Alfama põe na marcha a defesa de um
bairro em mudança
"Não toquem na minha
Alfama" é o tema que o bairro, campeão em 2016, leva este ano ao concurso
da Avenida. É uma marcha pela tradição e pelas raízes, mas não é contra
ninguém.
JOÃO PEDRO PINCHA 4 de Junho de 2017, 8:20
Passamos rente às bancas de manjericos, desviamo-nos dos
bancos corridos, bailamos um pouco para que o empregado com a travessa de
sardinhas não nos espete os peixes na cara, subimos degraus, paramos para
deixar passar turistas com malas de rodinhas, resistimos às insistências para
beber ginjinha, cheiramos no ar para perceber se é chouriço ou entremeada
aquilo que nos chega, subimos mais um pouco, apreciamos a azáfama imensa,
paramos.
Começou Junho, já não se pensa noutra coisa. Lisboa está
engalanada para festejar o seu santo de eleição como mandam as regras e, nas
vielas de Alfama, está quase tudo pronto. Aproveitam-se as últimas horas do
primeiro dia do mês, uma quinta-feira, para receber condignamente a enchente
que se espera na sexta. Montam-se os grelhadores, colocam-se as fontes de
cerveja, penduram-se as fitas e as lanternas.
Também se trabalha com afinco no Centro Cultural Dr.
Magalhães Lima, já a meio da encosta que trepa para o Castelo. É aqui que se
ensaia a marcha de Alfama, vencedora do concurso de 2016 e que, este ano, vai
para o Meo Arena e para a Avenida da Liberdade defender um bairro em profunda
mudança. “Não toquem na minha Alfama” é o tema da marcha.
Nada de novo, atenção. Não toquem na minha Alfama, letra de
Amadeu do Vale, música de Raul Ferrão, foi o tema que os marchantes levaram ao
concurso de 1950 e que depois se imortalizou em vozes como a de Júlia Barroso.
Novos e velhos, muitos alfamistas conhecem de cor estas palavras: “Oh minha
Alfama/Que tens sido baluarte/Do velho Tejo/Que anda sempre a namorar-te/O meu
balão/Cheio de luz quando passa/Vai na marcha a dar a dar/Parece até que o mar
lhe deu aquela graça”.
Não foi um acaso a escolha deste tema, 67 anos depois de ele
ter sido composto. Mandam as regras das marchas que cada bairro leve um tema
antigo, a marcha de Lisboa e duas marchas originais. Sobre estas últimas nada
podemos dizer, para já: Alfama apresenta-se a concurso este domingo no Meo
Arena e, como em tanta coisa da vida, o segredo é a alma do negócio. Também
jurámos que nada diríamos sobre os fatos, os arcos e os passos que os
marchantes vão apresentar.
Mas do tema podemos falar, não é segredo nenhum. João Ramos,
tesoureiro do Centro Cultural Dr. Magalhães Lima e um dos responsáveis pela
marcha, explica a opção. “Alfama, em termos de tecido social, está a
transformar-se completamente”, diz, a poucos minutos de começar o último
ensaio. “Nós não podemos evitar isso e o que queremos é dizer: ‘Sejam
bem-vindos, estamos cá para partilhar a nossa cultura, mas têm de ter noção de
que nós já cá estamos.”
Não há aqui nada contra o turismo nem contra os turistas,
diz Mário Rocha, vulgo Maritó, presidente da colectividade. Pelo contrário, o
intuito é que haja harmonia. “Nós só não queremos é estragar as nossas raízes.
Porque se acabamos com as raízes, não temos mais nada.”
"Se o que fazes por Alfama é ter nascido aqui, então
fazes muito pouco”
Nove e tal da primeira noite de Junho, na rua um calor que
não pede manga comprida. Os marchantes vão entrando para o grande salão do
centro cultural, a banda entretém-se a tocar Despacito, a música latina que não
deverá passar de moda antes do fim do Verão.
Este é o primeiro ano em que a marcha não conta com a
mestria de Carlos Mendonça, o famoso “Mourinho das Marchas”, que em 20 anos
conseguiu trazer o caneco 13 vezes para Alfama. Mendonça trocou este bairro
pelo Alto do Pina em 2010 e no seu lugar ficou a ensaiadora Vanessa Rocha, mas
ele nunca se desligou completamente.
Tanto que, só este ano, depois da morte do coreógrafo em
Setembro passado, é que os responsáveis do centro cultural pensaram em
recuperar Não toquem na minha Alfama. Carlos Mendonça “odiava esta marcha”,
segundo João Ramos. “Quando acontece qualquer coisa nos ensaios, um percalço
qualquer, brincamos ‘lá está ele’”, ri-se o tesoureiro.
Parece que a escolha não podia ter sido mais adequada. “A
maior parte das pessoas está revoltada com o que se anda aqui a passar”,
comenta Dália Ferreira, uma moradora do bairro que canta a marcha a plenos
pulmões e veio dar uma espreitadela ao último ensaio. “O turismo aqui no
bairro… Parece-me que é daí que vem a escolha, mas não tenho a certeza.”
Sim, é daí, mas sem conflitos, sublinham João e Maritó. “Há
coisas essenciais do bairro – as marchas, os arraiais, as sardinhas assadas –
em que não podem tocar. Queremos que haja uma boa simbiose entre todos”, diz
João Ramos. E, acrescenta, a mensagem da marcha vai direitinha para os próprios
lisboetas e alfamistas. É um incentivo à acção. “Os portugueses têm memória
muito curta. Quando chegámos cá, já cá estavam outros. Ninguém é daqui,
propriamente dito. Se o que fazes por Alfama é ter nascido aqui, então fazes
muito pouco”, sentencia.
Nisto aparece um casal de holandeses. Ouviram a música lá
fora e perguntaram se podiam vir ver. Estão, obviamente, “delighted”, porque
“it doesn’t get more typical than this”. Acabaram de aterrar de Amesterdão e
logo lhes calhou em sorte uma experiência destas. Não fazem ideia do que cantam
os marchantes, mas acham muito bem que queiram defender as tradições do bairro.
“Afinal, é por isso que nós cá vimos.”
Este domingo começa a chegar ao fim um percurso com muitos
meses para todos os outros bairros onde as marchas são o epicentro da vida
comunitária. Alfama está na corrida para vencer, mas acima de tudo quer ganhar
a batalha pela tradição. “Que ganhe a melhor. Que Deus seja justo”, vaticina
Dália.
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