O
desalento que levou os médicos a sair do país e a não acreditar no
regresso
ROMANA BORJA-SANTOS
31/12/2014 - PÚBLICO
Em
2014 foram 269 os clínicos que pediram à Ordem dos Médicos os
certificados para exercer a profissão noutro país. O PÚBLICO conta
as histórias de quatro médicos emigrantes. O desalento que levou os
médicos a sair do país e a não acreditar no regresso
Nadine Ferreira é
neurologista e emigrante. Faz parte do grupo de 269 médicos
portugueses que pediram durante o ano de 2014 à Ordem dos Médicos
os certificados necessários para poderem exercer a profissão noutro
país. Para trás deixou o Hospital Garcia de Orta, em Almada, e
mudou-se com o marido cardiologista e as três filhas para a Bélgica.
Um caminho que já tinha sido percorrido em anos anteriores por
outros colegas. Em 2013 tinha sido a vez da anestesista Ana
Gonçalves, em 2011 do médico de família Ricardo Gabriel e um ano
antes da interna de ortopedia Ana Carvalho.
Em comum, os quatro
médicos portugueses têm o sentimento de desalento que os fez sair e
nenhum acredita que seja possível voltar um dia. Todos tinham
emprego em Portugal e garantem que os salários no estrangeiro –
que chegam a ser cinco vezes superiores – não foram o mais
importante para a concretização da mudança. A falta de condições
de trabalho e a degradação do Serviço Nacional de Saúde foram a
gota de água para todos eles e ainda é com um sentimento agridoce
que vêem juntar a palavra emigrante à profissão de médico, até
porque, como salienta Ana Gonçalves, “Portugal está a deixar sair
uma geração de quadros qualificados de que precisa” – e “atrás
vão os filhos”. Apesar disso, prefere falar em “globalização”.
Nadine Ferreira também gosta de se definir como “cidadã de dois
países”.
De acordo com os
dados da Ordem dos Médicos enviados ao PÚBLICO, durante 2014 foram
269 os clínicos que pediram a este organismo os certificados para
exercer a profissão noutro país, tendo sido este o ano mais
expressivo em termos de pedidos e o único em que foram confirmadas
caso a caso as saídas. Dos 127 médicos que a ordem conseguiu
contactar e que responderam, 79 confirmaram que saíram mesmo. Em 36
dos casos eram médicos com idades entre os 25 e os 34 anos e 21
tinham entre 35 e 44 anos. Entre os 55 e os 65 também emigraram 12
médicos. Em 16 dos casos o destino foi o Reino Unido, mas houve
igualmente dez clínicos que se mudaram para França, nove para
Angola, oito para Espanha e seis para a Alemanha. “Há 49 médicos
que referem ter contrato, 29 dos quais como especialistas”, adianta
a Ordem dos Médicos.
"Não saímos
por desemprego, desistimos foi de Portugal"
Ana Gonçalves, 54
anos, anestesista em França
Depois de quase 30
anos de dedicação ao Serviço Nacional de Saúde, Ana Gonçalves
disse “basta”. Emigrou. Ou, como a anestesista de 54 anos prefere
dizer, “globalizou-se”. “Agora tenho a minha vida em Portugal e
trabalho em França”, conta, em referência às viagens constantes
para estar com o marido, filha e restante família. A mudança
aconteceu em meados de 2013. “Senti-me de tal maneira usada por
este Governo que decidi que estava na altura de sair. Estavam a
tentar expulsar os quadros superiores e a segurança e a qualidade
para os doentes deixaram de fazer parte do vocabulário do Governo”,
lamenta a médica.
Soube da vaga para
ir abrir um hospital novo em França através de uma empresa de
recrutamento. Das negociações à prática foi um passo
relativamente rápido. O francês não era problema e o salário era
cinco vezes superior. Mas o que mais atraiu a anestesista foram as
condições de trabalho e a qualidade de vida na pequena cidade entre
Bordéus e Toulouse. Já teve grandes desafios: agora está à frente
da maternidade que pertence ao hospital. Nada que desconheça. Mais
de 20 anos da sua vida foram passados no Hospital Dona Estefânia e
desde 2010 que estava na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), também
em cargos de direcção.
Ana Gonçalves
descreve horas de trabalho consecutivas na MAC, que chegavam a ser
mais de cem numa semana. “É assustador quando estamos a falar de
vidas humanas. Não me sentia capaz de ordenar coisas fora da minha
ética profissional. O que assisti foi a uma tentativa de expulsão
dos funcionários públicos com mais formação, mais especialização
e mais prática.” Para a anestesista, uma saída como a sua tem
várias consequências. Primeiro, há falta de especialistas na sua
área em Portugal. Depois, destaca que com a saída de médicos mais
velhos se está “a perder a capacidade formativa para os mais
novos”. Por último, reforça que atrás dos pais vai uma segunda
geração de “filhos qualificados”. A filha de Ana é estudante
de Arquitectura e está a fazer Erasmus em França. O mais natural é
que fique.
No novo trabalho
sente-se “contente e motivada”. “Sinto respeito entre todos os
elementos do hospital e tudo o que se faz a mais conta”, diz. Com
um contrato de 42 horas semanais tem direito a 35 dias de férias por
ano, aos quais se juntam mais 15 extraordinários como recompensa do
que faz. “Destaco a qualidade, o material, o trabalhar em
segurança, sem andarmos a colar coisas com adesivo como acontecia na
MAC. Em França a segurança do doente está sempre em primeiro
lugar.”
O regresso, explica,
só deverá ser possível depois da reforma. “Como as coisas estão
é impossível. Tento ter esperança, mas duvido que Portugal volte a
atingir o nível de um país de primeira linha. Olho para o que se
continua a passar desde que saí e acho arrepiante”, comenta. Ao
mesmo tempo, reconhece que nunca pensou emigrar. “Nunca me passou
pela cabeça ir acabar os meus anos de trabalho em França.
Infelizmente tive de sair com a minha vida estruturada em Portugal e
foi com muita mágoa que larguei a família. Não foi só fechar a
porta”, assegura. Quanto a França, admira a capacidade de visão
do país. “Contratou um especialista como eu e poupou 20 anos de
ordenados para conseguir alguém com esta experiência. Portugal só
pensa a curto prazo. É que nós não saímos por desemprego.
Desistimos foi de Portugal, trocámos tudo pela globalização.”
“Senti-me
demasiado claustrofóbico numa cultura de não excelência clínica”
Ricardo Gabriel, 35
anos, médico de medicina geral e familiar no Reino Unido
Para Ricardo
Gabriel, 2011 foi o ano de viragem. Na altura não conhecia nenhum
médico que tivesse emigrado e foi sozinho que tratou de todo o
processo em que não tinha pensado vir a embarcar. Foi para Londres,
no Reino Unido. Aos 35 anos, é especialista em medicina geral e
familiar – a sua primeira opção. Mas mal começou a trabalhar nos
centros de saúde portugueses na zona de Cantanhede percebeu que o
trabalho não correspondia às expectativas que tinha criado. “Quando
fui colocado, fiquei onde queria, mas foi tudo abaixo: estava sujeito
a uma chefia que na minha perspectiva não pugnava pelos interesses
da excelência clínica e dos doentes. Saímos muito especializados e
com grandes capacidades técnicas que depois não são reconhecidas
no mercado de trabalho”, resume.
O médico admite que
o salário, quase o triplo do que ganharia em Portugal, representa um
“bom extra”. Mas garante que, com o custo de vida em Londres,
esse não foi o “factor que determinou” a mudança. Reforça
também que em 2011 o processo não foi tão fácil como agora, pelo
que para ver as suas habilitações reconhecidas teve de fazer um
estágio de seis meses no país de destino. “Gosto mesmo muito
daquilo que faço e estava sujeito a fazer uma medicina de pouca
qualidade para dar resposta a requerimentos políticos e decidi que a
isso não iria estar sujeito. Não há qualquer liberdade de escolha
em termos de carreira em Portugal e ia ficar a vida toda em
Cantanhede. De início não se colocou tanto a questão da parte
financeira, mas claro que é um bom extra. Senti-me demasiado
claustrofóbico numa cultura de não excelência clínica.”
As consultas dadas
“em caves com 60 doentes à porta” ficaram para trás. Agora, por
opção, o médico trabalha num centro de saúde apenas três dias e
meio por semana, para ter tempo para investir em formação. “O
sistema inglês não é perfeito e está a passar por algumas
dificuldades, mas é um sistema exigente e que ao mesmo tempo dá
liberdade aos médicos sem deixar de pôr o doente em primeiro lugar.
A compensação é sobretudo a possibilidade de crescer na carreira,
de investigar, colaborar com revistas médicas.”
Quanto a voltar para
Portugal, Ricardo Gabriel diz que não tem “esse tipo de
esperança”. Eram necessárias “demasiadas” mudanças. “Não
tenho tristeza, tenho antes um grande orgulho nas pessoas que estão
em Portugal e que não podem ou não querem emigrar. Se calhar, eu é
que escolhi a vida mais fácil. É preciso coragem para ficar a lutar
pelo Serviço Nacional de Saúde”, defende, criticando que o
Governo continue a “pagar milhares de euros pela formação dos
médicos e a contribuir para que esses mesmos médicos se vão
embora”. E deixa um alerta: “Não estão a receber o retorno do
que estão a pagar e um dia vão perceber que precisam de ir buscar
gente fora.”
“Uma cidadã de
dois países mais do que propriamente uma médica emigrante”
Nadine Ferreira, 37
anos, médica neurologista na Bélgica
O ano de 2014
significou viragem no caso da neurologista Nadine Ferreira, de 37
anos. Para trás deixou em Abril o Hospital Garcia de Orta com
destino a Mons, uma cidade belga a sul de Bruxelas. Destaca dois
principais motivos para a difícil decisão: “Receio do futuro,
particularmente em relação às minhas três filhas, e procura de
uma melhor qualidade de vida. Devo dizer também por uma certa
desilusão em relação a muito do que via e ouvia à minha volta e
no meu país.”
A sua saída
representa a perda de dois médicos. Foi com o marido, cardiologista.
No caso da médica, até por existirem filhos, todo o processo foi
planeado. “O primeiro passo foi a procura de oportunidades e de
intermediários. Após conhecer todas as condições, seleccionámos
uma empresa de recrutamento que nos apresentou propostas concretas,
inclusive com contactos directos via Skype com as instituições.
Reforçámos o nosso conhecimento da língua através de aulas, visto
um nível elevado de língua ser pré-requisito. Fizemos uma primeira
visita às instituições, como forma de teste bidireccional”,
explica.
Uma grande diferença
está no salário proposto, que quase triplicou o valor do de
Portugal. A mudança é recente, mas a neurologista faz um primeiro
balanço positivo. “Temos sido muito bem aceites na comunidade,
médica e não médica. Na região do Sul da Bélgica, as raízes
latinas originaram um povo alegre. No local de trabalho, o clima
inicial de desconfiança por parte dos colegas foi rapidamente
substituído por respeito.” Foram sobretudo as diferenças na
prática médica que não esperava. “A qualidade da medicina não
só não é superior à praticada em Portugal, como em muitos
aspectos é mesmo inferior. Algumas medidas aplicadas em Portugal há
vários anos, como a Via Verde do AVC e a Via Verde Coronária, só
agora começam aqui”, adianta, explicando que na Bélgica os
médicos são normalmente trabalhadores independentes e recebem
“segundo o que produzem, o que tem algumas vantagens, mas pode
causar um certo desvirtuamento da prática médica”.
Para quem pondere
viver naquele país, Nadine Ferreira alerta que é necessário ter em
consideração a elevada carga fiscal e a menor protecção social.
“O sistema de Saúde é muito diferente do português, sendo
privado e baseado em seguros de saúde. Cada hospital é uma empresa
privada”, resume, adiantando que isso introduz muita
competitividade no sistema, mas também falta de coordenação.
“Muitas vezes assistimos a uma menor qualidade dos serviços,
apesar da disponibilidade de recursos.”
A médica partiu
“sem pensar em regressar”. Para isso acontecer teriam de existir
“boas oportunidades de trabalho e consenso familiar”. Uma
conjugação que entende ser improvável. “Os médicos estão
expostos às mesmas dificuldades e privações que os restantes
cidadãos” e “a saúde não é, há muitos anos, área
prioritária de investimento público, pelo contrário, reinando em
muitos serviços públicos um clima de desmotivação”.
Apesar de afirmar
que a emigração é hoje menos “menos discriminatória” e que se
sente “uma cidadã de dois países mais do que propriamente
emigrante”, reconhece que é triste ver sair de Portugal
“profissionais altamente qualificados”. Negativa permanece a
palavra portuguesa “saudade”, agora “minorada pelas tecnologias
e pela facilidade de deslocação, mas que, mesmo assim, continua
sempre cá”.
“Sentia-me
frustrada em Portugal porque sou extremamente perfeccionista”
Ana Carvalho, 38
anos, médica interna de ortopedia em França
Ana Carvalho tinha
vários convites e propostas de trabalho em Portugal. Contudo, foi
num hospital francês em Paris que encontrou há quatro anos o
ambiente laboral que procurava e que contrasta com o que diz que a
levou a sair de Portugal : “Não me identificava com as medidas
ditatoriais, implementadas num país dito democrático e que muitas
vezes padece de anarquismo.” Aos 38 anos, Ana é interna de
ortopedia, depois de ter passado por outra licenciatura na área da
saúde e de ter estudado também Medicina Dentária. As formações
deram-lhe uma visão “alargada” dos serviços de Saúde em
Portugal e que só contribuiu para perceber que o seu caminho seria
trilhado fora.
“Nunca tinha
pensado em emigrar, uma vez que não me faltava trabalho em Portugal.
A falta de dinheiro também não foi o factor desencadeador. Não me
identificava com as regras existentes nas instituições de Saúde em
Portugal e achava que existem cargos hierárquicos e burocráticos a
mais, entregues a pessoas que trabalham de menos”, justifica.
“Sentia-me frustrada em Portugal, porque sou extremamente
perfeccionista”, resume a clínica. No caso de Ana Carvalho, a
mudança aconteceu através de contactos pessoas que fez directamente
com algumas instituições francesas, ao mesmo tempo que
“praticamente em segredo” fez um curso para aperfeiçoar a língua
em que iria trabalhar.
No hospital
parisiense garante que encontrou uma cultura de equipa com a qual se
identifica e aponta o dedo às más práticas portuguesas,
nomeadamente a falta de pontualidade dos profissionais de saúde.
“Bastava alguém chegar (sistematicamente) atrasado, que todo o
trabalho de equipa ia por água abaixo E quem cumpria, rigorosamente,
as regras é que era, por vezes, apelidado de ‘betinho’ e era
marginalizado.”
A médica reconhece
que a medicina que se pratica em Portugal é de “excelência”,
mas alerta que as estruturas estão mal aproveitadas e que os
próprios médicos têm “contribuído para a desvalorização da
carreira”. “Não é por vermos o colega do lado sem nada fazer,
que também nos vamos pôr a fazer o mesmo, ainda mais quando há
salas cheias de doentes. Isso gera uma certa frustração… Uns
trabalharem mais (e melhor) do que os outros e, no fim, todos têm a
mesma recompensa”, critica.
Ana Carvalho
reconhece que foi com tristeza que deixou Portugal, não tanto por
ter emigrado – situação que nunca tinha equacionado –, mas sim
por ver o desinvestimento nos profissionais do Serviço Nacional de
Saúde, ao mesmo tempo que se “decoram salas e blocos operatórios
de hospitais” com equipamentos que não são utilizados por falta
de condições. A médica cansou-se do “deixa andar” e diz que
percebeu que teria de mudar de país para encontrar os “valores”
em que se revê, descrevendo Portugal como um país de “títulos”
e “cunhas”. Em Paris, garante, “idolatra-se” os médicos
portugueses, sobretudo em especialidades como a cirurgia ortopédica,
mas o olhar e a preocupação final vão para os doentes. “Sei que
a perfeição não existe à face da terra, mas identifico-me mais
com o sistema francês. Porém, em qualquer parte do mundo, o meu
lema de vida é e será sempre o mesmo: ajudar o outro sem dele nada
esperar.”
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