García-Ventosa: “Porto e Lisboa têm
de atuar já, antes que o turismo transforme a cidade”
Aviso de Gerardo García-Ventosa, o
diretor da Fundação Arquia, a vertente cultural debaixo da alçada da
cooperativa catalã Caixa dos Arquitetos, que agora se expande para Portugal
CESALTINA PINTO
ECONOMIA 31.05.2017 às 16h44
Gerardo García-Ventosa é o diretor da Fundação Arquia, a
vertente cultura debaixo da alçada da cooperativa catalã Caixa dos Arquitetos
que agora se expande para Portugal. A VISÃO foi apanhá-lo numa das cafetarias
do aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto, quando estava de partida para
Barcelona. Nesta última estadia – que passou também por Lisboa, onde manteve
contactos com a Ordem dos Arquitetos – visitou a Casa da Arquitetura, em
Matosinhos, o Mercado do Bolhão e Siza Vieira e Souto de Moura.
Licenciado e doutorado em Arquitetura, este homem de
conversa fácil acha “desafiantes” os tempos que se vivem. Já foi professor na
Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona e membro do Colégio de
Arquitetos da Catalunha. Entre alguns dos prémios que recebeu, conta-se o da
reconstrução do pavilhão da Suécia da Exposição Universal de 1929 em Berga.
Porto e Lisboa estão na moda?
Estão certamente com muita atividade, sobretudo Lisboa.
Não temem que haja por cá uma bolha no imobiliário?
Bem, nós somos muito precavidos e não embarcamos em
especulações. Somos uma cooperativa e, como tal, estamos fortemente dotados de
capital para responder aos possíveis problemas.
Os arquitetos por cá queixam-se muito de que não há trabalho
e quando há, não lhes pagam, sobretudo os mais novos.
É geral. Em Espanha passa-se o mesmo. Muitos estão
desempregados, por isso a Fundação quer alargar o ângulo das nossas bolsas
profissionais. O arquiteto não tem só de projetar e as bolsas que atribuímos,
que, em principio, era para estudos de arquitetura, ampliamos também para a
administração geral de arquitetura, para práticas de urbanismo e investigação
em arquitetura social. Há que abrir o campo para além do âmbito tradicional dos
arquitetos.
Até há bem pouco tempo promoviam-se só novas construções.
Agora a prioridade é a reabilitação?
Sim. Isso é assim agora em toda a Europa, Alemanha
sobretudo. A reabilitação será a chave na próxima década, de certeza.
Esta reabilitação está muito ligada ao turismo?
Sim, o turismo é o motor da península ibérica.
Isso pode descaracterizar uma cidade, ou não?
Bom, aí está o problema. Por exemplo, com a crise mundial
quem salvou Barcelona foi o turismo.
Então, reabilita-se para o turismo ou para os habitantes?
A administração pública, as autarquias e o governo têm de
atuar de forma eficaz para gerir este aumento de procura turística. Este
crescimento gera riqueza, mas pode mudar a configuração de uma cidade. O
turismo vai, pouco a pouco, mudando as cidades e os sítios. Creio que têm de
ser encontradas políticas que consigam estabelecer um equilíbrio. Por exemplo,
já visitei, na última vez, o mercado do Bolhão, no Porto [que está a ser
reabilitado]. E, contudo, o turismo ainda não mudou a sua imagem. Pode haver uma
entrada para turistas, mas depois lá dentro pode ficar como sempre esteve. No
mercado de Barcelona, no La Boqueria, entras e o espaço está quase todo ocupado
por lojas de produtos alimentares para turistas. Como tal, mudou a sua
configuração. Isto resultou de um crescimento desorganizado. Ou seja, é a
administração que tem de atuar.
Em Barcelona há alguma lei que proteja isso?
Estão a fazê-la só agora! Até aqui, não havia regras. Agora,
está a legislar para que isto não volte a acontecer, o que vale também para os
apartamentos turísticos ou para a reabilitação de casas. Porto e Lisboa têm de
atuar já, antes que o turismo transforme a cidade. A livraria [Lello], por
exemplo, não é mais livraria! O turismo é um bom investimento, mas há que atuar
para não apagar a história ou a origem dos espaços. Infelizmente, é sempre
punitivo. Em Barcelona também gerou movimentos e uma dinâmica comercial em que
as pessoas de maior poder de aquisição acabaram por desalojar os que lá
estavam.
O turismo é um fator importante na nossa vida?
Sim, isso é certo. Nos transforma. Mas também não nos
podemos deixar cair no imobilismo. Há que encontrar um equilíbrio entre duas
tendências. Não deixar destruir porque gera riqueza, apesar de não gerar só
riqueza económica. Também gera riqueza cultural, porque o intercambio cultural
de gente que chega de fora enriquece-nos a vida e fortalece a cidade. O errado
é quando a altera tanto que transforma a sua identidade. E aí tem mesmo de se
encontrar um equilíbrio. Não é um tema a preto e branco. Há uma tensão entre
duas vertentes: deixar a cidade imobilizada, tal como está, o que significa não
haver crescimento nem evolução; ou não deixar que a livre pressão do turismo e
do comércio distorça a sua configuração histórica. Há que haver um equilíbrio e
envolver todos os organismos.
Mas também não há casas para arrendar...
Há que arranjá-las. Há um outro problema nesta questão das
cidades e do turismo. Há uma mudança de ordem económica que já não acontecia
desde os anos 45 ou 50. Até à crise de 2008, estivemos em crescimento contínuo.
Qualquer coisa valia sempre mais. Esta crise gerou uma limpeza e agora estamos
numa época em que temos de definir novos modelos, pois os que havia antes já
não servem. É desafiante. Anteriormente, o marco para tomar decisões era o do
aquecimento económico contínuo. Na nossa época, tivemos a sorte de poder pagar
a nossa casa, pois era o momento que tudo haveria de valer mais. Agora, os mais
jovens dificilmente terão casa própria. Há que manter a mente aberta para que
haja uma adaptação a esta evolução do sistema, até que se construa um novo
modelo. Está claro que agora estamos a sair da crise, já não há tanto
crescimento negativo, a tendência está a mudar. Mas ainda não se sabe qual será
o modelo de crescimento ou de desenvolvimento económico. Temos de estar atentos
ao que acontece em cada dia, porque nos próximos anos esse modelo não se vai
ainda consolidar.
Mas entretanto os mais jovens não conseguem habitar os
centros da cidade.
A administração pública não pode deixar que isto aconteça
porque sim. Tem de estar ordenado. As cidades têm de ser, primeiro, para que os
seus habitantes estejam felizes. Há que ter em conta a hora de fazer uma
política de ação, estabelecer parâmetros. Não se pode ver o turismo como um problema
em si mesmo. Há que desenhar as politicas que atuem sobre a cidade e a sua vida
em geral, entender o que se passa para orientar as mudanças. Há que ver o
problema em todo o âmbito para se tomar boas decisões. Para uma boa análise é
preciso muita informação. Não é só o turismo, é também o comércio, é também a
terceira idade, são os transportes... No final, a cidade tem de dar felicidade
a quem está nela. Há que encarar isto com políticas a médio e longo prazo, não
a curto prazo ou sob mandatos de quatro anos.
As cidades devem ser lugares de passagem, instáveis?
Na cultura latina são estáveis. Na cultura anglo-saxónica
são instáveis. Por enquanto, a tendência agora é para serem todas instáveis.
Por causa do turismo?
E não só. Por causa dos tempos que vivemos. No norte da
Europa foi a cultura calvinista, - e não a católica, como a nossa - que fez com
que o modelo fosse o da mobilidade, que foi moldando isso na essência dos
povos. Nós, latinos e mediterrânicos, temos raízes muito mais fortes. Os tempos
atuais vão precisamente alterar isso, para ter mais mobilidade, ter capacidade
de expandir e para ser feliz neste ambiente que rompe com a cultura latina.
Temos de mudar de mentalidade e ser mais abertos para entender o que passa e
assim analisar e atuar em consequência.
E como explicar isso?
Que antes não havia mobilidade e agora há. Que o nosso mundo
latino e mediterrânico, fechado no seu sítio, acabou com a globalização. Porquê
que o programa europeu Leonardo da Vinci promove a mobilidade? Não só para que
os mais novos viagem, mas também para que conheçam e entendam novas culturas,
outras formas não só de pensar como de se posicionar perante a vida. É muito
interessante viver estes tempos de mudança, que podem ser criativos. E nós, os
arquitetos, também estamos aqui para isso. Temos capacidade de analisar as
coisas, estruturar e vermos o que conseguimos melhorar...
O turismo, e o que ele desencadeia, é bom para os
arquitetos?
Sim. Creio que os especialistas para desenhar uma cidade são
os arquitetos. Como tal, são eles e os urbanistas que devem definir a política
de uma cidade. Mas a administração pública não os ampara.
E porque não?
Porque o arquiteto sempre se preocupou em desenhar e não a
levantar questões também. Mas estamos a mudar... Agora, em Barcelona, estamos a
pensar fazer um mestrado executivo para arquitetos para fomentar a criação
desse lado desta profissão: levantar questões e questionar recursos e
estratégias.
O fenómeno airbnb, é bom ou mau para uma cidade?
É bom porque moderniza uma cidade. O que acontece é que nem
sempre significa que torne a cidade mais amável para os seus habitantes. Ás
vezes torna-a só amável para quem nela passa, porque baixa os custos.
O que é e deve ser, então, uma cidade?
Direi que o espaço da cidade pertence às pessoas. Nunca vi
uma cidade mais caótica do que S. Paulo, a nível urbanístico. É super caótica,
não há ali nenhuma política de crescimento urbanístico da cidade, gerando
grandes tensões sociais. Penso que é das cidades mais complicadas.
Há outra mudança interessante para os arquitetos do mundo
latino-americano. Depois de anos de premência de uma arquitetura mundial
dominada pelos anglo saxónicos, marcada por uma arquitetura fria e em altura,
nos últimos anos começou a haver arquitetos portugueses, espanhóis e
latino-americanos que se impuseram e ganharam prémios Pritzker... E estão a
conseguir marcar uma nova tendência. Já não é só a arquitetura fria e alta, mas
uma arquitetura que baixa na sua extremidade, convidando á participação [das
pessoas]. Isto é muito latino, da América do Sul, Espanha e Portugal. Creio que
pouco a pouco se vai mudando esse centro de hegemonia na arquitetura.
E o que acha de Lisboa e Porto?
Gosto. São algo parecidas, mas o Porto agrada-me mais por
ser de menor dimensão. E o rio é mais pequeno, está mais preparado para a
escala humana. O aglomerado de Gaia, Porto e Matosinhos está muito bem. Gostei
muito da reabilitação de um espaço industrial, um antigo armazém de vinhos
[Real Vinícola] em Matosinhos, onde vai nascer a Casa da Arquitetura. Está
muito bonito.
Esteve com Siza Vieira. O projeto de Siza em Granada, para o
Alhambra, vai avançar ou não?
Pois, falei com ele sobre isso e parece que acha difícil.
Mas ele é um corredor de fundo. Conhecendo-o como conheço, não daria essa causa
por perdida.
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