quinta-feira, 1 de junho de 2017

Ulmeiro, a histórica livraria de Benfica que é um belo exemplo de perseverança



Ulmeiro, a histórica livraria de Benfica que é um belo exemplo de perseverança

POR O CORVO • 1 JUNHO, 2017 •

Foi sempre um local de ideias e de resistência. Está de portas abertas há 48 anos, desde uma época em que era também um local de tertúlia contra o Estado Novo. Até há pouco tempo, teve a existência ameaçada, mas vai ganhar em longevidade ao regime que combateu. Uma livraria e alfarrabista que se confunde com a vida de José Antunes Ribeiro, o seu fundador. No dia em que começa  mais uma edição da Feira do Livro de Lisboa, O Corvo propõe-lhe a (re)descoberta de um local onde pode encontrar o livro que há muito procura, longe da multidão. Um armazém de memórias, que é também uma parte da alma de Benfica.

 Texto: Rui Lagartinho     Fotografias: Líbia Florentino
Vídeo. Imagens: Líbia Florentino     Edição: Álvaro Filho

 Tem sido um cerco silencioso e tacitamente aceite, como quem aceita um requerimento. Desde que José Antunes Ribeiro, 74 anos, dono da livraria alfarrabista Ulmeiro, anunciou que iria encerrar o espaço situado na Avenida do Uruguai 13, na freguesia de Benfica, que os vizinhos não param de oferecer livros, demonstrando assim que não querem que o local feche.

 Estes gestos contínuos, a atenção mediática que se seguiu à visita do Presidente da República, os leilões de livros cada vez mais frequentes e o recuo do senhorio em aumentar exponencialmente a renda convenceram José Antunes Ribeiro, a mulher Lúcia e gato Salvador a manterem as portas abertas. E a receberem, como sempre, quem é cliente habitual, quem entra por curiosidade, quem se decide finalmente fazer ao caminho e atravessar a cidade para vir descobrir uma livraria inclassificável. São quase 200 metros quadrados, repartidos por dois pisos. Uma Babel de livros difícil de quantificar em volumes, tamanhos e géneros.

Há sempre gente a entrar, como testemunhámos. Seja para comprar um Simpósio farmacêutico a bom preço, seja para oferecer à loja uma colecção de policiais Vampiro em muito bom estado, que é preciso retirar da casa duma sogra entretanto falecida.

 Todas as colecções míticas que fizeram a história das bibliotecas privadas dos portugueses, no século XX, estão aqui disponíveis: os livros de bolso da Europa-América, os sucessos do Círculo de Leitores, a Biblioteca Unibolso, a colecção original de livros RTP, a colecção XIS, a Caminho Policial, a colecção Argonauta. Estas, pelo menos, a nossa vista alcanço. Outras haverá.

Logo à entrada, numa entente cordial misturam-se as memórias políticas de Aníbal Cavaco Silva, o “Rumo à Vitória” de Álvaro Cunhal, “Portugal e o Futuro” do general Spínola e outras pérolas do livro político como as confissões de Galvão de Melo ou o veneno pícaro de Vera Lagoa. De quase todos eles há mais do que um exemplar. “Um armazém de memórias”, faz notar o livreiro.

 A política sempre andou por aqui. Desde a sua criação, em 1969, que a Ulmeiro foi um espaço de encontro da oposição ao regime do Estado Novo. Cada raide da polícia política, com a respectiva apreensão de material, apenas fortalecia a vontade de continuar.
José Afonso estava em casa de José Antunes Ribeiro, ao lado da livraria e que funcionava como cozinha e quarto de dormir da livraria, na noite do 25 de Abril de 1974 “Todos os anos na segunda quinzena de Abril já sabíamos que a PIDE prenderia gente. A nossa casa era um ponto de refúgio.”

 José Antunes Ribeiro nasceu numa aldeia do concelho de Ourém e a chegada ao mundo dos livros não foi evidente. Antes, passou pelas oficinas de manutenção de material aeronáutico e tentou a sorte como delegado de propaganda médica.

 Pertence à geração de ouro da edição de livros em Portugal. Um punhado de homens tenazes que revolucionaram e modernizaram o sector, a que pertencem nomes como Carlos da Veiga Ferreira, João Rodrigues, Manuel Alberto Valente, Maria da Piedade Ferreira e Nelson de Matos.

 A Ulmeiro também foi editora, e alguns dos seus livros de pedagogia infantil e de política marcaram uma época. Como nunca foi alinhado com os ares do tempo, José Antunes Ribeiro não é sócio da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros e é crítico do actual modelo da Feira do Livro. “Um amontoado de praças”, resume.

 Muitos lançamentos, exposições e concertos realizaram-se na cave da Avenida do Uruguai. O mesmo local que, afastado o fantasma do fecho, o livreiro quer agora relançar. Desde o início do ano que decorre uma campanha para juntar um número de sócios suficientes para viabilizar uma associação cultural que dinamize o espaço. A jóia de 20 euros e a quota 5 euros mensais poderão ser deduzidas em livros. Será lançada uma revista uma revista, “O voo da Coruja”, cujo número 0 já está quase fechado. Havendo vontade, surgirá um clube de leitura.

 Ao mesmo tempo, a Ulmeiro participa nas actividades promovidas regularmente pela Junta de Freguesia de Benfica. Toda uma nova vida para um ex-libris deste bairro lisboeta. Apesar de ter envelhecido, tal como a população do bairro, promete resistir.

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