Ulmeiro, a histórica livraria de
Benfica que é um belo exemplo de perseverança
POR O CORVO • 1 JUNHO, 2017 •
Foi sempre um local de ideias e de resistência. Está de
portas abertas há 48 anos, desde uma época em que era também um local de
tertúlia contra o Estado Novo. Até há pouco tempo, teve a existência ameaçada,
mas vai ganhar em longevidade ao regime que combateu. Uma livraria e
alfarrabista que se confunde com a vida de José Antunes Ribeiro, o seu
fundador. No dia em que começa mais uma
edição da Feira do Livro de Lisboa, O Corvo propõe-lhe a (re)descoberta de um
local onde pode encontrar o livro que há muito procura, longe da multidão. Um
armazém de memórias, que é também uma parte da alma de Benfica.
Texto: Rui
Lagartinho Fotografias: Líbia
Florentino
Vídeo. Imagens: Líbia Florentino Edição: Álvaro Filho
Tem sido um cerco
silencioso e tacitamente aceite, como quem aceita um requerimento. Desde que
José Antunes Ribeiro, 74 anos, dono da livraria alfarrabista Ulmeiro, anunciou
que iria encerrar o espaço situado na Avenida do Uruguai 13, na freguesia de
Benfica, que os vizinhos não param de oferecer livros, demonstrando assim que
não querem que o local feche.
Estes gestos
contínuos, a atenção mediática que se seguiu à visita do Presidente da
República, os leilões de livros cada vez mais frequentes e o recuo do senhorio
em aumentar exponencialmente a renda convenceram José Antunes Ribeiro, a mulher
Lúcia e gato Salvador a manterem as portas abertas. E a receberem, como sempre,
quem é cliente habitual, quem entra por curiosidade, quem se decide finalmente
fazer ao caminho e atravessar a cidade para vir descobrir uma livraria
inclassificável. São quase 200 metros quadrados, repartidos por dois pisos. Uma
Babel de livros difícil de quantificar em volumes, tamanhos e géneros.
Há sempre gente a entrar, como testemunhámos. Seja para
comprar um Simpósio farmacêutico a bom preço, seja para oferecer à loja uma
colecção de policiais Vampiro em muito bom estado, que é preciso retirar da
casa duma sogra entretanto falecida.
Todas as colecções
míticas que fizeram a história das bibliotecas privadas dos portugueses, no
século XX, estão aqui disponíveis: os livros de bolso da Europa-América, os
sucessos do Círculo de Leitores, a Biblioteca Unibolso, a colecção original de
livros RTP, a colecção XIS, a Caminho Policial, a colecção Argonauta. Estas,
pelo menos, a nossa vista alcanço. Outras haverá.
Logo à entrada, numa entente cordial misturam-se as memórias
políticas de Aníbal Cavaco Silva, o “Rumo à Vitória” de Álvaro Cunhal,
“Portugal e o Futuro” do general Spínola e outras pérolas do livro político
como as confissões de Galvão de Melo ou o veneno pícaro de Vera Lagoa. De quase
todos eles há mais do que um exemplar. “Um armazém de memórias”, faz notar o
livreiro.
A política sempre
andou por aqui. Desde a sua criação, em 1969, que a Ulmeiro foi um espaço de
encontro da oposição ao regime do Estado Novo. Cada raide da polícia política,
com a respectiva apreensão de material, apenas fortalecia a vontade de
continuar.
José Afonso estava em casa de José Antunes Ribeiro, ao lado
da livraria e que funcionava como cozinha e quarto de dormir da livraria, na
noite do 25 de Abril de 1974 “Todos os anos na segunda quinzena de Abril já
sabíamos que a PIDE prenderia gente. A nossa casa era um ponto de refúgio.”
José Antunes Ribeiro
nasceu numa aldeia do concelho de Ourém e a chegada ao mundo dos livros não foi
evidente. Antes, passou pelas oficinas de manutenção de material aeronáutico e
tentou a sorte como delegado de propaganda médica.
Pertence à geração de
ouro da edição de livros em Portugal. Um punhado de homens tenazes que
revolucionaram e modernizaram o sector, a que pertencem nomes como Carlos da
Veiga Ferreira, João Rodrigues, Manuel Alberto Valente, Maria da Piedade
Ferreira e Nelson de Matos.
A Ulmeiro também foi
editora, e alguns dos seus livros de pedagogia infantil e de política marcaram
uma época. Como nunca foi alinhado com os ares do tempo, José Antunes Ribeiro
não é sócio da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros e é crítico do
actual modelo da Feira do Livro. “Um amontoado de praças”, resume.
Muitos lançamentos,
exposições e concertos realizaram-se na cave da Avenida do Uruguai. O mesmo
local que, afastado o fantasma do fecho, o livreiro quer agora relançar. Desde
o início do ano que decorre uma campanha para juntar um número de sócios suficientes
para viabilizar uma associação cultural que dinamize o espaço. A jóia de 20
euros e a quota 5 euros mensais poderão ser deduzidas em livros. Será lançada
uma revista uma revista, “O voo da Coruja”, cujo número 0 já está quase
fechado. Havendo vontade, surgirá um clube de leitura.
Ao mesmo tempo, a
Ulmeiro participa nas actividades promovidas regularmente pela Junta de
Freguesia de Benfica. Toda uma nova vida para um ex-libris deste bairro
lisboeta. Apesar de ter envelhecido, tal como a população do bairro, promete
resistir.
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