A aventura da Santa Casa na banca
António Costa
Ontem
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa vai entrar numa
aventura, isto é no capital do Montepio. Sem racionalidade económica, sem
cabimento social, mas por interesse nacional. É a pior das razões.
“A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) tem como fins
a realização da melhoria do bem-estar das pessoas, prioritariamente dos mais
desprotegidos, abrangendo as prestações de ação social, saúde, educação e
ensino, cultura e promoção da qualidade de vida, de acordo com a tradição
cristã e obras de misericórdia do seu compromisso originário e da sua secular
atuação em prol da comunidade, bem como a promoção, apoio e realização de
atividades que visem a inovação, a qualidade e a segurança na prestação de
serviços e, ainda, o desenvolvimento de iniciativas no âmbito da economia
social”. Este é o primeiro artigo dos estatutos da Santa Casa e é no mínimo
questionável se permite a entrada da instituição no capital de um banco
comercial, mesmo num banco com as características do Montepio.
As cartas, já percebemos, estão lançadas. Apesar de Santana
Lopes ter garantido que não vai ‘meter’ a Santa Casa numa aventura, há uma
espécie de consenso entre o governo – que tutela a SCML – e o Banco de
Portugal, que supervisiona a Caixa Económica Montepio Geral, para esta
operação. As razões invocadas, apenas oficiosamente e em conversas à porta
fechada, são as piores: o interesse nacional. Importam-se de repetir? A Santa
Casa vai arriscar um investimento – entre 150 e 200 milhões de euros por até
10% do capital – que nada tem a ver com a sua atividade por causa do interesse
nacional. Será que já nos esquecemos todos do que sucedeu a muitas das empresas
que mereceram a atenção do Estado, e os piores incentivos políticos, com as
mesmas motivações? É mesmo preciso citar exemplos?
A Caixa Económica Montepio Geral é uma instituição de
crédito, uma caixa económica de acordo com os seus próprios estatutos, não é
uma misericórdia, nem sequer uma mutualista. Essa é a Associação Mutualista, a
dona do próprio Montepio, que foi criado com um objetivo: libertar fundos para
permitir que a Mutualista pudesse cumprir os seus objetivos sociais. Este
negócio, a realizar-se, é uma perversão completa dos objetivos da Santa Casa e
está em cima da mesa para resolver a necessidade de capital do Montepio sem pôr
em causa a estabilidade da Associação Mutualista. Como?
A Associação Mutualista tem a participação no Montepio
avaliada em 2,2 mil milhões de euros — a soma do capital social de 1,77 mil milhões
com 400 milhões das unidades de participação, sendo o valor líquido de
imparidades de 1,666 mil milhões — e, portanto, a entrada de um acionista
privado no capital do banco a preços reais – e não artificiais – obrigaria a
associação a ajustar o valor da sua posição acionista no seu próprio balanço.
Como é fácil de ver, este ajustamento revelaria contas da associação que não
estão devidamente refletidas. Daí a solução Santa Casa, decidida dentro de
gabinetes.
A decisão de entrada da Santa Casa no capital do Montepio –
ao qual não deverá ser estranho o mais recente movimento de subida súbita e não
justificada do valor das obrigações do banco que estão cotadas e que, a
propósito, vão ser transformadas em ações nas próximas semanas – é uma
aventura. Em primeiro lugar, e mais importante, pela natureza do própria
investimento, e agravada pelos riscos próprios do Montepio.
O Montepio precisa de capital, sim, e de novos acionistas,
mas de outros acionistas, que tenham o perfil certo, que estejam disponíveis para
investir na estratégia de José Félix Morgado, uma estratégia correta, mas que
vai demorar tempo. Se correr tudo bem. O presidente do Montepio está a limpar o
balanço, a cortar custos, a livrar-se do imobiliário, a diminuir a exposição ao
mercado africano.
O Montepio não é um banco de cariz social, tem de ganhar
dinheiro, assumir risco, sim, mas emprestar a quem pode devolver os
empréstimos. A lógica de financiamento à economia social não é, neste sentido,
para levar a sério, desde logo porque estas entidades do terceiro setor –
fundamentais na nossa sociedade – têm de levantar dinheiro de outra forma, com
o Estado, com contratos-programa, e com mecenas, por exemplo. Não é,
seguramente, com crédito contraído na banca.
Portanto, a tese de que a Santa Casa vai entrar no Montepio
por causa da economia social, e para a financiar, é uma falácia. Um pretexto
mal escondido, e para isso basta analisar a estrutura de créditos concedidos
pelo banco. Este negócio resulta de um interesse. Nacional, dizem.
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