sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O desalento que levou os médicos a sair do país e a não acreditar no regresso





O desalento que levou os médicos a sair do país e a não acreditar no regresso
ROMANA BORJA-SANTOS 31/12/2014 - PÚBLICO

Em 2014 foram 269 os clínicos que pediram à Ordem dos Médicos os certificados para exercer a profissão noutro país. O PÚBLICO conta as histórias de quatro médicos emigrantes. O desalento que levou os médicos a sair do país e a não acreditar no regresso

Nadine Ferreira é neurologista e emigrante. Faz parte do grupo de 269 médicos portugueses que pediram durante o ano de 2014 à Ordem dos Médicos os certificados necessários para poderem exercer a profissão noutro país. Para trás deixou o Hospital Garcia de Orta, em Almada, e mudou-se com o marido cardiologista e as três filhas para a Bélgica. Um caminho que já tinha sido percorrido em anos anteriores por outros colegas. Em 2013 tinha sido a vez da anestesista Ana Gonçalves, em 2011 do médico de família Ricardo Gabriel e um ano antes da interna de ortopedia Ana Carvalho.

Em comum, os quatro médicos portugueses têm o sentimento de desalento que os fez sair e nenhum acredita que seja possível voltar um dia. Todos tinham emprego em Portugal e garantem que os salários no estrangeiro – que chegam a ser cinco vezes superiores – não foram o mais importante para a concretização da mudança. A falta de condições de trabalho e a degradação do Serviço Nacional de Saúde foram a gota de água para todos eles e ainda é com um sentimento agridoce que vêem juntar a palavra emigrante à profissão de médico, até porque, como salienta Ana Gonçalves, “Portugal está a deixar sair uma geração de quadros qualificados de que precisa” – e “atrás vão os filhos”. Apesar disso, prefere falar em “globalização”. Nadine Ferreira também gosta de se definir como “cidadã de dois países”.

De acordo com os dados da Ordem dos Médicos enviados ao PÚBLICO, durante 2014 foram 269 os clínicos que pediram a este organismo os certificados para exercer a profissão noutro país, tendo sido este o ano mais expressivo em termos de pedidos e o único em que foram confirmadas caso a caso as saídas. Dos 127 médicos que a ordem conseguiu contactar e que responderam, 79 confirmaram que saíram mesmo. Em 36 dos casos eram médicos com idades entre os 25 e os 34 anos e 21 tinham entre 35 e 44 anos. Entre os 55 e os 65 também emigraram 12 médicos. Em 16 dos casos o destino foi o Reino Unido, mas houve igualmente dez clínicos que se mudaram para França, nove para Angola, oito para Espanha e seis para a Alemanha. “Há 49 médicos que referem ter contrato, 29 dos quais como especialistas”, adianta a Ordem dos Médicos.

"Não saímos por desemprego, desistimos foi de Portugal"
Ana Gonçalves, 54 anos, anestesista em França

Depois de quase 30 anos de dedicação ao Serviço Nacional de Saúde, Ana Gonçalves disse “basta”. Emigrou. Ou, como a anestesista de 54 anos prefere dizer, “globalizou-se”. “Agora tenho a minha vida em Portugal e trabalho em França”, conta, em referência às viagens constantes para estar com o marido, filha e restante família. A mudança aconteceu em meados de 2013. “Senti-me de tal maneira usada por este Governo que decidi que estava na altura de sair. Estavam a tentar expulsar os quadros superiores e a segurança e a qualidade para os doentes deixaram de fazer parte do vocabulário do Governo”, lamenta a médica.

Soube da vaga para ir abrir um hospital novo em França através de uma empresa de recrutamento. Das negociações à prática foi um passo relativamente rápido. O francês não era problema e o salário era cinco vezes superior. Mas o que mais atraiu a anestesista foram as condições de trabalho e a qualidade de vida na pequena cidade entre Bordéus e Toulouse. Já teve grandes desafios: agora está à frente da maternidade que pertence ao hospital. Nada que desconheça. Mais de 20 anos da sua vida foram passados no Hospital Dona Estefânia e desde 2010 que estava na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), também em cargos de direcção.

Ana Gonçalves descreve horas de trabalho consecutivas na MAC, que chegavam a ser mais de cem numa semana. “É assustador quando estamos a falar de vidas humanas. Não me sentia capaz de ordenar coisas fora da minha ética profissional. O que assisti foi a uma tentativa de expulsão dos funcionários públicos com mais formação, mais especialização e mais prática.” Para a anestesista, uma saída como a sua tem várias consequências. Primeiro, há falta de especialistas na sua área em Portugal. Depois, destaca que com a saída de médicos mais velhos se está “a perder a capacidade formativa para os mais novos”. Por último, reforça que atrás dos pais vai uma segunda geração de “filhos qualificados”. A filha de Ana é estudante de Arquitectura e está a fazer Erasmus em França. O mais natural é que fique.

No novo trabalho sente-se “contente e motivada”. “Sinto respeito entre todos os elementos do hospital e tudo o que se faz a mais conta”, diz. Com um contrato de 42 horas semanais tem direito a 35 dias de férias por ano, aos quais se juntam mais 15 extraordinários como recompensa do que faz. “Destaco a qualidade, o material, o trabalhar em segurança, sem andarmos a colar coisas com adesivo como acontecia na MAC. Em França a segurança do doente está sempre em primeiro lugar.”

O regresso, explica, só deverá ser possível depois da reforma. “Como as coisas estão é impossível. Tento ter esperança, mas duvido que Portugal volte a atingir o nível de um país de primeira linha. Olho para o que se continua a passar desde que saí e acho arrepiante”, comenta. Ao mesmo tempo, reconhece que nunca pensou emigrar. “Nunca me passou pela cabeça ir acabar os meus anos de trabalho em França. Infelizmente tive de sair com a minha vida estruturada em Portugal e foi com muita mágoa que larguei a família. Não foi só fechar a porta”, assegura. Quanto a França, admira a capacidade de visão do país. “Contratou um especialista como eu e poupou 20 anos de ordenados para conseguir alguém com esta experiência. Portugal só pensa a curto prazo. É que nós não saímos por desemprego. Desistimos foi de Portugal, trocámos tudo pela globalização.”

“Senti-me demasiado claustrofóbico numa cultura de não excelência clínica”
Ricardo Gabriel, 35 anos, médico de medicina geral e familiar no Reino Unido

Para Ricardo Gabriel, 2011 foi o ano de viragem. Na altura não conhecia nenhum médico que tivesse emigrado e foi sozinho que tratou de todo o processo em que não tinha pensado vir a embarcar. Foi para Londres, no Reino Unido. Aos 35 anos, é especialista em medicina geral e familiar – a sua primeira opção. Mas mal começou a trabalhar nos centros de saúde portugueses na zona de Cantanhede percebeu que o trabalho não correspondia às expectativas que tinha criado. “Quando fui colocado, fiquei onde queria, mas foi tudo abaixo: estava sujeito a uma chefia que na minha perspectiva não pugnava pelos interesses da excelência clínica e dos doentes. Saímos muito especializados e com grandes capacidades técnicas que depois não são reconhecidas no mercado de trabalho”, resume.

O médico admite que o salário, quase o triplo do que ganharia em Portugal, representa um “bom extra”. Mas garante que, com o custo de vida em Londres, esse não foi o “factor que determinou” a mudança. Reforça também que em 2011 o processo não foi tão fácil como agora, pelo que para ver as suas habilitações reconhecidas teve de fazer um estágio de seis meses no país de destino. “Gosto mesmo muito daquilo que faço e estava sujeito a fazer uma medicina de pouca qualidade para dar resposta a requerimentos políticos e decidi que a isso não iria estar sujeito. Não há qualquer liberdade de escolha em termos de carreira em Portugal e ia ficar a vida toda em Cantanhede. De início não se colocou tanto a questão da parte financeira, mas claro que é um bom extra. Senti-me demasiado claustrofóbico numa cultura de não excelência clínica.”

As consultas dadas “em caves com 60 doentes à porta” ficaram para trás. Agora, por opção, o médico trabalha num centro de saúde apenas três dias e meio por semana, para ter tempo para investir em formação. “O sistema inglês não é perfeito e está a passar por algumas dificuldades, mas é um sistema exigente e que ao mesmo tempo dá liberdade aos médicos sem deixar de pôr o doente em primeiro lugar. A compensação é sobretudo a possibilidade de crescer na carreira, de investigar, colaborar com revistas médicas.”

Quanto a voltar para Portugal, Ricardo Gabriel diz que não tem “esse tipo de esperança”. Eram necessárias “demasiadas” mudanças. “Não tenho tristeza, tenho antes um grande orgulho nas pessoas que estão em Portugal e que não podem ou não querem emigrar. Se calhar, eu é que escolhi a vida mais fácil. É preciso coragem para ficar a lutar pelo Serviço Nacional de Saúde”, defende, criticando que o Governo continue a “pagar milhares de euros pela formação dos médicos e a contribuir para que esses mesmos médicos se vão embora”. E deixa um alerta: “Não estão a receber o retorno do que estão a pagar e um dia vão perceber que precisam de ir buscar gente fora.”

“Uma cidadã de dois países mais do que propriamente uma médica emigrante”
Nadine Ferreira, 37 anos, médica neurologista na Bélgica

O ano de 2014 significou viragem no caso da neurologista Nadine Ferreira, de 37 anos. Para trás deixou em Abril o Hospital Garcia de Orta com destino a Mons, uma cidade belga a sul de Bruxelas. Destaca dois principais motivos para a difícil decisão: “Receio do futuro, particularmente em relação às minhas três filhas, e procura de uma melhor qualidade de vida. Devo dizer também por uma certa desilusão em relação a muito do que via e ouvia à minha volta e no meu país.”

A sua saída representa a perda de dois médicos. Foi com o marido, cardiologista. No caso da médica, até por existirem filhos, todo o processo foi planeado. “O primeiro passo foi a procura de oportunidades e de intermediários. Após conhecer todas as condições, seleccionámos uma empresa de recrutamento que nos apresentou propostas concretas, inclusive com contactos directos via Skype com as instituições. Reforçámos o nosso conhecimento da língua através de aulas, visto um nível elevado de língua ser pré-requisito. Fizemos uma primeira visita às instituições, como forma de teste bidireccional”, explica.

Uma grande diferença está no salário proposto, que quase triplicou o valor do de Portugal. A mudança é recente, mas a neurologista faz um primeiro balanço positivo. “Temos sido muito bem aceites na comunidade, médica e não médica. Na região do Sul da Bélgica, as raízes latinas originaram um povo alegre. No local de trabalho, o clima inicial de desconfiança por parte dos colegas foi rapidamente substituído por respeito.” Foram sobretudo as diferenças na prática médica que não esperava. “A qualidade da medicina não só não é superior à praticada em Portugal, como em muitos aspectos é mesmo inferior. Algumas medidas aplicadas em Portugal há vários anos, como a Via Verde do AVC e a Via Verde Coronária, só agora começam aqui”, adianta, explicando que na Bélgica os médicos são normalmente trabalhadores independentes e recebem “segundo o que produzem, o que tem algumas vantagens, mas pode causar um certo desvirtuamento da prática médica”.

Para quem pondere viver naquele país, Nadine Ferreira alerta que é necessário ter em consideração a elevada carga fiscal e a menor protecção social. “O sistema de Saúde é muito diferente do português, sendo privado e baseado em seguros de saúde. Cada hospital é uma empresa privada”, resume, adiantando que isso introduz muita competitividade no sistema, mas também falta de coordenação. “Muitas vezes assistimos a uma menor qualidade dos serviços, apesar da disponibilidade de recursos.”

A médica partiu “sem pensar em regressar”. Para isso acontecer teriam de existir “boas oportunidades de trabalho e consenso familiar”. Uma conjugação que entende ser improvável. “Os médicos estão expostos às mesmas dificuldades e privações que os restantes cidadãos” e “a saúde não é, há muitos anos, área prioritária de investimento público, pelo contrário, reinando em muitos serviços públicos um clima de desmotivação”.

Apesar de afirmar que a emigração é hoje menos “menos discriminatória” e que se sente “uma cidadã de dois países mais do que propriamente emigrante”, reconhece que é triste ver sair de Portugal “profissionais altamente qualificados”. Negativa permanece a palavra portuguesa “saudade”, agora “minorada pelas tecnologias e pela facilidade de deslocação, mas que, mesmo assim, continua sempre cá”.

“Sentia-me frustrada em Portugal porque sou extremamente perfeccionista”
Ana Carvalho, 38 anos, médica interna de ortopedia em França

Ana Carvalho tinha vários convites e propostas de trabalho em Portugal. Contudo, foi num hospital francês em Paris que encontrou há quatro anos o ambiente laboral que procurava e que contrasta com o que diz que a levou a sair de Portugal : “Não me identificava com as medidas ditatoriais, implementadas num país dito democrático e que muitas vezes padece de anarquismo.” Aos 38 anos, Ana é interna de ortopedia, depois de ter passado por outra licenciatura na área da saúde e de ter estudado também Medicina Dentária. As formações deram-lhe uma visão “alargada” dos serviços de Saúde em Portugal e que só contribuiu para perceber que o seu caminho seria trilhado fora.

“Nunca tinha pensado em emigrar, uma vez que não me faltava trabalho em Portugal. A falta de dinheiro também não foi o factor desencadeador. Não me identificava com as regras existentes nas instituições de Saúde em Portugal e achava que existem cargos hierárquicos e burocráticos a mais, entregues a pessoas que trabalham de menos”, justifica. “Sentia-me frustrada em Portugal, porque sou extremamente perfeccionista”, resume a clínica. No caso de Ana Carvalho, a mudança aconteceu através de contactos pessoas que fez directamente com algumas instituições francesas, ao mesmo tempo que “praticamente em segredo” fez um curso para aperfeiçoar a língua em que iria trabalhar.

No hospital parisiense garante que encontrou uma cultura de equipa com a qual se identifica e aponta o dedo às más práticas portuguesas, nomeadamente a falta de pontualidade dos profissionais de saúde. “Bastava alguém chegar (sistematicamente) atrasado, que todo o trabalho de equipa ia por água abaixo E quem cumpria, rigorosamente, as regras é que era, por vezes, apelidado de ‘betinho’ e era marginalizado.”

A médica reconhece que a medicina que se pratica em Portugal é de “excelência”, mas alerta que as estruturas estão mal aproveitadas e que os próprios médicos têm “contribuído para a desvalorização da carreira”. “Não é por vermos o colega do lado sem nada fazer, que também nos vamos pôr a fazer o mesmo, ainda mais quando há salas cheias de doentes. Isso gera uma certa frustração… Uns trabalharem mais (e melhor) do que os outros e, no fim, todos têm a mesma recompensa”, critica.


Ana Carvalho reconhece que foi com tristeza que deixou Portugal, não tanto por ter emigrado – situação que nunca tinha equacionado –, mas sim por ver o desinvestimento nos profissionais do Serviço Nacional de Saúde, ao mesmo tempo que se “decoram salas e blocos operatórios de hospitais” com equipamentos que não são utilizados por falta de condições. A médica cansou-se do “deixa andar” e diz que percebeu que teria de mudar de país para encontrar os “valores” em que se revê, descrevendo Portugal como um país de “títulos” e “cunhas”. Em Paris, garante, “idolatra-se” os médicos portugueses, sobretudo em especialidades como a cirurgia ortopédica, mas o olhar e a preocupação final vão para os doentes. “Sei que a perfeição não existe à face da terra, mas identifico-me mais com o sistema francês. Porém, em qualquer parte do mundo, o meu lema de vida é e será sempre o mesmo: ajudar o outro sem dele nada esperar.”

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