Planeamento e execução do Urbanismo em Portugal
“Ficaram os pobres, em casas novas, separados uns dos outros
por descampados onde ia ser criado o shopping, o centro cultural,…”.
OVOODOCORVO
Na Alta de Lisboa, são as novas casas
o embrulho dos velhos problemas?
Associação de moradores reclama mais
acompanhamento das populações excluídas de um território fundado sobre o pilar
da “mistura de classes”.
MARGARIDA DAVID CARDOSO 13 de Junho de 2017, 20:23
Até aos anos 80, as barracas e casas de alvenaria eram a
porta escancarada da pobreza na zona norte de Lisboa. Era urgente urbanizar,
pôr fim às barracas e consolidar um território que se queria partilhado: entre
realojados e quem queria comprar casa nova em Lisboa. Era este o plano da
câmara, em 1984, para urbanizar o Alto do Lumiar. O projecto, entregue à
Sociedade Gestora da Alta de Lisboa (SGAL), vencedora do concurso público
internacional para construção da obra, idealizava a Alta de Lisboa como uma “conclusão
viva, planeada e dinâmica de uma capital moderna”. Mais de 300 “novos”
hectares, pensados para 60 mil pessoas.
Trinta anos depois, o realojamento está feito por inteiro,
mas apenas 30% dos chamados “apartamentos de venda livre” foram construídos.
Pelo caminho, caiu o investimento e a procura. E os espaços vazios continuam à
espera que ali nasça algo. “Ficaram os pobres, em casas novas, separados uns
dos outros por descampados onde ia ser criado o shopping, o centro cultural,…”,
é o retrato que faz José Almeida, presidente da Associação de Moradores do Alto
do Lumiar (ARAL).
Caminha por um terreno “a solto”, onde alguns dos prédios do
Programa Especial de Realojamento (PER) são ladeados por espaços vazios.
“Parecem campos minados”. Os PER estão ali como ilhas. Apesar de estar prevista
a criação de lojas e vários empreendimentos comerciais, “pouco avançou e não há
qualquer equipamento que de alguma forma rompa com este estigma". José
Almeida culpa a falta de atenção que câmara e investidores dedicam ao território,
“agora que a crise deixou de ser desculpa”.
“Fazer a mistura de classes”
Até aos anos 50, esta era uma zona rural, das “aldeias
saloias da Charneca e Ameixoeira”, recordava Manuel Salgado, vereador do
urbanismo da Câmara de Lisboa, numa mesa redonda durante a Lisbon Week sobre
urbanismo no Lumiar, no final de Março. A Alta de Lisboa era a periferia dentro
da cidade, afastada o suficiente do centro de decisão para se sentir longe.
A construção do aeroporto desencadeou a mudança. Dos anos 40
à década de 70, a zona foi sendo ocupada por novos habitantes de Lisboa. A
pobreza e a exclusão materializavam-se na construção de barracas e habitações
precárias. Nos anos 60, foram construídos os bairros municipais provisórios da
Musgueira Norte e Musgueira Sul, para realojar as três mil pessoas retiradas do
vale de Alcântara, em resultado da construção da ponte sobre o Tejo (hoje Ponte
25 de Abril). Foram provisórios durante mais de vinte anos.
“O Alto do Lumiar nasceu dessa mistura de gentes de origens
e experiências diferentes”, explica Gonçalo Antunes. Especialista em Geografia
e Planeamento Regional, estudou esta transição da Musgueira à Alta de Lisboa –
título do artigo que publicou em 2015. “A Alta integrou pessoas de origem
africana, etnia cigana, de culturas muito diferentes”, dos moradores do Bairro
das Cruz Vermelha, da Quinta do Grande, da Quinta do Louro, da Quinta da
Pailepa, até aos últimos, os retornados das ex-colónias que viviam no Bairro
das Calvanas, que começou a ser demolido em 2005 para libertar terrenos para o
projecto da Alta.
“Nos anos 60 e 70, quando havia planos homogéneos para a
zona norte da cidade, pouco foi feito no Alto do Lumiar”, prossegue Gonçalo
Antunes. Os bairros informais cresceram. Chega a década de 80 e é urgente um
plano de urbanização, que surge em 1984 com vista ao realojamento “assente na
ideia de mistura social induzida”. A ideia era “fazer a mistura de classes no
mesmo território”, reafirma Manuel Salgado. Pretendia-se "dizer não aos
guetos", incorporar a "convivência comum", uma ideia pela qual
António Sousa Fernandes, administrador da SGAL, ainda se bate, afirmava no
mesmo debate.
O projecto previa a construção de dois mil fogos ao ano, mas
a crise interrompeu os investimentos e as obras. O último lote de venda livre foi
concluído há dois anos. Há outro em construção. “O plano até poderia ser coeso,
mas a construção foi descontinuada, o que resulta sempre em problemas sociais”,
aponta Ana Verónica Neves, socióloga doutorada em crime e urbanismo. Abriu um
fosso “entre a zona dos ricos e a zona dos pobres”. Assentou estigmas e
preconceitos de parte a parte.
“Como é que os pais podem criar regras que nem eles
tiveram?”
No território habitado por 11 mil pessoas realojadas e 17
mil a viverem em casas “de venda livre”, espera-se do urbanismo um elo social.
As ruas entre a Quinta das Conchas e o Parque Oeste são o espelho da intenção
do projecto: aí as casas são todas iguais, desenhadas pelo arquitecto Frederico
Valsassina. Por fora, não se nota distinção entre quem as habita.
Mas Verónica Neves chama a atenção para o detalhe. “Umas
fachadas são em cimento, outras em pladur. Isto envia uma mensagem de exclusão
muito forte”. Apenas nos lotes de realojamento, há caixotes de lixo de rua, em
vez dos caixotes individuais para cada entrada. A GEBALIS, empresa municipal
encarregue da gestão, diz que as situações de vandalismo exigiram as mudanças.
A socióloga nota da parte da gestão uma “falta de noção da
realidade” do bairro. “Fizeram luzes no chão do Parque Oeste e achavam que não
iam partir? Claro que iam partir”. Era preciso assumir isso, diz: usar
materiais antivandalismo, adoptar medidas preventivas, ensinar os moradores a
cuidar do espaço.
Noutros espaços, a tentativa de integração saiu gorada,
acredita a socióloga, que estudou durante quatro anos este território. Faltou
acompanhamento social a quem foi realojado. Continua a faltar. “As casas são
uma embalagem nova para os velhos problemas. É como fazer a coisa pela metade”.
O desemprego, a falta de qualificações profissionais e perspectivas
de futuro convivem com “personalidades tensas”, pouco tolerantes, muito
ansiosas. A falta de afectos foi o que mais impressionou a socióloga: a falta
de acompanhamento e de apoio familiar, que cresceu com a primeira geração e se
tornou “crónica” nas gerações seguintes.
Os problemas são de retaguarda. Há famílias desestruturadas,
alimentadas por um ciclo de pobreza de três e quatro gerações. Onde os vícios
convivem com o desemprego ou os trabalhos precários. Uns empurram os outros. As
crianças crescem sem apoio nos estudos. “Como é que os pais podem criar regras
que nem eles tiveram? Não se pode ensinar o que não se recebe”, expõe a
socióloga.
Grande parte dos realojados mudaram de casas de alvenaria
unifamiliares, para lotes com dezenas de vizinhos, ou de barracas para uma casa
com tecto, chão e espaços públicos. Perderam-se relações de vizinhança. O
fogareiro do fundo da rua deixou de existir. “Estas pessoas, que tinham na rua
o seu espaço social, foram colocadas em gavetas com duas portas. A pagar
contas. A ter responsabilidades. Claro que têm condições, mas não houve uma
preparação para que aprendessem a habitar edifícios”, entende Verónica Neves.
Os moradores desconfiam. Estranham. Não cuidam.
A Escola Primária 34, que existia até 2011 em pré-fabricados,
é como as casas. Por fora é nova, branca, limpa. Mas "não tem nenhuma
criança das pessoas que compraram casa na Alta de Lisboa, só filhos de
realojados”, conta José Almeida. Nas escolas Pintor Almada Negreiros e D. José,
nos últimos lugares do ranking das escolas públicas, o cenário é semelhante.
José Almeida faz uma simulação. Uma criança que entrou para
a escola aos seis anos, quando a Alta de Lisboa começou a surgiu como tal, terá
saído de um ensino marginal, deficitário, onde cresceu enquanto pessoa.
"E, se juntarmos a isto um contexto familiar complicado e dificuldades
económicas, é muito difícil que o ciclo de pobreza não se repita. E isso
mudaria facilmente com uma escola diferente, inclusiva, com outras
condições". A associação de moradores tem insistido na integração das
famílias em “espaços neutros”, mas a resistência é grande. “Seria mais fácil se
a escola fosse local de inclusão”, diz.
“Não devia ser um luxo esta população ter bons técnicos, bem
como instituições competentes a trabalhar diariamente. Estas pessoas precisam
de um projecto social a longo prazo, que não mude de quatro em quatro anos ao
sopro das eleições”, completa Verónica Neves.
A socióloga insiste “numa verdadeira inclusão” dos
moradores: a mistura dentro do mesmo edifício. “Na maioria parte dos problemas,
bastava que quem decide fosse à Alta ouvir as pessoas”. Ninguém o faz, reclama.
Propõe: os técnicos sociais e responsáveis devem deslocar-se ao local
mensalmente e “sentir o território”, e podem ser criadas equipas multidisciplinares
para motorização social do território.
“Sensação de estar longe” nunca desapareceu
A revisão do plano de urbanização, feito há cinco anos,
estendeu a conclusão do projecto até 2030. São esperados 20 mil novos
moradores. Em 2035, a SGAL prevê que "tudo esteja em funcionamento".
Uma previsão ainda "ambiciosa", considerou o administrador António
Sousa Fernandes, que depende tanto da SGAL e da Câmara, como de investidores
externos.
Ana Verónica Neves duvida que o isolamento desapareça por
intervenção de privados. É preciso baixar os preços, diz. “Ninguém quer agora
construir ali”. É uma questão de estigma. “a Alta de Lisboa não é insegura”,
garante a socióloga, “mas essa é a imagem que existe”. Uma questão “difícil de
gerir”, admite Miguel Lobo, director Comercial e Marketing da SGAL. Lobo
garante que não é intenção da empresa tornar a “Alta numa zona premium",
mas ainda há muito a fazer”.
O sector terciário está em falta. A maioria das lojas estão
vazias. O plano de urbanização definia como equipamento âncora um centro
comercial, que atraísse visitantes, dinamizasse a economia local e fixasse
população, mas a SGAL abre a possibilidade de rever essa questão já em 2018.
Gonçalo Antunes olha no mesmo sentido: um equipamento comercial destas
dimensões "já não fará o mesmo sentido que fazia nos anos 90 e 2000,
quando os shoppings era verdadeiros pólos de atracção". A associação de
moradores propõe, ao invés, uma ideia âncora: a Alta de Lisboa como zona
privilegiada de incubadoras de empresas e startups.
Se nos anos 80, o plano queria “pôr um elástico nesta zona
da cidade e a aproximar do centro”, nas palavras de Manuel Salgado, hoje o
desígnio pouco mudou: é preciso “assegurar a continuidade não só do bairro, mas
da cidade”. “A sensação de estar longe” nunca desapareceu, garante José
Almeida, também ele morador, nascido na Musgueira. "Quem vive aqui todo o
ano fica com a ideia de que está isolado de qualquer coisa".
O metro é uma questão essencial: nem a SGAL nem a associação
de moradores desistem. “Não faz sentido que a Alta não tenha metropolitano. Não
faz sentido a volta que se dá à cidade para ir o aeroporto, uma ligação que se
faria em poucos minutos”, advoga Miguel Lobo.
Com uma rede suficiente, a “Alta de Lisboa pode mesmo
alavancar o desenvolvimento de espaços adjacentes”, acredita Gonçalo Antunes. O
vereador Manuel Salgado vê na mesma grandeza a oportunidade que a Alta de
Lisboa representa no combate a alguns problemas do município, com a especulação
imobiliária à cabeça. “A Alta pode ser um volante para controlar os preços”,
dada a disponibilidade de espaço para construção, que permite aumentar a oferta
de alojamento na cidade.
“Há muito” que a associação de moradores diz que deixou de
reivindicar investimento financeiro. Pede para a Alta "investimento de
recursos e de empenho". Mas a "Alta não está na moda ainda".
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