de redacções inteiras. O meu
foco são os meios mais em risco, jornais ou revistas, onde o
jornalismo pode ficar à mercê da degradação.
5. Dois textos, com
dez anos de intervalo, no site da Nieman (a fundação de Harvard
para “promover e elevar os níveis do jornalismo”) dão uma ideia
de como o foco do debate evoluiu de 2005 para 2015.
O texto de 2005
(http://niemanreports.org/articles/mainstream-media-and-the-survival-of-journalism)
mantém-se actual em vários aspectos. Fala do problema de cada vez
menos gente prestar atenção aos jornais. Descreve como “o modelo
de negócios da imprensa está a implodir enquanto os leitores jovens
se voltam para tablóides gratuitos e media electrónicos”. Diz que
se tornou moda nos media “a autoflagelação, celebrando a
emergência dos ‘cidadãos-jornalistas’, e aplaudindo a morte dos
dinossauros”. Contrapõe que “num país polarizado, enfrentando
desafios difíceis, o público precisa de recursos, experiência e
acima de tudo profissionalismo para informação vital”. Dá um
exemplo contundente: num estudo da Fundação Knight, mais de um
terço dos estudantes americanos acha que a Primeira Emenda da
Constituição dá “demasiada protecção à liberdade de
imprensa”, e a maior parte não entende o que é liberdade de
expressão”. Cita o provedor do leitor do Washington Post, que fala
numa escalada contra os jornais (“mais e mais emails têm um tom
desagradável, ameaçador, ideológico”) e remata com o papel
central dos jornais para uma cidadania informada (“nenhum outro
media vos dará o conteúdo extraordinário do Post, do New York
Times, dos Los Angeles Times, do Wall Street Journal e outros jornais
de qualidade”).
O texto de 2015
(http://www.niemanlab.org/2015/04/the-state-of-the-news-media-2015-newspapers-↓-smartphones-↑)
tem por base o relatório anual “State of the News Media”, da Pew
Foundation. Centra-se no domínio dos telemóveis como suporte de
notícias: neste momento, 39 dos 50 sites de notícias mais populares
dos Estados Unidos são mais lidos em telemóvel do que num
computador. A publicidade para telemóvel passou de quase zero em
2010 para mais de um terço de todo o digital. O estudo confirma que
a publicidade no papel continua a cair e que a receita da digital
aumentou um pouco, mas “está longe de ser suficiente”. Para onde
vai então o bolo da publicidade digital? Facebook, Google, Yahoo,
AOL e Twitter ficam com metade, o Facebook sozinho com um quarto (e
um terço da publicidade para telemóvel). Questões aparentemente a
anos-luz das de 2005, mas que confluem mais do que se sucedem. Ou
seja, os jornais têm novos problemas e boa parte dos anteriores
mantêm-se.
Quanto à
publicidade, adenda de um estudo de 2012, em que a Pew conseguiu
dados que os jornais normalmente não dão garantindo anonimato: um
grande jornal que decidira apostar no digital aumentara 50% nessa
publicidade “desenvolvendo uma amplitude maior de anúncios do que
a generalidade dos jornais”.
Portanto, sim, é
possível, com imaginação, rentabilizar a publicidade digital. Não,
os jornais não viverão disso.
6. Mas creio que a
publicidade ainda podia ter um papel numa nova lógica de jornalismo
enquanto bem público. Grandes empresas portuguesas gastam dinheiro e
tempo com programas, projectos, fundações relacionadas com
“responsabilidade social”. Se, como anunciantes, valorizarem um
jornal de qualidade, o ângulo do lucro — quanto me compensa
anunciar aqui — pode mudar para o ângulo da responsabilidade
social — este jornal é importante para a democracia. Talvez seja
possível fazer isto estabelecendo parcerias com vários potenciais
anunciantes. Não estaríamos ainda no domínio da filantropia,
porque eles continuariam a lucrar, embora certamente menos do que nos
“media” cujo objectivo é vender. Mas teriam outra espécie de
ganho.
Não, os jornais
também não viverão disso, ainda assim talvez ajude.
7. No domínio da
filantropia está a americana ProPublica, de que me falou Adelino
Gomes, defensor há anos de um outro modelo para jornais como o
PÚBLICO, nomeadamente uma fundação. O que conversámos antes desta
crónica foi, como sempre, inspirador.
Fundada em 2007 como
um projecto online para peças jornalísticas de longa pesquisa,
duração e investimento, a ProPublica faz aquilo que jornais e
revistas, no actual modelo, dificilmente conseguem. É seguida por
mais de meio milhão de leitores mensais, já ganhou dois prémios
Pulitzer, tem um orçamento de 12 milhões anuais, uma equipa de 40
jornalistas e 26 parcerias com sites de notícias e grandes jornais,
como o New York Times ou o Guardian, seus aliados, por exemplo, na
divulgação dos documentos de Snowden. Tudo isto, vivendo de
donativos. Três mil doadores, entre fundações, filantropos e
leitores em geral. Todos os conteúdos são abertos, há mesmo um
link que diz: “Roubem as nossas histórias” (mediante um código
de conduta, por exemplo, não as alterar ou vender).
Difícil saber como
chamar à ProPublica: site, plataforma, jornal ou revista online?
Eles falam em “newsroom”, ou seja, redacção. Portanto, uma
redacção, declarando-se à partida como “não-lucrativa e
independente”. No ano passado, o presidente, Richard Tofel, deu uma
entrevista ao Guardian cujo título era “A nossa missão é acabar
com abusos de poder”. Começa por dizer que no momento da
entrevista está a recuperar de um pesadelo: sonhou que ainda
trabalhava no Dow Jones. Porque é daí que Tofel vem, da bolsa para
o Wall Street Journal, de onde aliás não veio sozinho para a
ProPublica. Ou seja, gente que trabalhou na finança, se cansou a
ponto de ainda ter pesadelos e usou contactos e experiência para
algo não-lucrativo, viabilizando isso com quem tem dinheiro. Tofel
explica que houve um esforço para multiplicar os doadores. Quanto
mais gente, mais livre de pressões. Sim, aconteceu alguns dizerem
que não gostaram de determinada cobertura, e a ProPublica respondeu,
temos pena, e eles foram-se embora. Sim, seria óptimo que anúncios
e assinaturas pagassem este jornalismo, mas essa não é a realidade.
O que é estratégico para os doadores? Nós levarmos isto a sério,
diz ele.
8. O grande repórter
Ryszard Kapuscinski tem aquela frase: “Este ofício não é para
cínicos.” É exactamente isso, e não há outra forma. Se os
jornalistas não acreditarem no que escrevem, e que isso é
importante, ninguém acreditará. Acreditar nisso é a maior forma de
responsabilização. Mas para isso existir tem de ser valorizado por
quem tem dinheiro e por quem lê.
Tudo o que Belmiro
de Azevedo “perdeu” com o “PÚBLICO” foi um contributo para a
democracia. A mudança de prisma é olhar para isso enquanto ganho,
impacto na história do país.
9. Os leitores. Há
uma mudança de paradigma aqui, também. Assinar jornais (ou
revistas) que lemos, online ou em papel, é uma forma de os ajudar a
sobreviver. Não encarar os sites como o pelourinho onde os
malfeitores dos jornalistas e cronistas serão expostos, denunciados
e executados, antes mesmo de o primeiro parágrafo ser lido, ou
depois de o ler ao contrário, ou de ler o que não está lá, será
uma forma de elevar os padrões. Ao assinarem o seu trabalho,
jornalistas, cronistas, fotógrafos, ilustradores dão a cara por
tudo o que fazem. Poucos trabalhos são tão escrutinados, e
achincalhados impunemente. Se os leitores passarem a tratar o jornal
como um bem seu, de que é preciso cuidar, não perdem em exigência,
ganham-na como direito e dever.
Isto não deve ser
confundido com a fantasia dos “cidadãos-jornalistas”. Há
cidadãos e há jornalistas, os jornalistas serão cidadãos, mas o
contrário não é verdadeiro. Os cidadãos só são jornalistas se o
forem. Os leitores não devem substituir os jornalistas, que para o
bem de todos, e como acontece com bombeiros ou médicos, devem ser
preparados para o que fazem e honrar um código de conduta. Para isso
têm uma carteira profissional, sujeita a critérios. A carteira
existe como garantia para a comunidade e para o leitor, o que se
tende a perder no salve-se quem puder que se tornaram “os media”.
Também aí uma nova visão do jornalismo escrito poderá resgatar
princípios básicos.
E num modelo em que
os jornais deixem de ser vistos como um negócio lucrativo, qualquer
leitor poderá ser doador. A lógica dos crowdfundings é exactamente
essa: com dez euros ajudarmos alguém a fazer um livro ou ir à
Coreia do Norte, porque achamos importante. Pensem nisso à escala de
uma redacção que, assim, escreverá sobre livros ou irá à Coreia
do Norte.
10. Claro que o
ideal seriam três milhões de leitores darem um euro e fazia-se um
jornal, mas isso não vai acontecer, porque não há três milhões
de leitores para um jornal como o PÚBLICO, nem trezentos mil, não
estamos a falar de grandes audiências, se estivéssemos eu não
estaria a escrever esta crónica. Também é claro que não são os
jornalistas que têm de resolver os problemas económicos dos
jornais, não são pagos para isso, nem fizeram MBA. Como é claro,
ao fim de todos estes anos que não percebo nada de dinheiro, por
exemplo, de ganhá-lo. Mas só até ao ponto em que isso põe em
causa a existência do que faço, porque quero continuar a fazê-lo e
que outros possam continuar a fazê-lo. Ou seja, não admitindo, por
exemplo, a exploração que é pedir a um precário ou frelancer que
trabalhe de graça, ou quase. Tudo isto para dizer que, sim, seria
óptimo não ter de dedicar vários dias a uma crónica falando de
dinheiro: prejuízos, vendas, publicidade, doadores. Mas para o
jornalismo ser viabilizado como um bem comum há que implicar o
dinheiro nessa responsabilidade.
11. O PÚBLICO não
tem passivo porque a Sonae foi absorvendo os prejuízos. Belmiro de
Azevedo nunca disse publicamente quanto investiu no jornal, talvez
dezenas de milhões. Na prática, um financiamento a fundo perdido,
em termos de euros, mas com todo um valor simbólico. Será
impossível quantificá-lo, é a soma das contribuições de milhares
de pessoas, numa espécie de arquivo vivo dos últimos 25 anos do
país e do mundo. E, justamente, esse valor deveria ser tomado como
uma pré-história do que agora pode acontecer. Invertendo a lógica
tradicional, em vez de ver os tais 25 anos de “perdócio” como
extravagância, vê-los como mecenato. Tudo o que Belmiro “perdeu”
com o PÚBLICO foi um contributo para a democracia. A mudança de
prisma é olhar para isso enquanto ganho, impacto na história do
país. Belmiro de Azevedo e a Sonae podem, devem, ser os primeiros a
valorizar o investimento no PÚBLICO.
Então, volto à
questão do dinheiro e da visão, que viabilizaram esse património.
No ano passado, o grupo Sonae facturou no total 4974 milhões de
euros, e este ano vai facturar mais ainda, apontam os números já
disponíveis. Ou seja, os três milhões de prejuízo no PÚBLICO vão
representar menos de um milésimo no bolo anual bruto da Sonae. O
dinheiro, portanto, existe. E Belmiro já tem uma fundação. A Sonae
até criou este ano um prémio de arte.
Por que não, no
PÚBLICO, evoluir para um modelo misto, em parte financiado pelo que
nele é mais valorizado pelos anunciantes, como o Ípsilon (e pelo
mercado crescente do lazer, como a Fugas), e em parte suportado por
mecenato, envolvendo outros parceiros? Claro que não se trata de uma
empresa patrocinar um texto, mas de várias contribuírem para um
fundo, de modo a garantir total independência (isso permitiria,
aliás, acabar com a dependência dos convites para viagens, que os
jornais aceitam porque não têm dinheiro para viajar de outra
maneira). A família Soares dos Santos (Jerónimo Martins/Pingo Doce)
fez a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), exemplo de como
uma grande empresa pode mudar a visão da sua responsabilidade no
país (incluindo ter criado uma colecção de livros de reportagem,
além de uma revista anual). O inglês Guardian é o caso de um
diário gerido no quadro de uma fundação.
Mas
independentemente do modelo, ainda em papel ou só online, em
Portugal, no Brasil ou onde o jornalismo esteja em risco, o essencial
seria não apenas manter o que ainda sobrevive, como devolver aos
leitores o que mais foi sendo sacrificado: espaço e meios para
crítica cultural em todas as áreas; para grande reportagem e
cobertura internacional; para investigações longas. Passar a ver
tudo isso como uma área nobre, o contrário do acessório. Este
jornal iniciou o Público+, projecto que permitiu algumas reportagens
com mecenato. Mas o orçamento era reduzido, havia limites para áreas
e géneros, e não tenho visto resultados recentes dessa ideia.
Em Portugal, em
geral, há pouquíssimo espaço, tempo e dinheiro para reflectir um
milésimo do que se faz, pensa e cria, aqui e no mundo. Além de
todas as zonas de abuso sucessivamente apagadas, entregues às piores
violências, porque ninguém está lá para contar. Claro que
Portugal não tem gente nem dimensão para os 3 mil doadores da
ProPublica, nem a tradição filantrópica americana na educação,
ciência e cultura. Mas tem há décadas a Fundação Gulbenkian,
agora a FFMS, há-de ser possível avançar por algum lado. As
empresas sempre na lista das maiores têm dimensão para estes
investimentos serem milésimos no seu bolo.
A tradição que o
PÚBLICO representa, do jornalismo que me fez querer ser jornalista,
não apenas pode ser inovada, como recuperar o que perdeu. É esse
património que me permite escrever esta crónica no pressuposto de
que ela não será lida pela administração antes dos leitores, e
enquanto assim for será bom para a democracia.
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